sábado, 1 de junho de 2019

Lei da selva

Confesso que gosto de observar o comportamento das pessoas no trânsito. É no espaço público, especificamente no trânsito, que as pessoas realmente mostram quem são. Porque a posse de um automóvel tem o impressionante poder de nos desnudar. Basta estarmos na direção de um veículo e, para uma grande parcela de nós, é como se nos tornássemos todos-poderosos e tivéssemos salvo-conduto para submeter todas as demais pessoas aos nossos caprichos.

Existe uma regra básica no trânsito que diz que o maior dá preferência e protege o menor. Logo, um caminhão se preocuparia em proteger um carro de passeio e todos os demais veículos menores e pedestres; um veículo de passeio seria responsável por proteger motos, bicicletas e pedestres; e assim por diante. Mas, além desse fato inacreditável de que as pessoas se sentem poderosas e o pior delas se externa quando estão ao volante, ainda existe a questão da “justiça com as próprias mãos”. Fico pensando se o motorista de caminhão que tenta sobreviver com um salário de fome não se sente vingado quando quase atropela um bacana metido a besta em seu importado...

Essa semana eu interagi com 2 episódios no trânsito e soube de um terceiro que ilustram bem esses comportamentos. Vou narrá-los do mais recente para o mais antigo.

O PASSAMENTO

Há alguns dias, na escola em que meu caçula estuda, um pai de aluna estacionou seu carro na fila em frente ao colégio na hora da saída. Não gosto de ir naquele horário porque é complicado. Espero a poeira baixar e depois pego o Felipe que fica na escola conversando com seus colegas ou lendo seu livro. Dizem que o pai estacionou antes da faixa amarela, em frente a uma casa vizinha da escola. A dona da casa chegou instantes depois e buzinou solicitando que ele liberasse a entrada do portão. Contam que ele irritado, começou a xingar a mulher. O enteado dela, de 18 anos, vendo sua madrasta sendo xingada, não pensou duas vezes: armado de um pedaço de tábua, começou a surrar o veículo, pobrezinho, que não tinha nada a ver com a história. Mas sabe como é, né? Xinga meu pai de coxinha, minha mãe de empadinha, mas não encosta a mão no meu carro!!! O “cidadão de bem”, ferido no seu orgulho, fez o que todo “cidadão de bem” desarmado de uma arma de fogo mas armado de seu possante faria: jogou o carro em cima do rapaz, de ré, quase atropelando-o. Saiu, deu a volta no quarteirão, passou de novo pelo mesmo local e parou na esquina, mais adiante. Desceu do carro e, falando ao celular, esperou que sua filha saísse. O rapazote, cujo sangue ainda não tinha se deslocado dos olhos e voltado para o juízo de onde nunca deveria ter saído, continuou exercendo seu “direito” de não pensar duas vezes e avançou pra cima do cidadão bocudo. O cidadão, mais encorpado, grudou na mão desarmada do rapaz, deixando a outra livre para voar para onde quisesse.

E a mão armada com pedaço de tábua voou, claro. Resolver essas querelas com violência e xingamentos é coisa de gente pouco evoluída. Então seria bem triste (mas engraçado) se a tábua encontrasse descanso nas fuças do estúpido cidadão. Mas não... nessas horas, às vezes, aparece uma boa alma disposta a se sacrificar pelo bem da humanidade. Foi o que aconteceu nesse caso. O porteiro, meu amigo Anderson, assistindo o desenrolar dos fatos de forma privilegiada (juntamente com os demais pais assustados), ao perceber que os finalmentes não seriam nada amigáveis, tentou puxar o pai para dentro da escola, justamente no momento em que a tábua fazia sua derradeira (saberemos logo a seguir) e precisa viagem com aterrissagem nas fuças. E, de fato, a tábua se espatifou nas fuças... do Anderson e partiu daquela para melhor! Mas vejam que injustiça: nas fuças erradas! E acabou sobrando também para o infeliz dos óculos do Anderson que foram arremessados vários metros, mas como é sangue ruim, saíram ilesos do acidente (quem os vê com sua aparente fragilidade nem acredita que escapariam incólume de tamanha violência).

Feito um gêiser, o sangue lavou a cara do Anderson. Final da história: a polícia só apareceu 2 h depois, o garoto vizinho pediu mil desculpas ao Anderson porque a ideia era abater o cidadão, não ele, não sei que fim levou o cidadão marrudo e pouco me interessa, e a polícia disse ao Anderson que deveria ir à delegacia prestar queixa, o que ele evidentemente não fez porque iria perder, no mínimo, mais umas 2 horas. Aliás, a forma totalmente vazia de consideração com que somos tratados pela autoridade policial quando nos envolvemos em episódios de violência parece-me algo inaceitável, mas vou ficando por aqui mesmo.

Depois fiquei sabendo que a família ao lado da escola se mudou no dia seguinte ao entrevero, o que me deixou “semi” consternado. Mas daí me explicaram que eles eram inquilinos na casa e vizinhos problemáticos. Logo, a mudança repentina deles gerou um certo alívio na escola. Que coisa...

A TRAVESSIA

Um dia antes do passamento do pedaço de tábua, voltando sabe-se lá de onde, resolvi deixar o carro no lava-rápido porque estava nojento. Descia a Caminho do Pilar, perto de casa, passando em frente à Filinto de Almeida que desemboca na Caminho do Pilar. Havia bastante movimento e, metros à frente, depois da Filinto de Almeida, há uma faixa de pedestres. Notei que havia uma garota parada na faixa. Obviamente que é muito difícil os incivilizados motoristas darem passagem a pedestres naquela faixa. Eu então tratei de diminuir bastante minha velocidade e já estava prestes para dar sinal com o farol para a garota atravessar a rua e, de quebra, sinalizar para o motorista no sentido contrário fazer a civilizada gentileza de esperar a garota parar. No que eu diminuí a velocidade, digamos que de 30 para 15 Km/h, um carro que vinha saindo da Filinto de Almeida entrou na minha lateral. Eu acho que a pessoa que dirigia viu que eu vinha descendo, numa fração de segundos calculou o tempo que eu gastaria passando, olhou para o lado contrário, viu que dava tempo, entrou com tudo. Só que eu diminuí repentinamente a velocidade e quando a pessoa voltou a olhar para meu carro era tarde demais. Ploft! Essa é minha teoria.

Parei. Fiz um sinal com as mãos enquanto olhava pelo retrovisor... WTF? O trânsito parou nos dois sentidos. Nessa altura dos acontecimentos, Inês já estava prestes a ser enterrada, fui cuidar do que era realmente importante. Olhei para a garota e lhe disse: “pode atravessar!” Ela titubeou por uns instantes, um motoqueiro aproveitou o titubeio e passou como um raio entre os carros e a garota, superado o perigo do motoqueiro, ela resolveu atravessar. Foi o tempo para o trânsito dar uma desatravancada. O veículo que se viu obrigado a parar antes da faixa, não por conta da garota mas porque o carro “abalroou” o meu (esse termo sempre me pareceu horrível) tinha ficado uns  instantes atravessado na rua, se aproximou de mim no sentido contrário, o cidadão que o dirigia abaixou o vidro e torpedeou:
- Porra, mano, você fez esse furduncio todo só por causa dessa mina?
Confesso que fui pego de surpresa, não consegui raciocinar bem na hora e só me ocorreu dizer o seguinte:
- Cara, o trânsito está parado! Deixa a mina atravessar na faixa!
A garota que ainda terminava de atravessar em frente meu carro me olhou com um certo olhar de agradecimento e seguiu sua vida. O maluco motorista acelerou e sumiu, xingando-me.
Superado o idiota do sentido contrário, pensei com meus botões: agora só falta essa louca me xingar também! Já tinha visto que era uma mulher que dirigia o outro veículo. Estacionei mais adiante, ela estacionou próximo, era um carro japonês novo...
Veio uma japinha toda arrumada e perfumada (o crédito do perfume deve ser dado à minha imaginação), toda preocupada:
- Desculpa, moço... Amassou seu carro? Eu estava com pressa!
Olhei e percebi que ela tinha se chocado contra a roda do veículo (havia sinal do choque no pneu) e sobrou apenas um discreto risco na lataria.
- Ah... deu uma riscadinha aqui, mas não é nada!
- Ai... desculpe.
- Sem problemas! Vai em paz!
Ela me estendeu a mão, demos um aperto de mão e ela voltou toda encolhida no seu salto para o veículo, com minha bênção, em direção à superação do seu atraso.

A SELVA

No dia anterior voltava do trabalho da Flávia pela Thales dos Santos Freire, que a propósito dá na Caminho do Pilar, no sentido contrário. Eu a tinha deixado no trabalho como faço quase todos os dias. Naquele horário da manhã, no trecho próximo ao cruzamento com a Pereira Barreto, o trânsito é muito pesado. Quando está muito complicado, eu entro à direita e depois, lá embaixo, volto à esquerda, e retomo à Thales dos Santos Freire no seu último semáforo antes da Pereira Barreto.

Estava uma completa muvuca no semáforo, tanto que eu era o segundo na fila e quando o semáforo abriu pela última vez antes de eu poder entrar, somente o carro que estava na minha frente passou (o cara era lerdinho mesmo). Esperei minha vez. Enfim, quase sempre vigora a lei da selva. O semáforo abriu, os carros fechando o cruzamento ainda estavam parados até que começaram a andar. Tinha um bem na minha frente. Deixei passar. O outro aproveitou a deixa e fez “trenzinho” atrás. Deixei esse também. O terceiro também já foi indo como quem não queria nada. Aí nãããooo!!! Pessoal é folgado demais! Não deixei passar.  Forcei um pouco a entrada e bloqueei a passagem do carro. A pessoa ficou extremamente irritada. Ou então sua mão grudou de repente na buzina. Sei lá. E meu carro tem um problema: se alguém buzina de forma estúpida numa situação dessas, de repente ele fica bastante lento. É meu carro, não sou eu. Por favor...

Enfim, entrei na rua e o outro carro grudou atrás do meu. Beleza. Lá na frente, já perto do semáforo, mudei para a direita porque ia manter a direita mais adiante mesmo e o semáforo estava fechado. O carro emparelhou comigo, uma SUV, e a pessoa começou a abaixar o vidro. Pensei: eu mereço, viu? Mas resolvi não brigar. Assim que o vidro baixou completamente, eu cumprimentei, sorridente:
- Bom diaaaaaaaaa!
Era uma distinta senhora, elegantemente vestida:
- Pra que isso? Essa hora da manhã???
- Isso o quê?
- Pra que me fechar daquele jeito? Quase que bati o carro!
Mentira, estávamos bem devagar.
- Ué, você não viu que o semáforo já tinha fechado pra você?
- Não senhor! Você passou no vermelho!
- Eeeuuuuuuuu?
- Sim, senhor!
Bem, ficamos naquela alguns segundos até que eu disse: “ok, ok, passei no vermelho, não vamos brigar por isso!” Eu não iria discutir mais com aquela mulher.
Daí ela começou a me dar lição de moral!
- Você pensa que só você está atrasado? Blá blá blá!!!
Juro que eu fiquei de bobeira. Na hora eu pensei em dizer: não, eu moro aqui do lado e estou totalmente sem pressa. Mas não disse. E me arrependi depois, porque seria legal ver a cara da cidadã mais enfurecida ainda. Bem, pensando bem, foi melhor assim...
Juro também que, na hora, por um segundo, quase acreditei que a mulher tinha achado que eu tinha passado no vermelho mesmo.
No mesmo dia, mais tarde, quando fui buscar a Flavia, não peguei a rua lateral e fui pela Thales do Santos Freire, somente para verificar o ponto de observação do semáforo, para ver se a mulher tinha avançado tanto no cruzamento a ponto de não ver que o semáforo já tinha fechado para ela.
Infelizmente não era o caso: ela tinha total condição de ver o semáforo fechando. Ou a mulher surtou ou era muito cara de pau mesmo.
Eu, hein?

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