Todo
mundo tem suas fogueiras. São momentos em que tocamos fogo em conceitos, ideias,
atitudes, com o objetivo de rompermos com algo que acreditamos nos fazer mal.
As fogueiras geralmente são metafóricas, reflexo das fogueiras verdadeiras. As
de verdade, pelo que podemos ver na História, geralmente estão associadas a
obscurantismo e intolerância. Eu já tive minha fogueira de verdade. Não poderia
dizer que foi resultado de intolerância, porque não teria sentido eu ser
intolerante comigo mesmo, mas que foi um ato de obscurantismo, isso foi.
Embora
talvez meus familiares não concordem muito, pelo fato de eu ser uma pessoa
bastante emotiva, sempre fui o mais cético de todos, ou, numa outra leitura, o
de menos fé. Algo que me admira bastante nos meus irmãos de fé, em particular
meus familiares, são as certezas. Há algum tempo, conversando com um parente, minhas
pirações se contrapunham à tranqüilidade de sua fé. Enquanto os cristãos que eu
conheço e admiro demonstram uma fé quase desprovida de dúvidas, eu sou uma
pessoa quase que atormentada pelas
dúvidas. Uma das poucas certezas que eu tenho é que um dia eu morrerei.
Como
sempre participei de uma igreja pentecostal, sempre tive meus problemas com o modus faciendi desse tipo de fé. Costumo
dizer que sou o mais presbiteriano dos pentecostais. Na minha adolescência,
enquanto todos meus familiares eram batizados com o Espírito Santo, incluídos
meus irmãos mais novos, eu não. Reconheço que isso não se dava por conta dessa
minha falta de fé, ou ceticismo. Lembro-me das reuniões que tínhamos em nossa
igreja em que havia um grande mover do Espírito Santo. Eram reuniões muito
emotivas, catárticas. No clímax dos cultos, as pessoas pulavam, choravam,
passavam mal. No meio daquela muvuca toda, eu me sentia pressionado a fazer o
mesmo, afinal, as pessoas iriam concluir que, se eu não estava contagiado pela
manifestação do Espírito Santo, algo errado estaria se passando comigo. Então
eu me punha a pular, a orar sinceramente, a pedir a manifestação do Espírito Santo
em minha vida. E de fato, algo acontecia, mas que eu sempre atribuía à minha
manipulação de minhas próprias emoções, uma vez que, enquanto eu estava me
acabando naquelas manifestações catárticas, ficava de olho nas pessoas à minha
volta para ver se já era hora de parar. Em resumo, uma farsa. Não uma farsa
total porque eu estava à procura de uma experiência genuína, mas, enquanto isso
não acontecia de fato, eu entrava na onda das outras pessoas ao manipular
minhas emoções. Eu nunca duvidava da experiência das outras pessoas, mas,
enquanto as outras pessoas tinham uma relação muito imediata com suas crenças,
eu tinha mania de complicar tudo ao querer abstrair tudo aquilo, em compreender
por a+b. Enfim, um grande obstáculo. Quanto ao batismo com Espírito Santo[1],
dentre outras questões que não assimilava bem, eu achava ridícula aquela idéia
de falar para as pessoas repetirem “glória! glória! glória!” indefinidamente
para, então, falarem em outras línguas. Sem dúvida, era muito ridículo.
Foi
quando, num domingo, um pregador vaticinou: “Enquanto você não se livrar de
todos os impedimentos, não receberá o batismo com o Espírito Santo!” A lista de
“impedimentos” não era muito grande, mas incluía dois itens que muito me
interessaram: livros e música “mundanos”. Eureca, era isso! Eu sempre fui
amante dos livros e, apesar de ler quase a totalidade dos meus livros a partir
de empréstimos de bibliotecas, eu tinha uma meia dúzia deles. Quanto à “música
mundana” [2],
ao contrário dos livros que meus pais nunca fizeram objeção, eles não aprovavam
a audição. Era isso que eu precisava fazer: libertar-me dessas coisas. Naquele
domingo, depois do culto, cheguei em casa decidido. Fiz uma pilha com meus
livros e minhas partituras de música “mundana” e toquei fogo em tudo.
Recebi
o batismo com Espírito Santo por conta disso? É evidente que não. Algum tempo
depois me arrependi amargamente por causa daquele ato insano. Perdi algumas
preciosidades, como uma coleção que eu havia comprado anos antes, com muito
esforço – com dinheiro dado pelos meus pais –, chamada Toque Violão e Guitarra, que era uma coleção de fascículos que ao
final deveriam ser encadernados e dois livretos de partitura de música popular
brasileira e universal. Os livretos de música tinham harmonizações impecáveis e
foram os pilares dos meus conhecimentos harmônicos, obtidos através do meu
estudo dessas partituras para tentar dominar o violão, portanto, de um
inestimável valor emocional e histórico, por que não? Até tentei encontrar em
sebos, bancas de revistas e na editora, edições atrasadas dessa publicação, mas
nunca consegui. Uma pena. Uma fogueira estúpida sepultou parte importante de
minha história. No tocante aos livros, não me lembro dos quais foram perdidos,
com exceção do livro Cimarrom, de Edna Ferber, comprado no Círculo do Livro.
Outra
fogueira, dessa vez metafórica, foi resultado de uma viagem. Eu me correspondia
com uma garota de Brasília, Macy, que acabou se tornando minha melhor amiga até
hoje. Aos 19 anos, depois de quatro anos de correspondência, fui a Brasília
conhecê-la. Dentre outros lugares que ela me levou para conhecer, fui ao Vale
do Amanhecer, um local esotérico. Fiz mais de uma dezena de fotografias daquele
passeio: as esculturas, os locais de culto, as pessoas em transe, fazendo
passes, enfim, um rico material assustador para um evangélico mais radical.
Nessa época eu estava desempregado e, embora já tivesse passado da época do
Tiro de Guerra, não conseguia encontrar emprego.
As
pessoas que me visitavam em casa costumavam ver as fotos da viagem. Uma delas,
uma irmã da igreja, ao ver as fotos do Vale do Amanhecer, me disse: “Menino, o
que é isso? Joga essas fotos fora! Por isso você não encontra emprego!” Eu
nunca dei muita importância a esse tipo de raciocínio, mas, naquele momento de
desespero, pensei: “que mal faz eu jogar essas fotos fora? De repente eu
consigo emprego mesmo!” Joguei as fotos fora (mas, por via das dúvidas, guardei
os negativos). Uma semana depois eu estava empregado.
Nunca
mais me interessei em revelar as fotos de novo, mas tenho os negativos até
hoje. Sabe de uma coisa? Será que ainda não consegui meus objetivos
profissionais por causa daqueles negativos? Será que devo jogá-los
fora? Ou será que, se eu revelar as fotos novamente, corro o risco de
sofrer uma desgraça na minha vida profissional e me ver na Rua da Miséria?
Será? Eu, hein? Vade retro!
[1]
Na doutrina pentecostal, o batismo com Espírito Santo é um revestimento de
poder que se evidencia pelo falar em línguas estranhas, um fenômeno conhecido
como glossolalia. Os céticos, cristãos ou ateus, não acreditam na natureza
sobrenatural desse fenômeno e há até os que dizem isso não passar de epilepsia.
Não vou entrar no mérito já que considero isso uma perda de tempo.
[2]
Música que não fosse religiosa ou de concerto (sic).
Obadias, eu também já tive minhas fogueiras - religiosas ou não. Já fui em cultos nas igrejas Assembléia de Deus (uma tia tentou por anos e anos me "converter" a esta religião), Batista e Adventista. Já frequentei Centro Espírita e Igreja Católica, mas nenhuma destas instituições fez que eu seguisse a religião delas. Na época que frequentei a igreja Batista cheguei a pensar seriamente em segui-la, mas minhas dúvidas e inquietações me impediram de ir adiante. No dia que eu decidi não frequentar mais a igreja Batista, chorei e me despedi internamente de lá... Hoje eu não sigo nenhuma religião, mas entro em sintonia com Deus do meu jeito. Abomino as igrejas que pregam o fanatismo e o ódio às outras religões/igrejas e idéias que não sejam as impostas por elas. Enfim, fé e religião é algo muito pessoal...
ResponderExcluirQue interessante, Sandra, não sabia dessa sua interação com o protestantismo. A essência do cristianismo é amar a Deus acima de todas as coisas e o próximo como a si mesmo (e, quem não é capaz de amar o próximo que vê, como pode afirmar que ama a Deus que não vê?). Por outro lado, também está na essência do cristianismo o senso comunitário, o que fez das comunidades cristãs algo bastante válido. Mas, infelizmente, uma parte considerável dessas chamadas "igrejas" hoje em dia são verdadeiras indústrias que apenas se alimentam da religiosidade das pessoas valendo-se de todo tipo de expediente que se preste a servir os interesses ou cosmovisão de seus líderes. No final das contas, fazem mais mal do que bem. Apesar de eu fazer parte de uma comunidade evangélica, das mais equilibradas, minha opinião coincide muito com a sua e, no frigir dos ovos (olha aí o Gaspar!), manter distância de uma parte considerável dessas estruturas faz bem para a alma. Bjs.
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