segunda-feira, 20 de maio de 2019

As desvantagens de ser visível

Domingo à tarde, jogado no sofá com a Flávia. No término do episódio ela me perguntou:

- Pode ir à Coop, na farmácia, comprar uns remédios para mim?

No carro, a Cultura FM estava transmitindo um programa sobre o preto Joaquim Callado, considerado um dos pais do choro e pai dos chorões. Obviamente que ouvia atentamente enquanto dirigia, todo orgulhoso por esse preto tão importante na História da Música brasileira.

Na Coop, estacionei meu carro e, como quase sempre acontece quando estou ouvindo algo interessante, fiquei estacionado com o carro ligado até terminar o trecho interessante. Deixo o carro ligado porque, se desligá-lo, o rádio desliga também e eu perco o que estava ouvindo.

Enquanto ouvia, um senhor chegou dirigindo um Ford New Fiesta com placa de vende-se. Pensei com meus botões: “para quem pretende vender o carro, seria interessante se ele desse um banho no veículo, né?” Ele teve dificuldade de estacionar e depois de milhões de manobras, estacionou distante do veículo à sua direita e queimando a faixa à sua esquerda, reduzindo o espaço de estacionamento da vaga ao lado, o que me fez lembrar da irritação que me causa esse tipo de situação quando vou estacionar e vejo que o infeliz que estacionou antes de mim foi incapaz de estacionar no centro do seu espaço.

Ainda perdido nos meus pensamentos enquanto ouvia sobre Callado na Cultura FM, bastou o cidadão descer do seu veículo, que chegou outro para estacionar. Um imponente Honda branco, novo. Parou em frente meu veículo e começou a manobrar, de ré, para entrar na vaga apertada. Notei que era uma moça quem dirigia o tal veículo. E, coisa raríssima de se ver, era uma negona, bem negona mesmo! Confesso que, pela raridade do acontecimento, na hora fui invadido por um surto de felicidade. Puxa vida, que legal! É tão difícil de ver isso! Naquele momento em me sentia tão infinito quanto um garoto de 15 anos, sentado entre a bela Sam e Patrick, na picape dirigida por ela, enquanto ouviam uma canção maravilhosa sobre um cara.

Depois de estacionar, ela abriu a porta e desceu do veículo, claro. Debaixo para cima, equilibrava-se em uma sandália de salto agulha, vestia uma legging preta e uma blusa bastante estampada com um decote farto (e o decote tinha bastante espaço para poder expressar sua fartura), além de madeixas volumosas, cacheadas, a escorrer pelas costas. Lembrei-me rapidamente do episódio surreal nos Isteitis em que policiais levaram para a delegacia uma preta por não acreditarem que o carrão dirigido por ela era dela. Fiquei feliz por ver aquela mulher poderosa descendo do seu bólido alvo como a neve.

Como era de se esperar, ela foi caminhando vagarosamente rumo à entrada da Coop, e vagarosamente passou em frente do meu veículo estacionado com o motor ligado, enquanto eu, provavelmente com um sorriso nos lábios, alimentava meus ouvidos com os sons de Callado e meus olhos com aquela preta bem-sucedida, coisa rara. E ela passando vagarosamente defronte meu carro. De repente, talvez por estar o carro com o motor ligado, ela se vira e me vê dentro do veículo. Senti-me um Bucthe Coolidge Pardo parado em um semáforo dentro de uma película de Tarantino.

Era tarde demais para disfarçar. Ela já tinha percebido que eu a estava olhando. Eu tenho um protocolo: quando uma mulher me chama atenção, pelo motivo que seja, e de repente ela olha para mim, na fração de segundo imediatamente anterior eu disfarço, para não a submeter ao desconforto de perceber que havia um macho a observá-la. Considero essa situação extremamente desagradável para as mulheres. Outro dia estava caminhando pela Av. Pereira Barreto, 20 h, mochila nas costas, uma garota alguns passos à minha frente. Observei que ela a todo instante olhava disfarçadamente para trás. Que situação complicada! Apressei os passos e fiquei um pouco à frente dela, para liberá-la do desconforto e do medo da ideia de estar correndo o risco de ser atacada. Até pensei em pedir-lhe desculpas quando passasse por ela, mas evitei isso porque, aí sim, ela iria pensar que seus temores estavam se concretizando, ahahah! Tadinha...

Bem, voltando um pouco atrás no desenrolar dos fatos... a deusa africana desceu do seu veículo e, ao passar vagarosamente em frente do meu carro enquanto eu, provavelmente com um sorriso besta nos lábios, ouvia Callado (gostei do trocadilho). Tarde demais: pego de surpresa, não havia mais tempo para eu desviar o olhar, e preferia que ela não me visse fazendo tal gesto. Só me restou sustentar o olhar. Do jeito que eu estava, sabe-se lá qual era minha expressão facial. Ela me olhou por uma fração de segundos, nessa fração de segundos acho que tentei passar para ela a mensagem “meu, estou orgulhoso de você!”, receio que sem muito sucesso. Ela olhou para frente novamente e seguiu com seus passados ritmados.

Quando quase sumia do meu campo de visão, numa reviravolta digna de Tarantino, parou, deu alguns passos para trás, virou o dorso e ficou alguns segundos ostensivamente olhando para a placa do meu carro. Penso que, em tal gesto, ela estava me mandando uma mensagem:

- Se velho pervertido, pense bem no que está pensando, porque eu já memorizei a placa do seu carro, viu?

Eu já estava pronto para descer do veículo, mas, obviamente, esperei ela se distanciar. Porque a coisa mais constrangedora que eu poderia fazer naquele momento seria descer do veículo logo atrás dela, não é mesmo?

Depois de alguns instantes, fui eu deixar uma pequena fortuna na farmácia da Coop enquanto pensava nas desvantagens de ser uma mulher em um mundo machista.

(PS: ah, sim... como devolução da sua gentiliza de memorizar a placa do meu veículo, também memorizei o dela: fulano em português de Portugal + número de emergência da polícia)

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