“É preciso muito mais fé para acreditar na ‘teoria’ da
evolução que no ‘relato’ da criação” (antigo provérbio chinês)
“Nunca vi macaco virar gente.
E barro virar gente, já viu?” (poema ancestral catalão)
O sujeito está largado no sofá assistindo algum canal
Discovery, fascinado com o relato da reconstrução de um crime sem solução há 20
anos. Os investigadores, muito diligentemente, juntam os menores indícios
possíveis, provas de DNA e conseguem reconstituir como teria sido a cena do
crime. Mais um criminoso que havia se safado durante décadas atrás das grades.
Muda de canal e se depara com outro programa em que está se fazendo um relato
de como teria surgido a vida na terra. Meneia a cabeça, tsc, tsc, tsc, e muda
de canal, pensando: como esses caras podem afirmar tamanhos absurdos se nunca
estiveram lá? É preciso ter muita fé para acreditar nisso.
Em um pequeno vilarejo no sul de Minas Gerais, alguns cestos
de lixo amanhecem revirados. Surgem duas teorias: (a) uma matilha de cães, que
costuma vagar pela cidade, estava particularmente esfomeada naquela noite e
saiu revirando os lixos à procura de alimento ou (b) um urso esfomeado saiu
procurando comida nos cestos de lixo. Qual seria a alternativa mais razoável?
Considerando o estado que se encontrariam os cestos, indícios de que um animal
o teria revirado, seria muito mais simples supor que os cachorros tiveram um
surto de fome e saíram revirando os lixos, afinal, qual a probabilidade de um
urso aparecer do nada no sul de Minas revirando lixos? Para isso ocorrer teria
que haver tantas variáveis envolvidas que tal possibilidade seria descartada
como absurda. Mas eis que surge uma nova informação: “Cuidado!!! Nessa última
noite um urso fugiu do circo que está de passagem pela cidade!” Bem, aí a coisa
muda totalmente de figura, ainda que não descartada a possibilidade da matilha
de cachorros, a ação do urso começa a ficar muito mais plausível. Mas ninguém
viu. O que seria necessário para se descobrir o mistério? Indícios. Por
exemplo, pegadas do urso, cercas avariadas compatíveis com um animal de grande
porte, etc. Existe uma ferramenta lógica utilizada pela ciência chamada Navalha
de Occam: “Quando duas ou mais explicações para um fenômeno dispõe do mesmo
número de evidências aquela que envolva um menor número de entidades e pressupostos
e for a mais simples tem maiores chances de ser a correta.” Aliás, o pensamento
científico se baseia em alguns pressupostos muito importantes e essa ferramenta
é um deles. Faz todo sentido.
Mas a história está longe de terminar. O pároco do lugarejo,
uma pessoa muito respeitada, um sábio, entra em cena lembrando o pessoal que,
segundo o capítulo e versículo tal do seu livro sagrado, e as interpretações
canônicas do texto, há anjos que reviram cestos de lixo sempre que se dão
determinadas condições supostamente existentes no episódio. Pronto, esquece, a
teoria dos ursos tem que ser descartada:
quem defende a hipótese dos ursos deve ter muita fé, afinal faz muito
mais sentido supor que foram os anjos que fizeram aquilo. OK, o exemplo foi bem
grotesco, mas às vezes precisamos exagerar um pouco os exemplos para as
contradições ficarem mais evidentes.
Obviamente, é impossível não se lembrar de Galileu Galilei
que foi condenado pela igreja católica porque sua teoria de que a terra não era
o centro do universo não passava de uma heresia teológica.
Voltando ao nosso “antigo provérbio chinês”, a noção que se
tem hoje do surgimento da vida na terra e sua evolução é fortemente amparada
por todas as descobertas científicas, não apenas na biologia, mas também nos
demais ramos da ciência como a cosmologia, arqueologia, geologia,
palenteologia... A exemplo dos investigadores criminais, os cientistas estão há
séculos coletando indícios e tentando montar o quebra-cabeças que desvenda os
mistérios da nossa existência aqui. Ainda que, conforme disse Einstein, nosso
conhecimento científico perto da realidade seja primitivo e infantil, todos os
indícios desse quebra-cabeça convergem para esse quadro do que se convencionou
chamar de “evolução”. Certamente, no passado, quando os indícios praticamente
não haviam sido descobertos, era preciso muito mais fé para acreditar em um
processo evolutivo do que acreditar em que Deus teria feito o homem do barro e
o lançado prontinho, zero bala, no jardim do éden. Mas, com as descobertas,
muitas delas desconcertantes, obtidas por meio da ciência, agora parece muito
mais razoável acreditar em processos evolutivos que o surgimento inesperado do
ser humano feito a partir do barro por Deus.
Ciência é um tema árido e a maioria das pessoas não são
atraídas por ela, é um esforço de alguns séculos apenas. Já a identificação com
processos religiosos é algo que nos acompanha desde tempos imemoriais. Então, é
natural que a maioria de nós nos sinta confortável no mundo dos postulados religiosos,
afinal, nosso condicionamento para enxergar o mundo e compreendê-lo sob a
perspectiva religiosa é de milênios, enquanto que o despertar científico é
coisa de alguns séculos. Ainda estamos engatinhando na era científica. Demorará
muito tempo (milênios?) para que consideremos normal explicações objetivas da
realidade e não interpretações religiosas.
Por ser um tema árido, nós não temos o hábito de nos
inteirarmos de como se dão esses processos científicos, de como essas “investigações”
nos diversos ramos da ciência se complementam e explicam muita coisa da nossa
realidade, até mesmo nossa insipiente compreensão de como viemos parar aqui. O curioso
é que, no mundo das partículas, por exemplo, tudo é “teórico”. Postula-se uma
ideia, tenta-se prova-la por meio de experimentos, se o resultado é positivo, a
hipótese é provada. E assim a ciência segue desvendando os mistérios das
partículas, ainda que não o compreendendo bem. Mas o que já é compreendido
permite uma infinidade de aplicações que chegam até nós por meio da tecnologia.
Ninguém está “vendo”, mas todos nós nos beneficiamos disso. Daí, o religioso criacionista
aceita todo esse conhecimento científico sem questionar, sem descrer, mesmo que
ele não leia nada a respeito em faça ideia de como se chegaram a tais
resultados, afinal, ele está fazendo uso da tecnologia (como descrer disso?). No
entanto, no caso da teoria da evolução, ainda que os procedimentos sejam
rigorosamente os mesmos e as conclusões obtidas também permitam esse acúmulo de
conhecimento, ainda que sempre provisório, o religioso criacionista não
acredita e, se não bastasse, diz que o cientista tem mais fé do que ele.
Por fim, um esclarecimento bastante útil a respeito do “poema
ancestral catalão”: a ciência não afirma que o homem veio do macaco. Esse é um
engano que pode ser eliminado se interessando pelo assunto.
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