sábado, 1 de dezembro de 2012

Porque não condeno quem come carne de porco

Os porquíveros


Setembro de 2014. O mundo não havia acabado em 2012, para desespero de alguns, a vida na Terra continuava aquela mesmice chata de sempre, judeus e palestinos se matando, ricos explorando pobres, gente brigando em vez de se amar, enfim, até que, numa tarde típica de setembro, o inacreditável acontece: cai uma capsula do céu. Em São Francisco. Mais especificamente em Castro. Talvez tão impressionante tanto quanto a queda inesperada é o fato de cair em uma região metropolitana dos EUA. Por que não no quintal da minha casa, na cabeça daquele vizinho chato e imoral ou no meio do deserto do Saara? Bem, a Providência sabe o que faz.

Imediatamente a Nasa entra no circuito e descobre ser uma cápsula alienígena. Meses de estudos e descobrem que a cápsula é um engenhosíssimo aparato movido a energia estelar que contém informações de um minúsculo planeta da constelação de Alfa Centauro, planeta tão minúsculo que nossos mais potentes telescópios não foram capazes de detectá-lo. O aparato poderia ser ligado depois de pressionado 10 segundos e 24 centésimos e exibia um monte de informações em código binário. Anos de pesquisa com seus melhores cérebros e a Nasa consegue decifrar o conteúdo da cápsula que, em resumo, contém informações sobre o planeta e sobre sua cultura. Daí, o mais impressionante: o planeta é habitado por seres vivos inteligentes, humanoides e possui um ecossistema muito parecido com o da Terra. Tanto que os terráqueos resolvem batizá-lo de Nova Gaia. Por fim, descobrem que os novagaianos, muito mais avançados cientificamente que nós, estão convidando os terráqueos, por meio de um representante, para conhecer seu planeta. Simplificando, os novagaianos passaram uma série de instruções que resultavam no envio de uma mensagem intergaláctica que, uma vez recebida por eles em questão de horas, implicaria no envio à Terra de um veículo intergalático que, por questões que a ciência deles ainda não resolvera, comportaria apenas um passageiro.

Como tudo nessa história é fabuloso, eles resolvem mandar um cientista da Nasa, brasileiro! Brasileiro? Pois é, o Joãozinho. A argumentação é que, por ser um povo muito sociável, que teoricamente se adapta em qualquer situação, o perfil do brasileiro era o mais indicado. Na realidade, apesar de brilhante, o cientista não passava de um trollador, do tipo que perde o amigo mas não perde a piada. E a Nasa já meio de saco cheio dele – inclusive já havia quem se demitira da Nasa, cientistas até mais brilhantes que ele, por conta do seu perfil trollador, enfim, um cara inconsequente – resolvera se livrar dele: Já que os norte-americanos estavam receosos da aventura interplanetária não dar muito certo, se fosse para queimar alguém, que fosse o inconveniente brasileiro. A lá se foi nosso Joãozinho.

Por ter uma tecnologia muitíssimo mais avançada que a nossa, em algumas horas nosso representante planetário já estava em solo novagaiano cuja atmosfera, inclusive, era absolutamente similar à da Terra. Durante as primeiras horas o submeteram a uma máquina que leu todas as informações químicas, elétricas e sei mais o que do seu organismo, de forma que aprenderam muita coisa sobre a Terra , até mesmo o seu idioma nativo, imaginem!, o português. Por outro lado, desenvolveram rapidamente um programa que, conectado ao seu cérebro por meio de alguns eletrodos, fê-lo aprender rapidamente sobre a língua e cultura do lugar. Acho que já vi esse filme antes...

O intercâmbio durava algumas semanas terráqueas antes de ele voltar para casa e lá se foi nosso herói a imergir na realidade novagaiana. A primeira coisa que lhe chamou a atenção e que, na realidade o chocou bastante, é que, apesar de humanoides, eles se reproduziam de forma assexuada. Não havia cópula e não havia separação de masculino e feminino. Os seres nasciam de um processo muito parecido ao humano, algo semelhante com a placenta, mas independente do ato sexual; os seres daquele planeta eram capazes de provocar isso apenas na sua idade adulta. A geração de um semelhante se dava pela combinação de hormônios e o desejo de se reproduzir, estado de consciência que se adquiria somente na fase adulta da vida. E havia limites para a reprodução que dependiam de aspectos que vamos chamar de psicológicos e que variavam de indivíduo para indivíduo. Portanto, havia a tradicional família também, formada pelo(a) progenitor(a), que era um ser capaz de cuidar sozinho(a) da sua cria. Inclusive, eram mamíferos parecidos com os nossos, com glândulas mamárias e tudo o mais. Na idade adulta eram seres andróginos, bastante sociáveis, mas que não desenvolviam atração mútua. Havia, sim, o instinto materno/paterno em relação às suas crias. Portanto, tinham também sua família celular tradicional.

E havia mais semelhanças e diferenças que, para encurtar a história, vamos nos fixar nas mais importantes: todos eles tinham a pele meio rosada: não havia a nossa riqueza genética. Da mesma forma que os terráqueos, o conhecimento deles havia se desenvolvido ao longo das eras e, portanto, eles tinham sistemas muito parecidos com os nossos: as mitologias, as crenças e o conhecimento científico. Impressionante também o conceito de Deus existente lá, idêntico ao terráqueo. Isso levou nosso Joãozinho, um cristão temente a Deus – diga-se de passagem – a firmar mais ainda sua fé na existência de um deus pessoal. Afinal, nesse vasto universo, os seres humanos haviam conhecido outra civilização alienígena que continha basicamente os mesmos fundamentos de crença. Coisa linda de se ver. Tinha que existir um Deus inteligente por trás disso tudo e, obviamente, só poderia ser o mesmo Deus venerado na Terra. Seria improvável que não fosse assim.

E, continuando nas semelhanças, eles também eram profundamente religiosos, tinham seus cultos, suas religiões, a maioria delas monoteístas. Para finalizar o paralelo, coincidência num sentido e estranheza absurda em outro, se eles não tinham a sexualidade como conhecemos, eles possuíam uma pulsão muito parecida à nossa sexual, mas em relação à alimentação: se, para nós, tudo gira em torno do sexo, para eles, tudo girava em torno da comida. E não era sem razão porque a comida tinha uma relação direta com a capacidade de reprodução deles. Eles eram essencialmente carnívoros – e na Nova Gaia os animais eram os mesmos da Terra, algo impressionante! O prazer supremo daquele planeta era uma picanha maturada. No entanto, havia um animal que era a exceção, uma abominação: o porco. Entendamos o motivo.

Comer carne tinha a ver com a capacidade reprodutiva deles porque uma proteína somente encontrada nos animais era a que desencadeava a capacidade de reprodução deles. Eles até tinham, no livro sagrado deles, o relato da criação dos humanoides novagaianos: depois de criar o mundo, no 24º dia Deus escolhera um animal, extraíra seu fígado e, dele, havia feito o novagaiano. Depois, Deus descansara no 25º dia. Portanto, a essência da existência deles, a capacidade de sua reprodução consistia em consumir a proteína carnívora. Sem isso, eles não se reproduziriam em novos seres, a célula mater da família deles se desintegraria, enfim, toda aquela história que já conhecemos. A carne do porco tinha um problema: possuía outra proteína, ao longo do seu desenvolvimento científico eles haviam percebido isso, que tornava os novagaianos estéreis. A implicação religiosa disso era dramática: não reproduz, é um abominável, coloca em risco a célula mater da família. Se Deus havia feito o novagaiano para se reproduzir por meio da ingestão de proteína carnívora, por que comer carne de porco, que causava o efeito contrário? Afinal, o primeiro ser humanoide daquele planeta, criado por Deus a partir do fígado de um animal, se chamava Carnívoro e não Porquívero!

A questão era mais complexa: para a maioria das pessoas daquele planeta – e isso deve ter relação com a possibilidade de se reproduzir – era asqueroso comer carne de porco. Naquele planeta, quando preparada, invariavelmente a carne ficava com uma coloração próxima à da pele deles e isso causava uma repulsa muito grande nos novagaianos. O pior é que havia quem gostava daquilo! Eca! Havia uma polarização muito grande. A maioria das pessoas acreditava que o gosto pela carne de porco era resultado de hábitos alimentares degenerados adquiridos ao longo da vida. Outros acreditavam que as pessoas já nasciam com uma tendência a gostar de carne de porco. O fato é que a questão era muito polêmica e a polarização se dava mais no âmbito religioso: se Deus havia criado os novagianos para se reproduzirem e constituírem família a partir da ingestão de proteína animal, obviamente era pecado comer aquela carne asquerosa, a suína, que ainda deixa os novagianos estéreis. Joãozinho tinha bastante dificuldade em entender o raciocínio, mesmo porque, como bom brasileiro, ele não dispensava uma suculenta bistequinha de porco. No entanto, uma coisa bastante curiosa era o fato de que algumas pessoas não gostavam de comer carne e se tornavam vegetarianas. Bem, até aí tudo bem: como vegetais não pareciam asquerosos para a maior parte dos novagaianos e a maioria deles até incluía os vegetais na sua dieta. Mas, o fato é que tais novagianos, por não consumirem a proteína da carne, resultavam estéreis também. E aí, eles não eram uma ameaça à célula mater novagaiana? Claro que não! Havia muitas crianças novagaianas órfãs, por diversos motivos, e um vegetariano poderia adotar algumas dessas crianças e tudo bem. E os “porquíveros”, também não poderiam? Claro que não! Tais degenerados comedores de carne de porco eram um perigo à célula mater novagaina, seriam uma má influência às crianças novagaianas. Joãozinho chacoalhava a cabeça para pegar no tranco e jurava não entender nada...

Além do mais, havia a questão da aparência física: a ingestão da proteína suína gerava um efeito “colateral”: as sobrancelhas dos comedores de carne suína se juntavam com o tempo e se tornavam “monocelhas”. Horrível. Era fácil identificar os comedores de carne suína por isso. Na realidade, por uma questão genética ainda não compreendida, alguns comedores de carne suína não desenvolviam esse efeito colateral. E havia novagaianos que, apesar de não consumirem carne suína eram “premiados” como “monocelhas”. E, pra piorar, ainda não estava claro se a “monocelha” era resultado da ingestão da carne suína (parecia que sim) ou uma pré-disposição genética. O fato é que novagaianos dotados de “monocelhas” eram estigmatizados, muitas vezes alvo de violência por parte de pessoas que odiavam esse tipo de novagaiano: “morra, comedor de carne de porco safado!!!”. Uma coisa triste de se ver e que cortava o coração de Joãozinho, o trollador. Sem falar nos novagaianos que morriam de vontade de provar uma bistequinha de porco assada, mas não tinham coragem de sair do forno. Esses eram os mais aguerridos.

A coisa chegou a tal ponto que, naquele planeta, os religiosos mais dogmáticos condenavam os comedores de carne de porco, por macularem a sagrada comida, instituída por Deus para eles se reproduzirem, comendo carne de porco. Ocorre que, naquele planeta, nem todos eram religiosos mais tradicionais, muitos sequer religiosos. E Joãozinho, um amante de uma bistequinha de porco, ainda que isso parecesse uma abominação para a maior parte dos novagaianos, não entendia porque os que apreciavam essa delícia da culinária eram obrigados a se privar disso justamente porque os religiosos achavam que era pecado! Se tais novagaianos “porquíveros” não pensavam assim, ainda que estivessem violando a crença mais profunda dos novagaianos crentes, por que eles deveriam se abster de comer a carne de porco? Não era todo mundo livre naquele planeta? Não diziam que cada um era livre para viver de acordo com sua consciência? Outra coisa que deixou Joãozinho intrigado foi o seguinte: se Deus criou mesmo os novagaianos, e lhe parecia razoável, como bom cristão, uma vez que Deus deve ser tão infinito que não está limitado a um sistema religioso de um planeta nesse universo tão imenso, por que não simplificou as coisas? Não seria mais fácil ter impedido que aparecem porcos naquele planeta? Ou será que porco é tudo isso de ruim que falam por lá? E os vegetarianos estéreis? Que confusão...

Bem, havia uma série de questões implicadas nessa polêmica toda. Como o planeta também possuía um sistema de leis sofisticado, eles estavam às voltas com a criação de uma lei que permitisse aos comedores de carne bovina adotar crianças. Como assim???, pensou Joãozinho. Bem, a verdade é que, exceto esse aspecto curiosíssimo das singularidades de Nova Gaia, o restante do planeta lhe pareceu uma delícia. Entretanto, ele nem em sonhos comentou com alguém que era um fanático por bisteca de porco. Já pensou se descobrem? Ele preferiu não arriscar.

A verdade é que foram algumas semanas terráqueas muito enriquecedoras para ele e, quando estava prestes a embarcar de volta à Terra, ele já estava com saudades, apesar do pensamento recorrente que lhe assaltava sempre que ele pensava na carne de porco: “que pessoal mais estranho...” De volta à terra, nas horas em que passou no veículo intergaláctico, enquanto repassava um poucos suas experiências em Nova Gaia e pensava no que lhe esperava na Terra, uma ideia cruzou seu cérebro: assim que chegasse em casa, iria procurar seu vizinho, o Serginho, aquela bichinha, que ele tantas vezes havia hostilizado, e lhe daria um longo e afetuoso abraço.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Duas em um milhão

O país que eu mais viajei foi a Colômbia. Foram mais de vinte viagens num total de mais de 380 dias de estada naquele país. Eu viajava tanto que me tornei conhecido dos funcionários do aeroporto de Bogotá. Sem falar que, por duas vezes, implicaram comigo na alfândega, afinal, o que eu tanto fazia na Colômbia, se não tinha visto de trabalho? Depois da segunda implicação, falei para as empresas que me contratavam que, sem visto de trabalho, eu não iria mais. Foi assim que passei a viajar para a Colômbia com vistos de trabalho.

Tantas passagens pelo aeroporto, no mínimo umas 40, devem ter rendido algumas histórias. E, de fato, renderam. Não só as passagens nos aeroportos, mas as viagens em si. Lembro-me uma vez, por exemplo, que embarquei em São Paulo de sandália e bermudas (fazia mais de 35 graus e eu já tinha perdido a cerimônia de viajar de avião – chega um momento, em tantas viagens seguidas, que o cidadão não quer saber mais do ritual). Relapso, como sempre, não me ocorreu verificar antes como estava o tempo em Bogotá. Quando desembarquei no aeroporto, eu era o único extraterrestre recém-chegado de Mercúrio. Enquanto todos estavam abrigadíssimos em seus casacos de pele, eu tive que penar quase 1 hora tiritando de frio.

 

Encontrar com pessoas famosas também é algo que já me aconteceu algumas vezes. Numa das ocasiões, eu estava na fila de check-in com minha amiga Alejandra, que sempre me acompanhava ao aeroporto, e lhe contei, impressionado, sobre a beleza estonteando de uma moça um pouco mais à nossa frente. Ela concordou e me disse que a conhecia não se recordava de onde. Minutos depois ela se lembrou: “Ah, é a Natalia Paris!” Realmente, aquela mulher é de outro mundo. Aliás, as mais belas modelos colombianas são todas deslumbrantes. Da primeira vez que pisei em solo colombiano, as colombianas me pareciam feias, até mesmo as artistas de novela. Entretanto, depois que me acostumei com o biótipo da mulher colombiana, descobri sua beleza. A mulher colombiana é realmente bonita, não tanto a justificar o que pensam alguns colombianos chauvinistas, que afirmam ser a mulher colombiana a mais bonita das Américas. Mas, na média, são muito bonitas. Eu trabalhei durante um tempo com o pessoal de um escritório de uma empresa química em Bogotá e era impressionante a quantidade de mulheres lindas. Mesmo sabendo que a incidência de beleza nas camadas mais altas da sociedade é maior (dizem por aí que não existe mulher feia; o que existe é mulher pobre), era evidente que a beleza era um dos itens de grande peso na contratação. Apesar do colírio para meus olhos que aquelas mulheres representavam, acho que as feias deveriam fazer um protesto, afinal, aquilo me parecia beirar a discriminação.

 

Voltando ao aeroporto de Bogotá, engraçado mesmo foi em outra ocasião. Estávamos conversando pelo hall principal do aeroporto e, de repente, a Alejandra teve um repentino surto de tiete descontrolada: “O Rincón! O Rincón!” Lá estava, o negrão de quase 2 metros de altura, à nossa frente. “Obadias, tira uma foto com ele! Eu amo o Rincón!” Que mico! Eu fiquei meio sem ação, pelo inesperado da situação e, naquele instante, não me ocorreu idéia melhor: aproximei-me do Rincón com a Alejandra e ela, descontrolada, pediu para ele tirar uma foto comigo; o cara – super simpático – posou do meu lado e tiramos a foto. O gigante e o rato. Ficou uma foto engraçada. Só muito depois que eu me lembrei que a segunda coisa a fazer era pedir para a Alejandra se postar ao lado dele e eu tirar uma foto também, para sua feliz recordação de tiete. Só que não me ocorreu. Da próxima vez que me encontrei com Alejandra, pedi-lhe desculpas por não ter pensado aquilo naquele momento tão inesperado. E ela, uma tão adorável colombiana, estava mais preocupada comigo e com a recordação que eu poderia exibir aos meus amigos, algo que eu nunca fiz (que ela não saiba disso). Ela sorriu e disse que tudo bem: só o fato de eu ter tirado a foto com ele já tinha valido a pena.

 

Numa outra ocasião, quando ia para Bogotá, me chamou a atenção a forma apaixonada que um casal de pombinhos se comportava no avião. Pareciam em lua de mel. Ele não parecia tão colombiano, mas ela era uma autêntica colombiana. Fiquei toda a viagem ocasionalmente observando-os de soslaio, afinal o amor em sua forma mais apaixonada é algo bonito de se ver. É inspirador. Eu acredito que até um sorriso se esboçava nos meus lábios quando os observava. O amor é lindo! Quando descemos do avião, por algum momento me esqueci do casal de pombos apaixonados. Lembrei-me deles quando vi a colombiana sozinha na fila (as filas na alfândega de Bogotá são lentas e irritantes) e o rapaz em outra fila, bem mais à frente. Achei estranho, mas acreditei que somente um motivo muito forte e premente teria separado aquele tão apaixonado casal, quiçá, recém-casados. Relaxei. Por acaso, quando me dirigia ao estacionamento (provavelmente, naquela viagem, o chofer já havia dito que me esperaria no estacionamento), encontrei a pombinha sendo alegremente esperada por suas duas filhas pequenas e seu marido, que lhe deu um beijo típico daqueles homens saudosos quando reencontram suas amadas. Algumas viagens depois, quando tive que passar no consulado brasileiro em Bogotá, para que eles autenticassem uma assinatura minha, descobri que o Ricardão trabalhava lá.

 

Outra vez, tinha uma viagem marcada para uma segunda-feira de manhã. Normalmente eu viajava aos sábados no final da tarde, pela Varig. Mas naquele fim de semana tínhamos uma conferência missionária em nossa igreja e, dentre as atrações internacionais, estava o missionário radicado em Cúcuta, Colômbia, e grande pregador brasileiro, pastor José Sartirio dos Santos. Como eu não podia viajar durante o fim de semana, afinal eu liderava a parte musical do evento, o primeiro voo disponível era o da segunda de manhã, pela Avianca. Quem se senta do meu lado? O Sartirio em pessoa. Muita coincidência. Não havíamos nos falado durante a conferência mesmo porque era um mega evento e ele só me viu porque eu liderava a música e regia o coral. Do contrário, ele provavelmente nem desconfiaria que eu estivera presente no evento. Conversamos um pouco e eu fiquei meio ansioso, meio desconfortável, afinal queria proporcionar-lhe uma boa viagem, mas não sabia exatamente o que ele gostaria de conversar. Depois de explicar o que eu fazia e mais algumas amenidades, o meu repertório de assunto preparado para um momento tão inusitado se esgotou. E, bingo!, acho que ele era tão tímido quanto eu diante de um desconhecido, porque não se animou muito a esticar mais a conversa (ou então Deus lhe revelou que eu era um infeliz caso perdido e ele nem se animou a esticar o assunto). Fomos quase calados até o fim da viagem e o saldo do encontro foi um gentil convite que ele me fez para visitar Cúcuta assim que possível, intento que eu mantive durante algumas viagens a Bogotá, mas que, algum tempo depois, desisti. Foi uma viagem agradável, apesar do quase silêncio, o que me fez me lembrar de outra ocasião em que viajei com outro pastor, dessa vez um adventista. O sujeito era bastante falante. Na hora da comida emendou uma oração (o que o pastor Sartirio, discreto, não fez), evangelizou a aeromoça que nos atendia (mais um pouco e ele faria o apelo) e me proporcionou uma das melhores viagens que já tive, com sua conversa muito bem articulada e suas repostas enriquecedoras sobre minhas questões a respeito do adventismo.

 

Mas o encontro mais inusitado mesmo foi uma vez quando eu voltava da Colômbia. Mais especificamente, quando esperava o voo numa das salas de espera, juntamente com os demais passageiros. Eu, de minha parte, deveria estar lendo algum livro. Foi quando, por um momento, o tempo parou. Chegou chegando, do jeito que só elas sabem fazer, uma morena de fechar o aeroporto (porque o comércio ela já deveria ter fechado quando da sua passagem por lá). Era uma coroa e se vestia sem exageros. Ocorre que ela era um exagero de beleza. E ainda tinha olhos verdes. Nem precisa dizer que os radares masculinos da sala começaram e fervilhar – alguns travaram. E eu, naturalmente, como também sou filho de Deus e não sou de ferro, quando dei por mim, já estava com a leitura do livro interrompida e com um “uau!” preso na garganta. A mulher era um espetáculo.  Curioso como certas mulheres ficam mais belas à medida que amadurecem!; deveria ser o caso dela, uma desconhecida quase Luíza Brunet[1]. Bem, depois que a comunidade masculina se acalmou e os ponteiros dos relógios se recuperaram, o tempo voltou a se mover.

E como o tempo se move, algum tempo depois eu estava sentado na poltrona do lado da janela, a poltrona do meu lado vazia. Por pouco tempo. Adivinha quem se senta ao meu lado? Pois é, a vida é irônica mesmo. Em carne e osso, em três dimensões (e que dimensões), toda perfumada, a deusa. Entrei em pânico, uma vez que sou caliginefóbico. E agora? Fiquei acuado, músculos retesados, esperando para ver no que aquilo ia dar. Ela me perguntou qualquer coisa e eu lhe respondi qualquer coisa também. Naquela altura do torneio, eu faria o que ela quisesse, me fingiria de morto, o escambal. E não é que a coroa era simpática? Tentou arriscar um português e saiu um portunhol macarrônico. Até então eu nunca tinha percebido como uma colombiana ficava bonita tentando falar português. Escorrega daqui, escorrega dali, a revelação: ela era carioca. Carioca??? Quase não resisti e por pouco não lhe passei uma suprema e assanhada descompostura para os meus padrões: “bonita assim, tinha que ser carioca!”[2].

Ela então me explicou que – não me lembro bem como – conheceu seu marido advogado colombiano no Rio de Janeiro, depois se mudaram para Manaus e, por fim, ele voltou para a Colômbia onde se radicaram. Já estava na Colômbia havia uns 15 anos e, pela primeira vez, estava retornando ao Rio de Janeiro para rever sua família, daí sua dificuldade com o português, que ela iria aproveitar e treinar comigo. Lá pelas tantas, não me lembro como, descobriu que eu sou cristão evangélico. Foi quando ela se entusiasmou de vez. Explicou-me que seu marido era pastor e ela pastora. Durante os dias que antecederam a viagem ela orara a Deus pedindo muito que, no voo, tivesse a companhia de outro evangélico, algo que ela, inclusive, havia dito à sua congregação. Via em mim, portanto, a resposta das suas orações (eu estava podendo, hein?). O fato é que essa foi, provavelmente, a única viagem de retorno que não preguei os olhos. A simpática e lindíssima carioca falava pelos cotovelos. Conversamos e rimos bastante. Foi uma viagem memorável.

 

Por falar em rir bastante, numa outra viagem, sentou-se ao meu lado uma garota muito simpática. Provavelmente também estávamos voltando de Bogotá. Superada minha timidez inicial – porque a garota provavelmente puxou conversa – engatamos um bate-papo para lá de animado. E a garota falava, hein? Éramos dois tagarelas, conversando e rindo muito. Depois do jantar, eu lhe sugeri que dormíssemos um pouco, o que ela concordou. Nos voos da Varig, a manta de dormir geralmente ficava embaixo da poltrona, dentro de um saco plástico. Ela se abaixou e pegou sua manta. Eu fiz o mesmo, mas não encontrei o saquinho. Encontrei apenas a manta que parecia não estar muito bem dobrada. Ao tentar tirá-la, percebi que ela estava enroscada. Tentei com um leve puxão e não consegui. Olhei para a garota, demonstrando com minha fisionomia que algo não estava bem com a manta e, após alguns puxões, a manta saiu. Toda desdobrada, o que me fez crer que ela estava tão enroscada que se desdobrou na minha tentativa de desenroscá-la. Quase imediatamente depois de eu mostrar a garota o meu troféu, a manta toda desdobrada, o passageiro do banco de trás me dá uns tapinhas no ombro e me diz, com certa irritação na voz: “Essa manta é minha!” A garota teve um acesso de riso tão forte que eu achei que não iria parar mais; eu, particularmente, cheguei às lágrimas. Um pouco demais, já controlados, fomos dormir.

 

Já que estou falando de aeroporto, lembro-me de outro episódio que representou um périplo por três países, fora o Brasil. Estava trabalhando num projeto em uma petroleira em Caracas e viajava com bastante freqüência. Na época, a internet não estava tão avançada, e os viajantes tinham que sacar um documento chamado PTA quando a reserva era feita à distância. Eu tinha uma viagem marcada para o retorno a Caracas e o pessoal demorou muito para enviar o PTA. Depois de minha insistência para que não perdêssemos a data do embarque, eles mandaram o número do PTA. Faltavam alguns dias para o embarque. Dirigi-me a uma agência da Varig, na Av. Paulista, em São Paulo-SP, saquei o bilhete e, dias mais tarde, quando fazia o check-in, a moça do balcão colocou uma fita na minha bagagem de mão que dizia “First Class” e me convidou para ir à sala VIP. Aquilo me pareceu estranho, mas, para não pagar mico, agi como se fosse a coisa mais natural do mundo. Quando peguei o bilhete de volta, dei uma olhada no preço da passagem. 1.900 dólares! Caramba, a passagem costumava sair por menos de 900 dólares! Ficou claro o que havia acontecido: na desorganização do pessoal de Caracas, eles acabaram perdendo o prazo para conseguir me encaixar numa classe econômica. Para não ter que rever as agendas, como essas empresas nadam em dinheiro, reservaram uma passagem na primeira classe. Ótimo. Saí ganhando. Teria dois trechos voados em primeira classe. Era só aproveitar.

Logo ao entrar no voo, uma aeromoça veio com uma carta de vinhos. Escolhi um vinho que me pareceu interessante e fui bebericando. Depois vieram as comodidades de sempre (para aqueles que viajam de primeira classe, obviamente). A poltrona era muito confortável, havia quase que uma mesa para almoçar, o espaço para cada passageiro era enorme. Quase todos os passageiros pareciam executivos, com a exceção de um adolescente sentado um pouco próximo a mim que tinha um olhar tipo eu-sou-o-dono-do-mundo, provavelmente filho babaca mimado de algum industrial. Durante praticamente toda a viagem uma aeromoça ficou próxima a mim e até engatou uma conversa de teor pessoal: “Você mora em Florianópolis?” “Não, essa camiseta a comprei quando passei uma temporada de férias lá”. Senti-me até um pouco importante por conta do tratamento VIP que a aeromoça me dispensou. Tive até a impressão que ela foi mais atenciosa comigo que com os outros passageiros que ela atendeu (eu estava podendo, hein?).

Já em Caracas, precisei dar uma passadinha em Barranquilla, Colômbia, para atender a uma necessidade de última hora em uma empresa química onde eu estava tocando outro projeto. Portanto, em vez de voltar direto para São Paulo, tive que mudar meu trajeto. Peguei um voo direto a Barranquilla, que sai de Caracas, e fui resolver o problema. Alguns dias mais tarde seria meu aniversário e eu tentei resolver logo tudo para estar em Santo André no meu aniversário. No fim das contas, saí de Barranquilla no dia 17 de abril, véspera do meu aniversário, num trajeto Barranquilla-Bogotá-Lima-São Paulo. Minha esperança era que, em Lima, o trajeto mais longo, eu desfrutasse do conforto da primeira classe novamente, já que tinha desmarcado o voo de volta pela Varig que, pelos meus cálculos, teria as delícias da primeira classe novamente. Cheguei a Lima na madrugada do dia 18. Depois de umas 3 horas de espera, embarquei no avião. Como alegria de pobre dura pouco, vi minha chance do conforto da primeira classe voar rapidamente tão logo embarquei no avião: era um caquético avião da Aeroperu. Por sorte, me reservaram a primeira classe, cujo conforto era um pouco melhor que a classe econômica da Varig. E ainda tive que aturar um executivo irritado que sentou ao meu lado, por problemas no voo, que falava cobras e lagartos da Aeroperu, inclusive um suposto episódio de um voo que, segundo ele, teria sido uma zona total: até a aeromoça teria transado com alguém (um passageiro ou um tripulante, não me lembro). Como eu não estava encarando o cidadão, não pude perceber se o seu nariz crescia enquanto ele despejava sua irritação em cima de mim. Pobre é uma desgraça, não é mesmo? O pão sempre cai com a parte da manteiga (aliás, margarina)[3] virada para baixo. Sem falar que durei exatas 23 horas do momento em que saí do escritório em Barranquilla até chegar à minha casa.

Meses mais tarde, num outro voo da Varig, do Brasil para algum país, vi por acaso aquela simpática aeromoça que havia sido tão gentil comigo no voo de primeira classe. Ela até me olhou, muito rapidamente, instante que eu pensei em esboçar um sorriso do tipo lembra-de-mim? Mas aí eu me lembrei que, daquela vez, eu estava na classe econômica. Nem que ela se lembrasse de mim, o que seria virtualmente impossível, naquela seção do avião eu não passaria de uma estatística.

 

E, por falar em voo do Brasil para algum país, semanas depois do meu retorno daquela viagem em que conheci a bela carioca, eu tive que voltar à Colômbia. No voo de ida, aconteceu algo inusitado. Já dentro do avião, esperando o resto dos passageiros se acomodarem, dou uma olhada à minha volta (eu estava na fila esquerda, do lado do corredor) e, quem eu avisto umas três poltronas atrás, na fila do meio? Acertou, caro leitor! Ela mesmo, a quase Luíza Brunet, se você me permite, aquela que havia se sentado ao meu lado no voo de Bogotá para São Paulo, alguns parágrafos acima. Não acreditei! E não é que os contatos da senhora com o pessoal lá de cima, lá do alto, eram fortíssimos, de colocar qualquer Daniel Dantas no chinelo[4]? Ela também mal podia acreditar. Qual seria a chance de isso acontecer? Esperamos todo mundo se acomodar e, como a poltrona do meu lado ficou vazia (que coisa, não?, estou ficando arrepiado – e com um pouquinho de medo, confesso), ela mudou de lugar, e voltamos para Bogotá numa animada conversa, em que ela, dentre outras coisas, falou de sua estada no Brasil.

Já no aeroporto de Bogotá, ficamos juntos todo o trajeto e, na saída, estava o marido, vários irmãos de sua igreja, o cachorro, o papagaio, uma banda de música! Definitivamente, a simpática carioca era muito benquista. “Esse é o irmão do voo do qual lhe falei!” O marido ficou meio sem entender, afinal ela tinha se encontrado comigo na ida e não na vinda. Ela então explicou a coincidência da volta. O marido também era uma pessoa extremamente simpática. Deu-me um cartão com os dados de ambos, endereço e tudo o mais, e me convidou para fazer uma visita à sua comunidade, em Villavicencio. Despedi-me de todo aquele pessoal tão simpático e fui para o hotel. Eu até pensei em visitá-los, mas como Villavicencio fica tão perto de Bogotá que não dá para ir de avião, o pessoal da petroleira me proibiu de fazer o passeio, pois a chance de eu ser parado na estrada por uma “batida” da guerrilha, o que era muito comum, era grande. E se eles soubessem que eu era estrangeiro, era quase certo que eu seria raptado.

 

Aliás, por falar em guerrilha, eu estava em Bogotá quando Ingrid Betancourt foi raptada pelas Farc. Também estava quando a princesa Diana morreu. Também estava quando o prefeito Celso Daniel, de Santo André, minha cidade, foi assassinado. Ainda bem que eu não estava em Bogotá (estava em Santo André) quando o Vítor – meu primogênito – nasceu, mas que teve alguma dificuldade para se adaptar comigo nos primeiros meses de vida porque, a cada retorno de uma viagem, eu tinha que fazê-lo se lembrar que aquele estranho era alguém muito próximo a ele.

 

E por falar em Ingrid, aí vai mais um “causo”. Num desses voos de Barranquilla para Bogotá, houve um problema em Bogotá, o voo inverteu da sua rota e fez uma escala em Medellín, antes de Bogotá. Coincidiu que, ao meu lado, sentara-se uma bela colombiana típica: bonita e com uma tonelada de maquiagem. Era muito simpática a moça. Na conversa ela me disse ser dona de uma fábrica de móveis, que ia a Bogotá a cada 15 dias para lazer e descreveu alguns detalhes – não me lembro agora – que sugeriam uma vida um tanto regalada. A mulher, de fato, sabia viver bem. E, já que o voo tinha desviado para Medellín, tivemos tempo para jogar muita conversa fora e ainda tirar umas fotos. Ela estranhou o fato do avião ter mudado sua rota, coisa que para ela era incomum, afinal os voos daquela rota eram muito regulares e pontuais. No fim, ela me deu um cartão com seus dados e me pediu para ligar quando estivesse de volta à Colômbia.

Alguns meses mais tarde, de volta a Barranquilla, hospedado no magnífico El Prado[5], que me disseram ser de propriedade de narcotraficantes, estava com tempo livre e resolvi dar uma ligada para ela, afinal, poderíamos marcar um encontro para jogarmos mais conversa fora. Ao atender, bastante animada, ela me disse que estava com o noivo, mas, de imediato, marcamos um almoço para alguns dias mais tarde. Ótimo. Alguns dias mais tarde, quando declinei do convite que minhas colegas colombianas de projeto me fizeram para almoçar, a pretexto de ir almoçar com Ingrid (a do avião, é claro, já que não tenho amigos tão importantes como a Betancourt), elas me olharam como quem diz: “o que você vai aprontar?” “Calma, meninas, eu só vou almoçar com a Ingrid e seu noivo!” Chegando ao endereço indicado, notei que era uma casa que chegava a ser modesta. Esperavam-me para o almoço Ingrid, seu noivo (não sei se viviam juntos ou não) e seu filho de oito anos, com uniforme da escola, pronto para ir estudar tão logo terminasse de almoçar.

Tivemos um agradável almoço onde eles me contaram um pouco da cidade, da vida deles (não me lembro dos detalhes) e, quando lhe perguntei da fábrica de móveis, ela me disse que saíra de lá, daquele emprego em que ela era gerente, e estava à procura de outro. Pensei com os meus botões: “Gerente? Tive a impressão que ela havia me dito que era dona...” E a vida social e de lazer intensa? Onde fora parar? Na realidade, sem toda aquela maquiagem, ela até parecia uma pessoal bem mais comum. Seu noivo, inclusive, era parecido a um típico barranquillero, gente simples. Estranho...

Bem, não importava. Importa mesmo é que eles foram extremamente amáveis (como esse pessoal colombiano é simpático!) e me convidaram a acompanhá-los enquanto levavam o filho de Ingrid à escola, o que eu fiz de muito bom grado, no automóvel do noivo de Ingrid, um veículo bem apropriado para alguém de uma vida um pouco mais modesta. Em seguida, me levaram a um tour pela cidade e, embora eu já a conhecesse, eles enriqueceram ainda mais o meu conhecimento a respeito dela. Foram momentos muito agradáveis.

Alguns dias mais tarde, comentando o episódio a uma amiga do projeto, bastante acostumada a viagens entre Bogotá e Barranquilla, uma vez que ela vive em Bogotá, ela não confirmou aquela história que Ingrid havia-me contato a respeito dos voos. Segundo ela, aquela rota costumava atrasar e não era difícil eles inverterem o trajeto Barranquilla-Bogotá-Medellín para Barranquilla-Medellín-Bogotá por conta do tráfego aéreo em Bogotá que sempre foi muito intenso.

No final das contas, cheguei a um acordo com os meus botões: Ingrid era, de fato, uma simpatia em pessoa. Entretanto, para impressionar a outrem, como o ser humano é capaz de mentir, não é mesmo?

 

Para finalizar esse extenso texto, vamos à última história. Há alguns anos atrás, quando fazia um dos cursos de harmonia com o Cláudio Leal, quando descia a pé a Rua Traipú, no bairro Pacaembú em São Paulo-SP, notei que uma pessoa de grande estatura subia a rua em sentido contrário. Eu conheço muita gente e sou conhecido de outro tanto. Portanto, é bastante comum eu me encontrar com uma pessoa, bater o maior papo e me despedir sem ter a menor idéia de quem se trata, pela vergonha de admiti-lo. Mas, sempre que possível, faço um grande esforço para me lembrar da pessoa. Naquele fim de tarde, descendo a rua, pressenti que algo desse tipo poderia acontecer. Eu conheço esse negão! Naqueles poucos segundos em que nos aproximamos, tratei de me esforçar para conseguir me lembrar de quem seria aquela pessoa. Trabalho, igreja, conhecidos, ladrões, vizinhos, uma série de imagens vinham à minha mente, mas eu não conseguia me lembrar. Foi quando nos cruzamos, eu acredito que olhei para ele com aquela cara eu-te-conheço-mas-não-me-lembro-de-onde, ele me olhou, deu um sorriso, cumprimentou-me e eu devolvi o cumprimento também sorridente. É isso, eu conheço esse cara, mas não me lembro de onde! Tanto que ele se lembrou de mim também. Será que é algum porteiro de alguns desses prédios luxuosos da região, já que eu sempre passo por aqui e não estou me lembrando? Se bem que ele estava muito bem vestido para ser um porteiro. Tive ímpetos de olhar para trás, mas não o fiz. E se o cara também olha e me vejo obrigado a parar e engatar uma conversa, novamente com uma pessoa que não consigo me lembrar? Mas, bastaram uns três passos mais e me lembrei: “Caramba, é o Rincón[6]!” Qual a chance disso acontecer?



[1] Ok, caro leitor, concordo que eu forcei na comparação; mesmo porque a Luíza Brunet não tem olhos verdes, tem?
[2] Parece que Gabriel García Márquez também já teve seus momentos idílicos ao lado de uma bela. Ele contou isso com muito mais classe que eu, é claro, no seu conto “El avión de la bella durmiente”
[3] Pobre não tem dinheiro para comprar manteiga, a versão original do ditado.
[4] Já que a relação que eu fiz deve ter sido obtusa, deixa-me explicar. Para quem se lembra, Daniel Dantas, um genial banqueiro, tido como alguns como modelo de empresário agressivo e bem-sucedido e por outros como gângster, foi preso duas vezes na mesma semana e libertado imediatamente – nas duas vezes – pela impetração de habeas corpus, em julho de 2008. A questão é que a sua liberdade sempre foi muito rápida, concedida pelo Ministro do STF, Gilmar Mendes. Muito curioso que um assessor de Daniel Dantas ter supostamente tentado subornar um policial da PF alegando que a preocupação era com a primeira instância porque, em Brasília, Daniel Dantas se garantiria. Fortíssimas as ligações desse senhor com os gângsteres da ocasião no poder, no caso o PT, não? Mas nada comparadas às fortíssimas ligações – nesse caso com a turma do bem – de nossa heroína.
[5] http://www.hotelelprado.com.co/, se não abrir, procura no Google...
[6] Caro leitor, aquela de pensar que o cara era porteiro só porque era negão não aconteceu; foi apenas uma brincadeira para deixar o texto mais interessante, afinal o racismo politicamente incorreto chega a ser engraçado, se não levado a sério, porque aí perderia toda a graça.

domingo, 30 de setembro de 2012

Meu primeiro amor homossexual

Meu amor pela música de concerto começou na minha infância e na Rússia. Eu ouvia de tudo, mas me emocionava mesmo era com os russos. Eu era acometido de um frenesi emocional sempre que ouvia as Danças Polovtsianas com orquestra e coro da ópera O Príncipe Igor, de Borodin. Até hoje não entendo porque aquilo me afetava tanto. Eu era apaixonado por Murssogsky (Uma noite no monte Calvo é demais, por exemplo), Rimisky Korsakov e mais uma lista grande de compositores russos. Quando consegui meu primeiro emprego de office-boy, a primeira compra que fiz foram 2 discos de vinil, em São Paulo: Scheherazade de Korsakov e Pretushka de Stravinsky.

Mas o meu compositor preferido mesmo era Tchaikovsky. As músicas dele eram transcendentais demais para mim. Até fiquei um pouco chateado quando, anos mais tarde, descobri lendo que a música dele foi muitas vezes interpretada como cafona. Depois da minha paixão pelos russos, ampliei meus horizontes musicais de forma bastante ampla, primeiro pelo Europa, sempre a partir do romantismo, depois classicismo, barroco e período mais moderno, nessa ordem, por fim, o novo mundo e o restante da música universal.

Mas, se eu tivesse que escolher o compositor que mais me marcou profundamente, não titubearia: Tchaikovsky. Suas melodias e seus contracantos sempre me tocaram profundamente a alma e, depois que conheci o barroco, eu sempre dizia para mim mesmo que Tchaikovsky era o mais barroco dos compositores românticos, justamente por conta dessa amalgamação entre melodia e contracantos. Fiquei feliz quando, anos mais tarde, li na revista colombiana elmalpensante em uma reportagem traduzida da revista The New Yorker a defesa da mesma ideia.

Minha profunda admiração por Tchaikovsky ficou ainda maior quando descobri que ele foi um homossexual. Minha primeira reação foi: “Está explicado! Somente um homossexual poderia ter tanta sensibilidade assim!”. Quando vi a resenha do livro lançado recentemente no Brasil e que parece ser a biografia mais completa já escrita sobre ele, resolvi comprá-lo e lê-lo o quanto antes: Piotr Tchaikovisky: Biografia, de G. Ermakoff, com tradução de Alexey Lazarev: http://oglobo.globo.com/cultura/biografia-detalhada-de-tchaikovsky-chega-ao-brasil-6214789

Para finalizar, há um detalhe na minha história que me remete à biografia de Tchaikovsky, apenas por uma circunstância parecida: ele manteve uma relação de amizade durante anos de sua via com sua mecenas Nadejda Von Meck, sem nunca jamais tê-la encontrado pessoalmente. Eu também mantenho uma amizade que remonta meus aos meus quinze anos, quando as pessoas se comunicavam por meio de cartas, e que dura até hoje com uma garota que vi pessoalmente apenas uma vez na vida. Não há qualquer tipo de ligação financeira, nem nada, apenas amizade. Mas essa característica de termos essa amizade até hoje, sem previsão para arrefecer, apesar da distância e da falta de contato físico, sempre me pareceu uma relação bem tckaikoviskyniana.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Um sobrevivente de Varsóvia


Domingo passado, no carro, ouvia uma peça de um compositor brasileiro pela Cultura FM, quando meu filho observou que aquele trecho lembrava o final do filme “O menino do pijama listrado”. Disse-lhe que aquele tipo de música servia bem para ilustrar a cena final do filme. Lembrei-me então da peça "Um sobrevivente de Varsóvia", de Schoenberg, e lhe contei a história da peça.

Trata-se de uma narrativa escrita por um judeu sobrevivente do campo de concentração de Varsóvia. O texto é impactante e Schoenberg utilizou o Dodecafonismo (do qual foi o criador e maior expoente) para ilustrá-lo. Não vou me perder em digressões técnicas, mas grosso modo o dodecafonismo é uma forma musical onde os 12 semitons da escala cromática têm igual importância (não existe "centro tonal", dó maior, por exemplo) e as melodias são escritas a partir de uma técnica chamada serialismo em que uma nota não pode ser repetida até que as outras 12 tenham sido tocadas. Daí resultam melodias absolutamente estranhas.

Ouvi certa vez na Cultura FM que, quando a música foi estreada, em 1947, o mundo ainda estava estupefato com os horrores da solução final e, ao final da execução, o teatro ficou paralisado, emudecido, sem esboçar reação. Dada a reação do público, já que não havia muito o que fazer, o maestro resolveu repetir a execução. Ao final dela, o teatro foi inundado por uma histeria coletiva e a execução foi aplaudida por mais de meia hora. Para se ter ideia da comoção que a composição causou. Hoje em dia ela não causa tanta, mas ainda assim é uma música impactante. Eu, quando a ouvi da primeira vez, fiquei bastante impressionado. Tenho uma interpretação em CD, cujo texto é em alemão e ele me parece mais forte, por conta da aspereza do idioma.


domingo, 23 de setembro de 2012

Releitura - Handel’s Messiah: A Soulful Celebration


No final do ano passado escrevi alguns comentários sobre o CD Handel’s Messiah: A Soulful Celebration (http://en.wikipedia.org/wiki/Handel's_Messiah:_A_Soulful_Celebration). Ontem, conversando sobre música em um grupo de discussão, a ideia da releitura de um tema me lembrou desse CD que é uma releitura das partes mais populares (highlights) do oratório O Messias de Handel.

Daí eu fiquei com vontade de restaurar aqueles comentários e publicar aqui:

O CD foi produzido por Quincy Jones em 1992 e é todo superlativo. Vou comentar algumas faixas, para não ficar mais extenso, daquelas faixas em que a releitura da partitura inicial me pareceu mais interessante. Coloquei alguns links do Youtube para ilustrar os comentários.

A audição do CD é muito mais rica para quem conhece bem o oratório de Handel. Alguns links do Youtube são da própria gravação, outros de interpretações

·         01-Overture_ A Partial History Of Black Music – delícia essa abertura com o resumo da música black; simplesmente genial http://www.youtube.com/watch?v=0hUV6KsWyZk  (versão parcial)

·         02-Comfort Ye My People – sublime! esse arranjo é avassalador; é de ficar paralisado diante da força da música black norteamericana (black é black com os negros norteamericanos – o resto é uma pálida sombra, arremedo, da intensidade visceral do black autêntico)  http://www.youtube.com/watch?v=1MTwitfUog8 (a versão do CD é muito, muito superior)

·         03-Every Valley Shall Be Exalted – genial como, já na primeira frase do solista barroco eles mudam radicalmente para a música black. A harmonia é fantástica

·         05-But Who May Abide The Day Of His Coming – o solo inicial – e o retorno a ele –, com a cantora black interpretando a partitura original é sublime http://www.youtube.com/watch?v=dOQtfC5ViBQ&feature=results_main&playnext=1&list=PL58FCA541E4A3676B (não chega aos pés do CD mas serve como referência)

·         06-And He Shall Purify – êxtase total! Esse trecho é baseado em Malaquias 3:3, aquele capítulo da Bíblia tão mal utilizado... A partitura original é uma das mais difíceis que já coloquei no coro assembleiano que regi por mais de 20 anos e, no oratório, só é superada na minha preferência pelo insuperável final “Worthy is the Lamb – Amem”, com sua superlativa fuga e que era a partitura preferida dos coristas do coro (de fato, era uma delícia fazer essa partitura). Outra parte coral do oratório que eu gosto demais (a 3ª preferida) é “His yoke is easy” que, inclusive, me inspirou em uma composição coral que escrevi http://www.youtube.com/watch?v=LTbpW4tpXIk&feature=BFa&list=PL58FCA541E4A3676B&lf=results_main (gravação original)

·         08-O Thou That Tellest Good Tidings To Zion – Take 6 é Take 6. Qualquer comentário é chover no molhado. http://www.youtube.com/watch?v=1Ct9cLEumKQ  IMPRESSIONANTE! Foi o Take 6 genérico mais perfeito que já ouvi. Para os desavisados: não é o Take 6.

·         10-Glory To God – genial a fusão do arranjo coral num estilo “erudito contemporâneo” com aquela loucura funk

·         12-Behold, The Lamb Of God – deliciosa essa versão instrumental arranjada pelo ex-arranjador do Take 6 http://www.youtube.com/watch?v=5kmYpsAD4jI  

·         14-Why Do The Nations So Furiously Rage? – é impossível ouvir essa sem um sorriso nos lábios; que delícia... puro jazz... http://www.youtube.com/watch?v=CoxrHPS2cL8  versão coral, uma pálida sombra da gravação, mas dá para ter uma idéia da idéia do arranjo

·         15-I Know That My Redeemer Liveth – Aleluia! Meus argumentos estão se acabando. http://www.youtube.com/watch?v=e4o8yDjn0_g (gravação original)

·         16-Hallelujah! – a grandiosidade do coro (que não reproduziremos na Comuna por motivos óbvios, dentre eles a falta de... chorus) e a beleza do arranjo (escrito por Mervyn Warren [ex-arranjador do Take6], Michael Jackson [já ouviram falar?] e Mark Kibble [arranjador do Take6]) fazem jus a essa que é a parte mais popular desse que é considerado por muitos o principal oratório da tradição musical ocidental http://www.youtube.com/watch?v=vkbuHu2D_Ro (gravação original)

sábado, 22 de setembro de 2012

Por um fio

Vinte e quatro de novembro de dois mil e oito. Um dia depois do nono aniversário do Vítor. Sete e meia da manhã. Despeço-me dele quando ouço uma mãe gritar desesperadamente ao meu lado:

– Solta, solta! Ele tomou um choque!

Ouço um grito desesperado, o ruído da queda de algo. Olho para o outro lado da rua a tempo de ver utensílios de pintura caindo no chão, enquanto alguns pintores, atabalhoados, não sabem o que fazer.

É então que eu percebo o que aconteceu. Um grupo de pintores se ocupava de seu labor no prédio de um sindicato. Vários pintavam a fachada a partir da calçada e um deles fazia o mesmo a partir de uma laje na altura do 2º andar. Esse pintor manejava seu rolo com um cabo extensor, de cima para baixo. Provavelmente, ao fazer uma manobra com seu rolo para recolhê-lo, deve tê-lo afastado demais da fachada e tocado num dos fios do poste na calçada. Foi quando se deu o acidente. A mãe ao meu lado grita desesperadamente para os colegas do eletrocutado que ele havia tomado um choque e estava caído na laje. Alguém acode: “Chama os bombeiros!” Ante a dificuldade da mãe do grito em digitar 192 no teclado do seu celular, saco o meu e, mais que depressa, aciono o socorro.

Tentando manter a calma, dou as informações de praxe. Rua tal, número tal, no edifício do sindicato. A atendente quer mais detalhes: “Ele está desmaiado?” Grito para um dos pintores que já havia escalado a laje, mas está abaixado e o muro me impede de enxergá-lo. “Ei, o rapaz desmaiou?” Como ele não responde, quem sabe ocupado em tentar reanimar o colega ou talvez ele mesmo desmaiado de susto, informo que provavelmente sim. Entretanto, a lentidão e placidez da atendente me irritam. O infeliz acabou de tomar um choque, sabe-se lá em que estado se encontra e, em vez de mandar logo a porcaria do socorro, ela insiste com perguntas retóricas demais para o meu nível de ansiedade.

– Seu nome, por favor.

Meu nome? Que diferença o raio do meu nome faz nessa altura do torneio? Por uma fração de segundos, penso em responder José para simplificar, como muitas vezes faço quando falo com atendentes ao telefone para evitar que elas se enrosquem tartamudeando por labirintos e escaninhos silábicos na tentativa de acertar meu nome, mas a seriedade do momento exige total sinceridade de minha parte, o que me impede de dizer mesmo que uma mentirinha com a melhor das intenções.

– O...ba...di...as, contesto articulando o mais claramente as sílabas.

– Obadia?

Em outras situações eu faria questão de corrigir: Não! Obadiasss! No plural... Oba, interjeição de alegria e dias, contrário de noites... Isso mesmo! Mas a premência da situação impede que eu me perca em preciosismos ortográficos.

– Exatamente.

– Ok, o socorro está a caminho, responde a fleumática e irritante atendente.

Molhado que já estou da chuva e como todo ser humano decente deveria reagir, entro no sindicato às carreiras, subo um lance de escadas e depois escalo a parede por meio de uma escada que lá se encontra encostada. Encontro o pintor caído, olhos semicerrados mirando quem sabe um corredor com uma forte luz branca, o corpo meio retorcido. O rapaz que chegou antes de mim, um transeunte que passava por acaso no local e que eu imaginei inicialmente ser um dos pintores, me pergunta se eu tenho noções de primeiros socorros. Digo-lhe que não e, enquanto ele tenta fazer uma massagem torácica, me ocorre ligar para minha cunhada enfermeira e, quem sabe, ser orientado por ela. Como desconheço o número do seu celular e não me recordo do número do meu irmão, ligo para casa da minha irmã, a lista telefônica da família. Atende-me o cunhado, sonolento. A Neide está aí? Não. A minha mãe está? Não, mas pode falar. Cara, preciso falar urgente com o Micaías, mas estou sem o telefone dele aqui. Espera aí que vou buscar. Vai logo que é urgente! Alguns eternos instantes depois ele retorna e tenta me dizer o número do telefone. Atrapalha-se várias vezes e insiste em recitar um número de nove dígitos. Francisco, um telefone tem oito dígitos, você está me dizendo um de nove! Espera aí que vou procurar em outro lugar. Mano, vai logo, tem um cara aqui que está morrendo! Uma eternidade depois, o transeunte insistindo na massagem cardíaca e numa única tentativa de respiração boca a boca, meu cunhado volta ao telefone e, finalmente, recita o número correto. Ligo para meu irmão e, surpresa!, o seu telefone se encontra registrado no meu celular. Como não pensei nisso antes? Ele atende, eu lhe explico rapidamente o problema e, quando ele pensa em me informar o telefone da esposa, digo-lhe para esquecer, afinal o SAMU[1] acaba de chegar.

 

A morte é algo estranho. Desde que a crise dos quarenta me pegou aos trinta e cinco anos e eu passei para a segunda metade da minha vida, uma vez que morrer antes dos setenta será algo precoce para minhas aspirações, tenho pensado um bocado sobre minha morte, afinal, a vida é tão boa, por que morrer cedo? E minha missão enquanto ser humano? Não estaria inacabada caso eu passasse dessa para melhor tão jovem? E meus filhos? Órfãos antes do tempo? Cruel. Mas a verdade é que levantamos num belo dia de sol cheio de planos e veja o caso do pintor, a morte nos traga sem a menor cerimônia, se é que o pintor morrerá de fato dessa vez, o que ainda não sabemos. Não é o caso de se desesperar, mas a vida é uma roleta cheia de surpresas. Amanhã pode ser nossa vez. Aliás, quem sabe hoje mesmo, daqui a pouco.

Quando criança, eu era um garoto enfermiço. De tanto tomar antibióticos, meus dentes apodreceram precocemente. Minha mãe, desesperada com minha insistência em não comer, comprava-me doces, mimava-me para eu me alimentar, o filho raquítico. Recordo-me do pessoal fazendo aviãozinho para eu ingerir as colheradas. Por temer que eu morresse ainda criança, seus cuidados comigo eram redobrados: ainda hoje dizem que sou seu filho preferido. Mesmo que fosse verdade, daria um desconto à minha mãe, afinal é da índole materna proteger mais os filhos mais frágeis, algumas até ultrapassando o limite do bom senso, Milton Hatoum que o diga. Quando adolescente sofria de gastrite que me rendeu um tratamento de acupuntura. Certa vez amanheci cuspindo sangue e fui parar em um hospital público; nem me lembro o que foi diagnosticado, mas deve ter sido algo com relação à gastrite. Como se não bastasse, sofria desmaios ocasionais, meus ferimentos custavam cicatrizar, padecia de enxaquecas intermináveis, enfim, era uma festa.

A bem da verdade, meus problemas não eram sérios, eram apenas chatos. Tanto que sobrevivi sem quaisquer sequelas. O único problema que realmente deu trabalho para diagnosticar foi um fenômeno curioso que às vezes me tomava: de repente, tudo à minha volta parecia extremamente grande. Eu esticava meu braço e me divertia ao enxergá-lo como se ele fosse muito comprido. Eu gostava muito de me deitar de costas na sala de casa, os olhos voltados para a barra da cortina. Desse ângulo, o topo da cortina parecia estar a quilômetros de distância, quase tocando o céu do estuque da casa. Nessas ocasiões, as pessoas pareciam ter cabeças minúsculas e a sensação era de que a distância que nos separava era imensa. Esse fenômeno acontecia com alguma freqüência. Até hoje ocorre, ainda que muito raramente, quando fico muito cansado ou estressado. De tanto comentá-lo com minha mãe, percorremos vários médicos, fiz exames diversos, cheguei a fazer uma tomografia, mas ninguém descobria o que eu tinha. Até que um médico da Casa da Esperança, um centro neurológico em Santo André, pensou ter descoberto o problema: Síndrome de Wilson. “A síndrome de Wilson (SW) é uma doença cromossômica genética onde existe um defeito no metabolismo no cobre. Caracteriza-se por ter uma herança autossômica recessiva, sendo que o gene envolvido é o ATP7B, situado no braço longo do cromossomo 13 (...)”[2]. Tecnicismos incompreensíveis à parte, o médico disse que constatou uma irregularidade em minha íris e, eureca!, aquilo era característico da curiosa doença. Fim do mistério! Encaminhou-me para outro especialista que me mandou de volta, quando, depois de alguns exames, constatou que algo determinante no fígado não se encontrava no meu caso, portanto eu não sofria da tal síndrome. Retorno ao mistério. E ficou por isso mesmo essa minha estranheza. Some-se a isso um formigamento que eu sentia no cérebro. Mas essa foi fácil descobrir. Fácil em termos: depois de uma peregrinação em alguns médicos descobriu-se o problema, um molar cariado.

Apesar desses acidentes de percurso, a morte nunca foi um problema para mim. Ela se tornou uma ameaça imaginária, em vias de se tornar real, a partir da confluência de dois fatores, o primeiro deles resultado da minha lógica obtusa: se a minha vida é tão boa e há tanto sofrimento no mundo, algo está errado; portanto, para que a balança se equalize, eu morrerei de câncer. Evidentemente, esse pensamento não me assaltou da noite para o dia; ele veio se esgueirando insidiosamente na minha mente até tomar posse de um cantinho, feito um assaltante que invade a propriedade alheia na calada da noite para levar algo de valor que encontre. Quando dei por mim, o bom senso já havia sido surrupiado. Explicando melhor, aparte das limitações financeiras que passei na infância e adolescência, nada mais de extraordinário aconteceu na minha vida que pudesse ter um impacto negativo considerável. Sonhos eu sempre tive, mas nada que fosse grandioso demais, afinal, nunca fui soberbo, nunca olhei as outras pessoas com arrogância, nunca tive sonhos mirabolantes, fora do meu alcance. Nossas frustrações são proporcionais aos tamanhos de nossos sonhos: sonhos medianos, frustrações idem, pouco estresse, nada que traumatize. Sempre deixei a vida me levar, grato a Deus por tudo que ele me deu, por vezes pouco, mas o suficiente. Acrescente-se a isso, minhas amizades. Os amigos são um patrimônio inestimável e, com raríssimas exceções e por motivos alheios ao meu controle, sempre consegui cultivar boas amizades. Além de amigos, tenho até mesmo alguns admiradores, pessoas que, a bem da verdade, são muito generosas comigo, já que me valorizam além do que eu realmente valho. E aí há uma grande injustiça, parece-me, afinal há pessoas muito mais legais, muito mais interessantes, muito mais íntegras que eu que não dispõem de uma relação tão profícua como a que eu tenho com o outro. Talvez essa minha sensação de injustiça seja reflexo de um complexo de inferioridade mal resolvido, questão que já me ocorreu algumas vezes, ou talvez minha dificuldade em aceitar a Graça[3] quando alvo dela.

E quanto ao sofrimento?[4] Muito do nosso sofrimento se deve a nós mesmos, mas o mesmo não pode ser dito a respeito de tantas criaturas que nascem em condições miseráveis, violentas, sem opção de escolha, só para ficar num exemplo. Quanto a mim, tenho uma vida ótima, uma verdadeira dádiva dos céus. Por que minha vida é tão boa quando tanta gente padece sofrimento? Independente das respostas do cristianismo e apesar dos meus esforços para ajudar o próximo, a miséria alheia me incomoda bastante e, por vezes, quase me leva ao sentimento de culpa. Diante de tanta miséria nesse mundo, é quase indecente viver tão bem. Aliás, não é de se admirar que as pessoas comentem a respeito de alguém rico que tem uma doença grave: “com tanto dinheiro e não conseguiu ter saúde!”. Na realidade, acredito que há uma idéia subjacente a esse tipo de afirmação: “com tanto dinheiro era de se esperar que não tivesse saúde, afinal essa injustiça tem que ser reparada de alguma forma”.

Quem não tem problemas? Mesmo as pessoas que não possuem problemas econômicos podem passar por problemas ocasionais, entretanto muitas pessoas passam toda uma existência condenada por todo tipo de problema. Definitivamente não é o meu caso. Considero-me uma pessoa feliz e realizada. Com raríssimas exceções, minha história está permeada de plenitude e felicidade. Daí porque essa idéia curiosa da morte por câncer: quando a oferta é muito grande, o santo desconfia.

O segundo fator em que a morte se tornou uma presença mais real foi ela mesma representada numa experiência muito amarga que eu tive. Minha expectativa em relação às pessoas é mínima. Eu jamais diria de alguém haver traído minha confiança simplesmente por eu jamais esperar que as pessoas não falhem, afinal, ninguém é perfeito. Entretanto, estupidamente, abri uma exceção e me dei mal, muito mal. Foi uma experiência tão amarga que me levou a fazer terapia. Quando os eventos estavam no seu auge, eu mal dormia à noite. Pela manhã acordava com um zumbido na cabeça que passava depois de algumas horas. Num dia não passou. Só depois de alguns dias me dei conta que o zumbido ficara no meu ouvido esquerdo. Procurei um médico, mas já era tarde: o estresse me causara uma lesão no ouvido e perdi parte significativa da minha audição esquerda, que foi substituída por um zumbido que nunca mais me abandonou. Minha mãe sofre do mesmo mal há anos, depois de levar um tombo. A diferença é que minha lesão surgiu mais precocemente que nela. Outro aspecto curioso é que meu ouvido esquerdo ouve notas musicais meio tom abaixo. É fácil constatar isso: se ouço uma música com fone de ouvido, ela soa num determinado tom. Se ouço apenas com o ouvido esquerdo, a sensação é que a música baixa meio tom. Se ouço com o direito, percebo a música no tom original. Normalmente, quando ouço uma música, não sofro nenhuma sensação de desconforto como se estivesse ouvindo dois tons. Entretanto, passei a ter uma grande dificuldade para afinar instrumentos, violão, por exemplo. É como se meus ouvidos estivessem descalibrados e eu tivesse dificuldade de identificar bem quando duas notas estão soando na mesma freqüência. Por conta desse problema, faço visitas periódicas ao otorrino e a constatação é que meu ouvido direito tem uma sensibilidade acima da média, equivalente a uma criança de seis anos, algo que me parece razoável já que desde a infância meu ouvido foi sempre treinado, por conta da minha percepção musical. Entretanto, assim como alguém que tivesse uma perna atlética e outra mirrada teria dificuldade para caminhar, de nada me adianta um ouvido com tamanha sensibilidade, uma vez que o resultado é a dificuldade para ouvir, principalmente na região aguda do espectro sonoro.

Eu tomei a decisão de fazer terapia porque teria que gastar muita energia para tentar resolver sozinho o trauma e tinha receio de que, no meu estado depressivo, pudesse somatizar uma nova doença qualquer. Como meu estômago sofreu muito nessa época, eu temia desenvolver um câncer no estômago ou minha gastrite se tornar uma úlcera. Conheço caso de pessoas – quem não conhece? – que adquiriram graves doenças decorrentes de somatizações de ordem emocional. Eu não gostaria de aumentar essa estatística.

Claro, todas essas experiências têm aspectos positivos: ganhei um grande amigo no meu terapeuta e meu irmão poeta me dedicou um poema quando eu estava deixando a fase crítica do trauma, no meu aniversário de 37 anos, poema esse que um dia ainda hei de musicar:

 

Trinta e Sete Anos

 

              Para o Badia, meu irmão.

 

Aos 37, a ti compete
Seguir em frente
e, num repente (mas sabiamente)
olhar à frente e ver o novo,
que vem latente e, como um ovo
prestes a romper-se
encerra vida nova e esperançosa.

 

 

Aos 37, a ti compete
o rompimento que traz alento
a sonhos antigos e encerrados,
em tempos outros, ultrapassados,
ou em recentes, tumultuados.
Romper, e à luz trazer o novo
é sempre bom, sempre é renovo;
faze-o e dize-o com garra e esforço:
"Aos 37, também me movo".

 

 

Aos 37, a ti compete
tomar tua cruz, sem mágoas, sem rodeios.
A fé tem olhos à razão alheios.
Por estes olhos verás, por certo,
quais são as formas, quais são os meios
Para tornar-te cristão inteiro.
Aos 37, pára e reflete:
A quarta década vem chegando;
Vai me encontrar caído ou lutando?

 

Micaías Pascoal de Deus

 

Se o trauma me colocou em contato mais direto com minha finitude, ela também foi uma experiência com a morte, não no sentido literal do termo, mas no efeito que a experiência me causou: virei páginas da minha vida, o que não deixa de ser uma espécie de morte. Idéias, sentimentos, sensações, ingenuidades morreram. Como no poema do meu irmão, rompi com alguns conceitos passados. Morri um pouco, ainda que algumas renúncias tragam novo sopro de vida. Também tem a questão do perdão, que nos parece bonita até que precisam perdoar alguém de fato[5]. Eu sempre me considerei um perdoador até que me deparei com uma ofensa que realmente me feriu. Foi então que eu percebi que perdoar pequenas ofensas, principalmente quando não se espera muito das pessoas, é quase não perdoar. Perdão implica em perda, abrir mão de um direito. E isso dói um bocado. Perdoar também é morrer, é uma espécie de suicídio em favor do outro. Não direi que eu fui um exemplo de perdoador a ser seguido, mas tive que engolir meu instinto assassino (metaforicamente, é claro) e isso já é alguma coisa. Matar esse psicopata dentro de mim também foi uma experiência mortal.

Portanto, em duas situações eu me via um candidato potencial para empacotar: como solução da injustiça no mundo, uma vez que eu sempre vivi o lado bom desse drama e quando eu, estupidamente, me permiti me machucar e, se não tomo umas decisões mais drásticas, poderia ter somatizado alguma doença séria, talvez atraindo a morte para mais perto de mim.

 

Enquanto eu tento contatar meu irmão para contatar minha cunhada para ajudar a me contatar com o fio de vida que provavelmente ainda resta no moribundo, as massagens torácicas e a quase respiração boca a boca que o transeunte está aplicando no acidentado parecem surtir um fugaz efeito: ele dá um suspiro. Ótimo presságio: ele não deve estar morto, apenas desmaiado. Que bom que o transeunte não é um inútil como eu em primeiros socorros; ele conseguiu arrancar ao menos um suspiro do eletrocutado!

O pessoal do SAMU estaciona a ambulância e, calmamente, se dirige à laje onde estamos instalados. A calma deles me parece anormal, irrita-me. Mas deve ser assim mesmo, eu que sou um mero desconhecedor do tratamento (e da presteza) adequado para uma situação como essa. Os dois socorristas escalam a laje e verificam a situação do local. Perguntam se existe alguma tomada para ligar o desfibrilador. Tomada??? Como é que não pensaram em colocar uma tomada na laje para uma eventualidade como essa? Parece-me estranho o desfibrilador só funcionar com energia elétrica, mas, enfim, sou leigo no assunto. Um dos socorristas fala pelo seu comunicador sobre a dificuldade de acesso: talvez sequer consigam subir o desfibrilador. Maca, nem pensar. De minha parte, o que posso fazer, o faço: depois de pegar o equipamento de oxigênio que estava com um dos socorrista trepado na escada, equilibrar-me por uma viga de concreto que dá acesso à laje e entregá-lo ao outro socorrista que já está atendendo o acidentado, desço rapidamente a laje e pergunto aos empregados do sindicato se há uma extensão. Não faço idéia de que tamanho pode ser e nem quero saber onde pode estar a tomada mais próxima. Espero que um milagre resolva o problema da distância da tomada e o tamanho da extensão necessária para permitir que o desfibrilador seja ligado. Caramba, mas desfibrilador não deveria funcionar à bateria? Uma das senhoras interpelada me diz que vai tentar localizar uma extensão e antes de desaparecer pelos corredores do sindicato, vaticina: “Ele não vai morrer, em nome de Jesus!” Amém é a minha resposta. Talvez seja esse o milagre que precisemos: que ele simplesmente não morra, independente de desfibrilador, tomadas, extensões, macas ou quaisquer recursos para ressuscitá-lo. Talvez ele precise mesmo é de um “talito” cumi.

Um rapaz se aproxima de mim, os olhos são puro desespero. Como está meu irmão? Ele está bem? O que lhe dizer? Algo me diz que a situação do rapaz é crítica, mas os olhos do seu irmão não estão preparados para ouvir coisa semelhante. E se ele tem que ouvir, não será de mim, evidentemente. Conto-lhe o episódio do suspiro, um fio de esperança para ele. Fujo do rapaz, a pretexto de encontrar a extensão. Topo com alguns empregados do sindicato, mas nenhum deles ainda encontrou uma extensão, até que alguém me traz um cabo com as pontas descascadas, sem plugue, sem nada. Aquilo não serve de nada. No instante em que penso o que fazer, a senhora me aborda de novo e me relembra: “Ele não vai morrer, em nome de Jesus!” Já consternado, devolvo-lhe um Amém. Num futuro muito próximo ela me abordará de novo com o mesmo bordão – e adianto o episódio aqui porque não vou tratar mais desse detalhe – mas eu não lhe respondo nada afinal fica claro que, se essa senhora tem alguma certeza é que ela não tem certeza de nada, do contrário não precisaria ficar repetindo o mesmo bordão como quem quisesse provar a si mesma que seria capaz de acreditar que a providência divina pode livrar o rapaz de sua morte iminente, se é que ele já não está morto.

Resolvo subir de novo na laje para perguntar ao pessoal se a extensão é imprescindível. Não é. Já que lá estou novamente, lá fico para ajudar no que for possível, enquanto uma pequena multidão se forma na rua. Como você não avisou que ele estava tendo uma parada?, pergunta-me um dos socorristas. E eu iria saber?, respondo, quase ofendido, sem me lembrar de acrescentar que eu estava na rua, sem acesso à laje. Já o transeunte das massagens cardíacas, mostra-se mais que um transeunte com alguma noção em primeiros socorros. Explica que é um funcionário da Eletropaulo que estava passando por acaso no momento do acidente. Ele então, o ex-pintor, o ex-transeunte-sem-qualquer-relação-com-o-acidente, o agora providencial funcionário da Eletropaulo, explica ao socorrista que por aquele fio passa uma carga de cerca de 13 mil volts. Caramba! Como o cara não virou carvão? Bem, há muito tempo deixei meus estudos de eletricidade e não sei exatamente se essa voltagem tem a propriedade de transformar um organismo vivo relativamente sadio em um pedaço de carvão. De forma que apenas escuto o diálogo do funcionário da Eletropaulo e do socorrista que, depois de encaixar a máscara de oxigênio no rosto de olhos vazios, recomeça a massagem torácica, dessa vez com a competência de um perito. O rapaz da Eletropaulo animado com sua especialidade em assuntos elétricos, começa a descrever seus esforços para ressuscitar o eletrocutado. Conta e reconta como fez as massagens, o detalhe do suspiro, que ele foi o primeiro a chegar, não se esquece do detalhe dos 120 volts do cabo da rede elétrica (ué, não eram 13 mil volts? onde foram parar os 12880 volts restantes?) Lá pelas tantas, o socorrista solta um lacônico “foi isso que salvou o rapaz” talvez como quem diz “ok, já entendi, agora deixa eu me concentrar aqui”. O rapaz parece realizado porque, afinal, terá uma história para contar aos seus netos, o dia em que ele fez uma massagem e salvou um eletrocutado da morte. Quanto a mim, o que contarei se não morrer até lá? Que não sabia que o rapaz tivera uma parada cardíaca? Que não consegui falar com minha cunhada antes e receber eu os louros do heroísmo? Que não soube o que dizer ao irmão do eletrocutado? Que não fui capaz de encontrar uma extensão que prestasse ainda que desnecessária? Enquanto esses eventos de fundamental importância ao acontecimento se desenrolam, o outro socorrista liga para os bombeiros e solicita um apoio adicional, afinal as condições do moribundo e – principalmente de acesso – não são favoráveis. Quando da iminência da chegada da viatura dos bombeiros, o socorrista me pede que eu faça sinal à viatura, já que eu sou o que está mais próximo da mureta da laje. Mas nem é preciso porque, ao surgir na curva da rua com as sirenes a todo vapor, a muvuca que já tinha se formado na rua permitiria a rápida identificação do local mesmo que o condutor fosse algum dos personagens de Saramago, menos a Júlia Moore, é claro.

 

Se a morte se tornou um tema recorrente por conta da suposta injustiça de minha condição de vida tão privilegiada e da experiência traumática que eu tive, até os 39 anos e oito meses eu ainda não havia tido a visita da morte a mim mesmo ou a alguma pessoa de meu convívio mais íntimo. Não digo depois dessa data porque já terei terminado de escrever esse capítulo e não pretendo revisá-lo por conta disso.

O primeiro contato com a morte que me lembro foi na minha infância, quando fui a um velório de um senhor vizinho na Travessa Oscar Freire, na época em que os velórios eram feitos na residência dos então desencarnados. A família era conhecida de minha mãe e me lembro de que eu fiquei algum tempo no velório. Eu era bem pequeno e havia um defunto naquele enorme caixão. Não me lembro se eu consegui enxergar o defunto, acho que não tinha altura suficiente, mas me recordo que a impressão foi muito forte. Nos dias seguintes a imagem de um caixão onde havia uma pessoa morta dentro me perseguiu implacavelmente. Afortunadamente, sobrevivi.

O outro episódio de morte foi com a família Martins do Carmo. Amigos de nossa família, quase parentes, o Adalberon, marido da Amarina e pai de quatro filhos, trabalhava na Petrobrás, se não me engano. Ele vivia viajando. Eu quase não o via. Lembro-me de que não gostava quando ele voltava porque sua presença representava alguma intimidação para mim e, de repente, a casa deles deixava de ser minha casa e eu me sentia uma visita. Então eu gostava mais quando ele estava viajando. Egoísta. É claro que a Amarina, sua sogra Dona Eulália e os quatro garotos não sentiam o mesmo que eu. Os anos se passaram e, numa tarde, chegou uma notícia: o Adalberon, que estava no Nordeste, morrera. Não me lembro dos detalhes, mas o Micaías, meu irmão, de memória prodigiosa, se lembrará de todos eles. Perguntem a ele. O que me lembro foi do desespero, da desolação, da dor, do desamparo. Eu não convivia com o Adalberon, não me sentia à vontade com ele, mas sofri na pele dos Martins do Carmo. Foi horrível. A perda deles foi a minha. Foi o meu batismo no luto. A perda de um ente querido, principalmente de forma precoce, é algo muito difícil de suportar. A empresa informou que ele havia morrido na praia, enquanto tomava um banho de sol ou afogado, não me lembro. E mandaram o caixão lacrado sem mais explicações. Foi revoltante porque ficou a nítida impressão de que eles mentiram e, para não pagarem a devida indenização, inventaram uma história qualquer. Bastardos. Espero não estar sendo injusto.

No meu ciclo familiar mais íntimo, em tese, o primeiro da fila é meu pai. Com mais de 74 anos, já teve câncer na próstata, sofre de hipertensão, é diabético e já teve um micro derrame. Mas o velhinho segue valente. É bem verdade que seu micro derrame o deixou bastante esclerosado. Ele havia ido para a casa de minha irmã e, quando voltava de ônibus, sofreu o derrame. O resgate o levou para o hospital público de Santo André, aquele que viveu seus dias de notoriedade no triste caso Eloá. Meu pai sempre foi muito fechado, pouco falador, discreto, desprovido de sinais externos de carinho. Por conta desse perfil de personalidade, nunca fomos íntimos, a exemplo de minha mãe. Recentemente, comecei a beijá-lo nas despedidas. Não é que o velhinho adorou? Como já venho me preparando há anos para aceitar a idéia da morte dos meus pais, fui visitá-lo no hospital com uma boa expectativa, uma vez que eu já sabia que o derrame havia sido pouco mais que um susto. Eu me julgava preparado para enfrentar um simples ensaio das primeiras notas do último movimento, inclusive por nossa relação um tanto mais polida. Quando o vi deitado na maca da enfermaria, abandonado em meio a outros enfermos, fragilizado, os cabelos em desalinho, não resisti. Disfarcei e saí rapidamente para fora do hospital. Chorei.

Eu não estou me preparando para minha morte, afinal esse é o tipo de evento que ninguém gosta de se preparar. Se eu morrer precocemente, não há muito que fazer. O máximo que espero é que, se alguma coisa prestar dos meus órgãos, façam-me o favor de doar. Não faço questão de lápide alguma e, se não for caro, posso ser cremado. Espero que meu seguro de vida pague direitinho, que a Flávia mande um email para as pessoas da minha lista de contatos no Outlook informando que fui desta para melhor e que o arquivo de senhas está à disposição dela em local não informado aqui. Se você for ao meu enterro, contente por não ter sido sua vez de receber o bilhete premiado e com aquela curiosidade mórbida para verificar se estou sorrindo ou deformado ou se colocaram bastante algodão no meu nariz, e não ouvir o Réquiem de Maurice Duruflé, procure o organizador da festa e lhe pergunte: vocês não se esqueceram do réquiem? Também seriam uma boa pedida o Requiem for my friend de Zbigniew Preisner (com destaque para Kairos, sobre Eclesiastes 3, para uma reflexão sobre a transitoriedade da vida) ou o Réquiem de Gabriel Fauré (com destaque para o pungente Libera me, para a despedida final).

 

Enquanto os bombeiros não chegam, os socorristas continuam a tentativa de ressuscitar o eletrocutado. Um deles solicita que o funcionário da Eletropaulo o ajude levantando um pouco a cabeça do moribundo enterrada na máscara de oxigênio. Ao fazê-lo, Aleluia!, seu estômago se dilata. O socorrista explica que sua glote estava obstruída. Mas nossa alegria dura pouco: esse é o último movimento executado por ele que eu presencio.

Os bombeiros chegam e rapidamente se dirigem à laje. Observo que um deles atravessa a viga de concreto que dá acesso à laje com extremo cuidado, como quem anda sobre uma corda bamba. Ou ele está com medo ou é extremamente cuidadoso. Opto pela segunda opção, afinal ele é um perito e sabe muito bem dos riscos de atravessar aquela viga. Só não sei explicar como os outros não são tão cuidadosos também.

Sobram pessoas na laje. Percebo que é hora de sair de cena. É preciso ter o discernimento para saber quando não se é mais necessário, o momento em que, de ajuda, pode-se tornar um estorvo. Desço da laje e, antes de abandonar o sindicato, me encontro com o irmão do acidentado novamente que, ainda muito aflito, me pergunta sobre a situação. Faço-lhe um breve relato da glote desobstruída com claro objetivo de manter sua esperança ainda que artificialmente. Se ele vai receber uma má notícia, que não seja por mim.

Já na rua, ao meu aproximar do meu veículo, os curiosos me fazem perguntas a respeito do estado do acidentado o que eu respondo com o prestígio de quem presenciou os fatos de forma privilegiada. A considerar suas reações, não acredito que ele sobreviva. Esse é meu palpite que dou às pessoas, com a gravidade que o momento exige.

Curioso, quero saber o que será do funcionário da Eletropaulo. Terá ele também simancol para saber quando sair de cena? Alguns minutos depois ele desce. Espero que também por conta própria e não por convite dos bombeiros. Pode ir, meu chapa, agora é com a gente. Desce também com a gravidade de quem participou de algo importante, é entrevistado por alguns curiosos e, depois de alguns instantes, se vai, passos lentos, sem pressa, solenemente a encontrar seus futuros netos.

Depois de alguns instantes, quando os bombeiros estão improvisando um meio de descer o moribundo por uma maca improvisada e presa a cordas, resolvo entrar no veículo e seguir meu cronograma do dia, já comprometido pelo incidente. Ficar ali mais tempo só demonstrará curiosidade mórbida de minha parte. Parto.

 

Uma vez quase parti desta para melhor. Quando adolescente, em certa ocasião notei que a região do meu externo – osso na caixa torácica – havia sofrido uma pequena estufada. Pareceu-me estranho aquilo, mas, como um amigo de escola tinha o peito bastante inchado, pareceu-me que meu caso era nada perto do dele. Sendo assim, não dei a mínima atenção.

Os anos se passaram e minha caixa torácica ganhou uma pequena elevação. Nada que me preocupasse ou que eu afligisse minha mãe. Às vezes doía. Mas como eu sou muito relapso com as questões da saúde, nunca dei muita importância.

Envelheci, casei-me. Os anos foram se passando e, de vez em quando, especialmente no frio, a dor do peito me incomodava um pouco. Vai ao médico, sempre me dizia a Flávia. Até que um dia resolvi ir quando a dor começou a me incomodar bastante. Procurei a especialidade de ortopedia do Hospital São Pedro em Santo André.

– Doutor, faz um bom tempo que essa parte do meu tórax começou a inchar e fez uma espécie de calombo. Sempre doeu um pouco, mas eu nunca dei muita importância. Agora dói muito e está sempre dolorido. Por exemplo, quando espirro, dói bastante. Às vezes dói tanto que não encontro uma posição confortável para dormir.

O ortopedista, até então, sorridente, ficou muito sério.

– Dói exatamente aí no centro ou dói nas costelas em volta?

– Bem no centro.

– Nesse caso, uma simples radiografia não resolve. Você terá que fazer uma tomografia computadorizada. Sua assistência médica não cobre aqui pelo hospital. Você deve procurar uma clínica do próprio convênio. Entendeu perfeitamente?

– Sim.

Meio preocupado, perguntei-lhe:

– É muito sério? Tem a ver com postura?

Ele, ainda bastante sério, me disse:

– Não tenho a menor idéia do que possa ser. Mas não deixe de procurar a clínica do seu convênio o mais rápido possível. Esse tipo de problema tem que ser tratado imediatamente.

– Ué, então o que poderá ser?

– Essa região que está lhe incomodando é responsável pela medula sanguínea. Não deixe esse assunto para depois. Estamos entendidos?

– Claro! Claro!

Saí do consultório apavorado. Medula??? Lembrei-me imediatamente de um primo da Flávia que havia morrido de câncer na medula. Era um garoto. Quando foi procurar o médico, seus ossos estavam tão fracos que estavam a ponto de se quebrarem. Lembrei-me das dores constantes que vinha sentindo nos últimos tempos em todos os meus ossos e não apenas no externo. Achava até que tinha alguma coisa a ver com reumatismo ou algo semelhante. Mas o médico tinha falado em medula!!! E a cara do médico que ficou séria de repente? O que significava aquilo? O sujeito é um ortopedista e diz não ter idéia do que poderia ser o problema? Será que ele está me escondendo algo?

Aí está! Eu sabia! O maldito câncer! Meu Deus, por que eu não fui ver isso antes? Eu devo estar com câncer na medula! É isso que dá não esquentar a cabeça com nada, não dar a devida atenção aos sinais! Entretanto, naquele fim de semana, por mais que eu me esforçasse, não conseguia me tranquilizar. Só não entrei em pânico porque fiz um esforço imenso. Mas já comecei a imaginar a morte precoce, meu filho que não veria mais o pai, minha esposa que iria se virar, é claro, casando-se com outro, meu CD, meus projetos de vida interrompidos. Lembrei-me do Cazuza. A impotência diante da doença numa tarde cinzenta e fria, o esforço para espantar a solidão e os pensamentos, os medos de amar, de ser feliz; os filhos que nunca virão e não permitirão a existência perpétua por meio dos descendentes.

Esforço em vão. O final de semana quase não passou. Não comentei nada com a Flávia para não alarmá-la. Simplesmente disse que o médico fez um exame de rotina e me encaminhou a um especialista para aprofundar o diagnóstico. Será que vai muita gente no meu enterro? Será que vou morrer rapidamente ou o câncer vai me devorar sem pressa e dolorosamente? Que bobagem! Não tem nada a ver! E Murphy, onde fica? Se estou pensando que é grave, é porque de fato não é! Mas aí que está: então deve ser, justamente porque estou pensando que Murphy vai me pegar exatamente porque já o previ: se acho que é grave é porque não é. E justamente por achar isso, é. Que enrosco!

Preciso passar minhas senhas para a Flávia, orientá-la sobre o seguro de vida e os emails que ela deve mandar. De repente nem dê tempo de eu fazer isso: os caras me hospitalizam e eu nem saio mais do hospital. Comecei até a me sentir pior. A dor do externo agora era o menor problema. Todo meu corpo doía, as pernas, a bacia. Eu diria que meus ossos estavam quase esfarelados, era possível senti-lo. Como eu não tinha percebido isso antes? Que idiota! Quando o câncer é diagnosticado cedo o problema tem solução! Que estupidez não ter investigado antes! Mas, e se não for câncer? Não, eu não tenho tanta sorte assim. Se todo mundo morre de câncer, por que eu não morreria? Pensando bem, é melhor não pensar nisso.

Na segunda-feira – eu havia ido ao hospital no sábado – fui dirigindo lentamente até o especialista, aproveitando quiçá os últimos momentos de vida sem o fantasma da morte a me seguir impiedosamente. Aquela segunda-feira parecia um dia bonito. Cheguei ao consultório, estava cheio de gente. Como de praxe, fui ao banheiro. Deixei a revista que estava lendo na cadeira. Quando voltei, outro paciente a estava lendo. Resolvi dizer-lhe que era minha e que eu precisava lê-la. Antes de fazê-lo, desisti. Afinal, se eu estivesse perto da morte, mais nobre que ler as notícias, seria dividir a revista com aquele senhor, já que a leitura da revista não me acrescentaria muito, já o nobre gesto seria algo que ficaria marcado, ainda que anonimamente, com um derradeiro ato de generosidade. Parece que o senhor leu os meus pensamentos e fez menção de me devolver a revista. Sorridente, insisti que ele continuasse com a leitura. Evidentemente, não lhe disse que queria praticar um ato de generosidade antes de morrer, para não assustá-lo e fazê-lo perder a gana pela leitura. Ele continuou lendo e, momentos depois, quando foi chamado, devolveu-a com um obrigado. Enquanto esperava, me deu vontade de tomar café. Geralmente evito por causa da minha gastrite, principalmente se o café estiver muito forte. Mas naquele dia foi diferente. O que é um cafezinho para quem vai morrer daqui a pouco? Por via das dúvidas, tomei um copo de água antes e saboreei o café.

Quando o médico me chamou, simpatizei imediatamente com ele. Era um senhor visivelmente acima dos 60 anos. Fiquei mais tranqüilo porque ele deveria ser bem mais experiente que o médico que me atendera no fim de semana. De fato era. Eu não me arrisquei a dizer a ele que estava apavorado, mas acredito que ele percebeu minha preocupação por conta das perguntas tangenciais que lhe fiz. Por fim, admiti estar receoso de que aquilo pudesse ser um câncer.

Sorridente, ele me tranqüilizou:

– Pode deixar que você ainda vai viver muito tempo. Isso aí deve ser uma artrite, uma inflamação nos ossos.

Receitou-me um medicamento para aliviar as dores e me encaminhou para um reumatologista.

De fato, não era câncer. A reumatologista dentre outras coisas pediu uma cintilografia computadorizada e se admirou do estado dos meus ossos. Bastante afetados. Entretanto não era de se estranhar para quem tem o problema há tanto tempo. Ela disse que esse problema pode ocorrer na adolescência, não me lembro em quais circunstâncias, e também é comum em decorrência de lesões em atletas jovens, por causa do esforço. Não era o meu caso. Apesar do estágio avançado da doença, ela se admirou de meus sintomas serem tão poucos e ficou mais tranquila quando constatou que minhas juntas não foram afetadas.

Estou fazendo um tratamento que, a menos que haja um avanço na medicina, será mantido até o fim da minha vida, espero, depois dos 70 anos. O nome da doença? Espondiloartropatia soronegativa.

Sei lá o que é isso!

Como se pode ver, eu quase morri. Não da doença, obviamente, mas de susto. E por uma boa dose de estupidez, devo reconhecer.

 

No final da tarde, quando voltei para pegar meu filho, me informei a respeito do rapaz acidentado. Informaram-me que os bombeiros o levaram e ele morreu no hospital. Que hospital que nada! Ele já estava mortinho da silva na laje!

Também soube que ele, seu irmão e alguns colegas haviam subido de Santos para fazer o serviço de pintura em Santo André e ele acabou morrendo.

O mais triste foi a circunstância da morte. Estúpida. Todos morreremos um dia, é inescapável, mas morrer de uma forma tão estúpida é algo que me assusta.

No período da tarde, funcionários da Eletropaulo encaparam o fio desencapado na região onde aconteceu o acidente. Esse detalhe só aumenta a estupidez da morte. A irresponsabilidade criminosa da Eletropaulo potencializou a morte estúpida do rapaz. Sua família deveria processar a Eletropaulo. Tudo bem que o contribuinte pagará, mas é o mínimo que se espera para que haja alguma justiça nesse episódio. Tomara que tenham processado.

 


 

Réquiem


 

(Meu pai se foi 46 dias depois de terminado o texto acima, 45 dias depois da foto abaixo, vitimado por dois derrames, o primeiro em sua casa, o outro no hospital.)

 

 

No ano em que completei quarenta anos, quando ainda contava trinta e nove, eu vi meu pai entubado numa UTI, eu vi meu pai indefeso de fraldão num necrotério, eu vi meu pai gelado sob uma manta de flores, eu vi meu pai descer no paletó de madeira que o protegia no seu melhor paletó, meias e sem sapato para o seu último e derradeiro descanso. E nunca mais o vi.

Eu vi o último encontro dos três mais jovens representantes de um clã de incontáveis irmãos que eu nem sei mais a conta, mas que não passam de dez: meu pai, ido aos setenta e quatro, meu tio Nuca[6] ao setenta e seis toureando seus males da ancianidade, meu tio Júlio alquebrado aos setenta e nove pelo implacável diabetes.

Eu vi uma viúva sentada desolada ao lado do caixão do seu marido que se foi. Caçula das mulheres de seu clã que também caminha em contagem regressiva, amparada por seu irmão, o caçula definitivo.

Vi amigos e conhecidos, alguns deles de longos anos, renderem tributo ao meu pai por seu caráter inspirador, o que me encheu de orgulho e serviu de consolo.

Vi as coroas de flores e, agradecido, conferi o quanto meu pai era tido em grande estima.

Vi a família reunida, os filhos de perto e de longe, dois deles pastores (um deles desempenhando um exemplar labor de recuperação da dignidade de famílias mexicanas), os netos, as noras, os genros, e pude ver que meu pai cumpriu com louvor sua missão de, juntamente com minha mãe, constituir uma família madura, equilibrada, unida e de bem.

Vi os belos discursos das exéquias e concluí que isso só ocorreria se estivesse repousando naquele caixão alguém realmente inspirador.

Vi que meu pai não se tornou um santo porque morreu, mas já era um santo em vida.

Mas também vi que nossos projetos realizados, inconclusos, nossos sonhos, nosso esforço, nossa vitalidade, nossos bens, nosso dinheiro, nossa pobreza, nossa fome, nossas lágrimas, nossos sorrisos, nossos abraços, nosso fôlego de vida, tudo passa. Tudo é vaidade. Só fica a força de nosso caráter que, para o bem ou para o mal, molda nossa história e é isso, não o que construímos ou deixamos de construir, que testemunhará a respeito de nós quando partirmos e servirá de exemplo e inspiração – ou não – aos que ficarem.

Meu pai foi um homem bom.

Sidnei Ribeiro de Souza


Caro Obadias,

 

Sinto muito pelo falecimento do nosso querido irmão Cícero. Homem que na sua simplicidade, pôde deixar valores impressos em mim. Aprendi com ele a determinação no trabalho do Senhor, mesmo quando nós, na nossa juventude, não valorizávamos isso. Seus longos tempos gastos, para aprender a dinâmica de qualquer instrumento, para ensinar-nos depois e muito mais.

Deixo meus mais profundos sentimentos a você e a toda sua família, orando para que Deus, através do Seu Santo Espírito, os dê resignação.

Um abraço!!

 

Sidnei e família.

(Sidnei é pastor em Caleta Olívia, na Argentina)

 

Sérgio Schuindt da Silva


Queridos “de Deus”,

O semeador de fato não tem idéia da dimensão do seu trabalho. Possivelmente a maior parte do seu trabalho ele não verá (“mas ficará satisfeito”)

Entre muitos, sou mais um aluno do querido Prof.Cícero de Deus. Minha gratidão pelo privilégio de tê-lo como o incansável mestre. O curso natural daquele que voluntariamente se dispõe a servir seria desistir ante tamanhos desafios e constantes revezes dos pretensos aprendizes. Mas essa não foi a decisão do professor: sábado após sábado ele estava lá; se havíamos estudado ou não a lição, lembre-se: o malfadado Bona, terror dos pouco afeitos aos livros, como o autor dessa breve missiva; se retribuíssemos pelo menos com um “valeu irmão” ou “obrigado” ou equivalente; mas sequer isso: prá mim, quase que um suplício; pra ele: uma missão;

Pra mim, o tempo que seria furtado das incansáveis jornadas infantis; pra ele, o tempo que seria ganho com homens que seriam formados; pra mim, mais uma chateação dos meus pais; pra ele: mais um serviço ao Pai celestial.

Ele também deveria desistir nos ensaios: quanto preconceito, quantas chacotas; aproveitávamos de sua simplicidade para até em códigos infanto-juvenis tentar desqualificá-lo; mas o nosso herói professor não se importava com os de fato crianças; sua maturidade, convicção e determinação superavam a simplicidade habitual; e no domingo seguinte, após a Escola Bíblica Dominical, ele estava lá. Um apóstolo formando discípulos; discípulos que hoje estão pelo mundo (nesse momento estou em uma viagem nos EUA), chorando a ausência do mestre, mas guardando pra sempre os seus ensinamentos; querendo ser íntegros como ele.

Sempre me lembrei do irmão Cícero por sua persistência; como alguém que a seu modo, fez o melhor que podia; me sinto devedor quando vejo que deveria frutificar mais,  já que venho de uma geração que recebeu mais também.

Queridos Obadias, Tatá e Micaías, estendam essas breves considerações e agradecimento aos demais filhos e netos “de Deus”, além da querida irmã Ilza. Prossigamos assim firmes, multiplicando as sementes plantadas pelo vosso papai.

 

Ao mestre, com carinho.

 

Sergio Schuindt

(Sérgio é pastor e sócio da KPMG)

 

Priscila Ferminio


Badias, me emocionei ao ler isto. Sobretudo, porque a maneira como me sinto em relação ao te pai, é exatamente o que foi tão lindamente escrito pelos queridos Sérgio e Sidnei...

E me sinto afortunada neste momento, porque me lembro de alguns momentos em que orei por ele com gratidão. De uns anos pra cá, tenho pedido a Deus que me ensine a ser grata por tudo aquilo que tenho na vida, o que considero ser oportunidades que outros muitos não têm, mas gostariam. Por exemplo, sempre que estou num lugar, num evento, num momento, que jamais pensei que chegaria, paro, e agradeço a Deus de todo o meu coração, digo a ele o quanto me sinto especial por dentre tantos, eu estar ali, desfrutando aquilo.

E num belo dia, no discurso do Thiago Nicácio Lima, quando estava, com a família, mudando para a Sede, agradeceu publicamente ao irmão Cícero pelas horas dedicadas aos ensinamentos musicais, nos emocionamos juntos, ele, no púlpito, eu, a Priscila Lima, a Berê[7] e outros tantos que pude notar sentados nos muitos bancos da igreja de Vila Scarpelli com lágrimas no rosto, sentindo-se de igual modo gratos a Deus pela vida daquele 'homenzinho' que tanto e a tantos influenciou.

Não, não é demagogia. É só gratidão e reconhecimento mesmo. E estou feliz porque não passei a sentir isto depois que ele se foi. Vem de antes, o que prova a mim mesma que é um sentimento verdadeiro.

 Compartilho do teu sentimento de consolo ao ver o carinho e reconhecimento das pessoas em relação ao teu pai. Por ter sentido exatamente a mesma coisa no velório e sepultamento do meu pai, foi que decidi ir ao do teu. Aliás, foi o primeiro que tive coragem de ir após o falecimento de meu pai. E não iria, estava decidida, mas me lembrei de como, mesmo sem palavras (se elas foram ditas, realmente não me lembro), a presença de meus amigos me consolou naqueles momentos tão cruéis. Só por isto fui, e não me arrependo. Fico feliz de não ter cedido ao meu egoísmo, e junto com tantos outros, ter cumprido meu papel de amiga e irmã.

 

Beijos,

 

Pri

(Priscila Ferminio é integrante do Kol Brasilis)



[1] Serviço de Atendimento Médico de Urgência
[2] Definição retirada da internet
[3] Maravilhosa Graça, de Philip Yancey, é uma boa pedida para entender o conceito.
[4] O problema do sofrimento, de C. S. Lewis é outra sugestão de leitura, uma abordagem cristã bastante interessante sobre o sofrimento humano.
[5] Um livro bastante interessante sobre a arte de perdoar e suas dificuldades intrínsecas é O poder terapêutico do perdão, de Ray Pritchard.
[6] Ao não encontrar minha mãe em casa, o pessoal do hospital ligou para o Tio Nuca e comunicou a morte do meu pai, seu irmão mais próximo, no dia do seu aniversário de 76 anos.
[7] A Berenilda nunca se esquecia, todos os anos, de entregar um presentinho ao meu pai em gratidão pelo trabalho que ele fez com seus filhos, na época crianças, hoje adultos formados.