quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

As segundas núpcias do Pastor

O Pastor era uma figura respeitada e admirada na sua comunidade. Podia-se dizer dele alguém com uma inquestionável vocação pastoral. Sua vocação também tinha explicação de berço. Filho caçula, de uma família com dois filhos, seu irmão 6 anos mais velho sempre fora um problema. Seus pais eram o típico casal de cristãos tradicionais e tementes a Deus. Apesar de todo esforço dos pais na educação dos filhos, o mais velho sempre lhes trouxera dores de cabeça. Na adolescência envolvera-se com más companhias e drogas. Apesar de caçula, o futuro pastor sempre fora capaz de perceber o que seu irmão mais velho estava a aprontar, mesmo quando os pais não desconfiavam. Mas ele não entregava o irmão para os pais porque via a dor que isso causaria neles. Por outro lado, ele também sofria pois não tinha como ajudar seu irmão mais velho que, apesar de tudo, era seu herói, por causa do seu caráter transgressor, um contraponto ao estilo tão conservador dos pais. Ele acabava sendo o eixo que equilibrava a tensão entre o irmão e os pais. Um pastor precoce. Um dia, em um assalto com outros jovens amigos tresloucados e drogados, seu irmão foi morto.

Seus pais nunca se recuperaram do golpe. Mas agradeciam a Deus por lhes ter dado o caçula, um garoto tão exemplar, tão admirável, a salvação da lavoura. O mais velho não dera certo. Mas esse seria um sucesso.

E foi: formou-se na faculdade de Arquitetura, embora seu coração estivesse mesmo nas pessoas problemáticas que cruzavam sua vida, como seu irmão mais velho. Não resistindo ao chamado, em vez de tentar a carreira de arquiteto, ingressou em um seminário. Formou-se com destaque, foi o orador de sua turma e foi lá que conheceu sua noiva. Uma jovem discreta, de modos delicados, a nora perfeita. Seus pais ficaram maravilhados. Deus tinha sido bondoso demais com eles ao compensar a dor do primeiro filho. Casaram-se na igrejinha de bairro onde ele crescera e seus pais frequentavam. Tiveram dois filhos, um casal. O primogênito e uma menina 2 anos mais nova.

Sua vocação saltava aos olhos e rapidamente ele pastoreava uma igreja. Depois outra, outra e mais outra. Até o dia em que foi convocado para um desafio internacional. Lá foi ele com a esposa e os filhos pequenos. Um sucesso. Sua sensibilidade para a dor alheia e a companhia de sua discreta e adorável esposa, fizeram-nos notórios no aconselhamento de famílias despedaçadas. E como eles recuperaram lares destroçados...

Passou muitos anos no exterior, até que voltou para seu país de origem, os filhos já adolescentes. E, um belo dia, sem nem mais nem porquês, eles avisaram, o mais discreto que podiam, que estavam se separando. Foi algo que chocou toda a comunidade. Só não foi um escândalo porque eles se separaram silenciosamente, sem vexames públicos, claramente amigos. Houve até quem dissesse que, na realidade, estavam se separando porque cada um queria servir melhor ao Senhor de forma individual: só podia ser. Usando suas economias amealhadas ao longo de mais de 20 anos de casados, puderam comprar 2 casas modestas e dignas. A mãe ficou com a garota, o pai com o menino. Até nisso eles foram exemplares. Serviram até de modelo para os que diziam ser lícito separar-se e, em alguns casos, até necessário e de boa espiritualidade, como se podia notar pelo fim do casamento do Pastor e sua digníssima esposa.

A separação durou um ano sem novidades. Tempo suficiente para eles se divorciarem e as pessoas se acostumarem com a ideia, os mais incrédulos por fim se convencerem de que não se tratava de uma pegadinha, afinal, até mesmo um casal perfeito e que restaurava famílias à beira da destruição poderia se separar.

Foi quando o Pastor avisou umas poucas pessoas que iria se casar novamente. Espanto e incredulidade generalizados novamente. Como seria possível isso? A notícia espalhou-se como um rastilho de pólvora. Todos julgavam que, uma vez separados, eles se manteriam “viúvos” para o serviço cristão! Qualquer um poderia se separar e casar novamente. Não aquele casal! Eles estavam muito acima disso! A separação se justificava porque provavelmente haveria algum propósito espiritual naquilo. Mas... casar-se novamente? Incompreensível!

O casamento foi marcado para alguns meses depois. Mas havia um fato intrigante: o Pastor não namorava ninguém, não se sabia quem era a noiva! Ele também mantinha sua reserva que era tão peculiar: não divulgou a ninguém quem seria a agraciada. Obviamente, toda essa desinformação gerou ainda mais especulação. E havia quem apostasse que, agora fazia todo sentido: ele iria confirmar os seus votos de casamento espiritual com a sua vocação! Somente alguém da sua estatura seria capaz de deixar até mesmo mulher e filhos para se dedicar totalmente à obra do Mestre. Enfim, as pessoas possuem uma imaginação muito fértil.

Nem é preciso dizer que, no dia do seu novo casamento, na mesma igrejinha de bairro onde se casara pela primeira vez, havia um público bem maior que a igreja comportava. Todos queriam saber quem era a noiva secreta. Muitos apostavam que não passava de um rito de elevada espiritualidade. Estavam tão excitados com a insólita ocasião, que ninguém sentiu a falta da ex-esposa e dos filhos.

O Pastor tampouco convidou qualquer outro ministro do evangelho para fazer seu casamento, daqueles que faziam parte do seu grupo mais próximo. Preferiu convidar um pastor que conhecera no exterior, um amigo de longa data da família, que nunca se casara. Na realidade, o celebrante do casamento ou quaisquer outras pessoas presentes eram mero detalhe, porque as pessoas queriam ver mesmo era quem seria a noiva, que até aquele momento não tinha dado o ar da graça. Na realidade, havia até algumas candidatas, mulheres na flor da idade e que consideravam o Pastor separado um partidão. E, nesses momentos, as más línguas ficam muito afiadas. Mas algumas delas já haviam sido descartadas de cara, porque faziam parte da assistência curiosa, elas, que, além de curiosas, tinham aquele olhar de ansiedade das viúvas por antecipação. Mas algumas não apareceram. Eram fortes suspeitas, portanto. Houve até mesmo aqueles mais desrespeitosos que, com um sorriso nos lábios, arriscavam um “Pastor safadinho!” quando pensavam nas virtuais candidatas, as ausentes.

Enfim, a cerimônia começou, a música serena, o Pastor entrou sozinho, mais ninguém, padrinhos, nada e, como tudo ali estava fora de lugar, ele pediu permissão ao celebrante para se dirigir à congregação.

Obviamente, ele podia, apesar de ser uma situação igualmente incomum. Dirigindo-se à assistência, com sua calma peculiar, ele começou a explicar o motivo de suas novas núpcias. O motivo é que, desde garoto, ele travara uma luta interna. Tivera uma vida de muitas renúncias e sofrimentos porque ele tinha que dar certo. Sempre fizera o que julgava o correto, o que Deus tinha preparado para ele. Dedicara-se a cuidar das pessoas, casara-se com uma mulher maravilhosa, sábia, que edificara o seu lar, que lhe dera dois lindos filhos e que, compreensivelmente, não estava presente naquele dia. Foi então que, envergonhados, os presentes se deram conta que não tinham dado até então pela falta do restante da família do Pastor. E o Pastor continuou: ele lutara toda sua vida contra o espinho na carne, pedira a Deus que o retirasse, mas nunca fora atendido. Chorara muito, penitenciara-se com o cilício da reclusão, do fechar-se em si mesmo. Até que um dia resolvera abrir-se para sua esposa, aquela mulher sábia, a única que talvez o compreendesse. Ela o ouviu, chorou muito com ele. No final das contas, disse-lhe que o seu papel de esposa era apoia-lo no que fosse preciso e era isso que ela faria. Mas, depois daquele dia, ele foi sentindo cada vez menos o peso da cruz que carregava e, não sabia como, se perdera. Ou se encontrara. Não dava para saber direito o que ocorrera. Mas foram necessários 4 anos para que seu casamento chegasse ao final. Da cumplicidade inicial da esposa, apesar da dor no primeiro momento, eles foram se distanciando gradualmente. A relação foi esfriando. E passou a achar que era injusto prendê-la naquele casamento que, por conta da sua confissão, fora ferido de morte. Foi quando se separaram.

O restante havia sido consequência. Cada vez mais ele se sentia aceito, perdoado, livre. Ainda que isso lhe parecesse tão estranho, tão surreal, tão fora dos valores que ele tanto predicara. Mas ele havia tomado uma decisão importantíssima e definitiva que tinha potencial de destruir toda sua carreira pastoral. E, com efeito, ele acreditava que isso aconteceria. Parou, respirou fundo, sorriu: “Hoje me caso com ele!” E se voltou para o pastor que conhecera no exterior, um amigo de longa data da família, que nunca se casara.

Estupefação! Torpor! Ignomínia! Revolta! Opróbrio! Desmaios! Incredulidade! Enjoo! Desespero! Ainda bem que seus pais já estão mortos para não passarem por essa humilhação! Ninguém sabe direito o que aconteceu depois. Foi tudo muito desorganizado. Num primeiro momento se ouviu um “oh!!!” geral e irrestrito, que durou alguns intermináveis segundos, aquela tensão insuportável no ar. Em seguida, fez-se um silêncio sepulcral, em que o Pastor aproveitou para tentar retomar a cerimônia da forma como ele planejara. Mas ninguém estava mais prestando atenção no que ele dizia: as mentes estavam travadas, em estado de choque. Três senhoras, das mais tradicionais da congregação, levantaram-se e começaram a se retirar. Um primo do Pastor, que não era lá muito dado a etiquetas, cerimônias, vaticinou em bom tom, interrompendo a fala do Pastor: “Primo, elas não vão ao banheiro, não! Elas estão indo embora mesmo!” Foi a senha. Um a um foi tomando coragem e abandonando o templo entre decepcionado e confuso.


No final restaram apenas o Pastor, o outro pastor que conhecera no exterior, um amigo de longa data da família, que finalmente estava se casando, o primo, que estava achando aquilo muito engraçado, e umas 10 pessoas que, num misto de êxtase e incredulidade, voando no tempo e no espaço, com um mal desenhado, mal disfarçado esboço de sorriso nos lábios, não conseguiam se despregar de seus assentos. Nem piscavam...

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