domingo, 24 de fevereiro de 2019

Uma "pequena" digressão histórico-sociológica sobre a Venezuela

Não se trata de dizer que eu esteja certo ou coisas do tipo. Mas eu vejo as pessoas fazendo considerações extremamente rasas e sem fundamento ou conhecimento. Esse "textículo" foi minha resposta a um amigo que aparentemente resume a questão da Venezuela nos termos "os venezuelanos não querem mais o 'socialista' Maduro porque eles preferem a era 'capitalista' pré Chávez". Penso que a questão não passa por esse maniqueísmo capitalismo/socialismo. É bem mais complexa.

a conversa com meu amigo:

"pergunte para qualquer venezuelano se ele prefere pré chaves ou pôs maduro e terá sua resposta...
Não existe resposta simples. Mas na média o pobre sofre menos no capitalismo."

Leandro, se você me permite, vou lhe dar uma pequena aula de história e sociologia, ainda que eu não seja professor desses conhecimentos. Será algo bem superficial cujo objetivo será lhe mostrar que a questão aqui não é capitalismo ou socialismo. Você e a maioria das pessoas veem assim porque desde a mais tenra idade foram doutrinados a ver o mundo dessa forma, a explicar os problemas a partir desse viés. E quem acredita no capitalismo coloca a culpa no socialismo, quem acredita no socialismo, coloca a culpa no capitalismo. É uma visão religiosa, dogmatizada.

Antes da “aula”, você não tem a menor dúvida que o melhor sistema para se viver é o capitalismo. Se você for para Cuba, verá que talvez a maioria das pessoas dirá ser o socialismo. Se você for para o Oriente Médio, encontrará explicações a respeito da vida e valores que para você poderão não fazer o menor sentido mas aquelas pessoas estarão tão convencidas que aquela é a forma “certa” de encarar o mundo como você julga correta a sua forma “judaico-capitalista”. Meu esforço é uma tentativa de lhe mostrar outras questões que seu óculos não parecem não lhe permitir enxergar.

Primeiro os EUA, a terra quase perfeita no imaginário das pessoas doutrinadas pelas ideias capitalistas. Embora não conheça bem a história daquele país, até onde eu saiba, aquela terra foi colonizada por imigrantes majoritariamente europeus que foram lá em condições adversas e praticamente igualitárias. Era cada um por si e Deus por todos. O Oeste, para citar um exemplo, era uma espécie de terra prometida (seria o “El Dorado” deles?) e que tinha de ser conquistada a bala. A sociedade norte-americana foi fundada nesses princípios, onde o poder foi se estabelecendo na base da bala, por imigrantes que chegavam com status social mais ou menos equilibrado. Não sem razão eles dizimaram as populações nativas. Ficou muito pouco. Quem se estabeleceu lá, por meio da bala, forjou uma sociedade com um ponto de partida mais igualitário e individualista (se me olhar feio, meto fogo!). Penso que isso explica muito os EUA moderno.

Na América do Sul, onde estão Brasil e Venezuela, a coisa foi bem diferente. Em que pese ter havido genocídio das populações aborígenes, havia uma relação mais umbilical da colônia com Espanha ou Portugal e essas terras foram encaradas como um empreendimento empresarial, onde seria necessário extrair todas suas riquezas e sustentar a matriz. Então europeus vieram aqui com a missão de colonizar e utilizar a mão-de-obra aborígene para lograr seus objetivos. A mão-de-obra aborígene, os indígenas não foram tão fáceis de ser cooptados e escravizados. Daí porque se deu todo o mercado de escravos africanos. Mão-de-obra barata. E não foi apenas no Brasil. Isso estabeleceu uma sociedade menos igualitária que nos EUA, já que se forjou, grosso modo, uma pequena elite detentora das riquezas, das terras tomadas dos proprietários aborígenes, das armas, enfim, do poder político e econômico, e uma enorme população escravizada. Mesmo com a libertação dos escravos, esse status não mudaria, é claro.

Saltemos para o final do século XX. Temos nos EUA uma sociedade que, em que peses tantos problemas que você provavelmente ignora, é mais igualitária que as sociedades sul-americanas. Na parte sul do continente temos uma sociedade que ainda guarda ranços escravocratas, onde uma pequena elite, branca, de antepassados majoritariamente europeus detém praticamente toda a riqueza e uma população enorme na pobreza, parte significativa dela na miséria mesmo.

Daí um cidadão alienado e deslumbrado com o capitalismo olharia a Venezuela e diria: “Que maravilha! Veja que belo país! Que renda per capita! O capitalismo é maravilhoso!” Teve um infeliz mega-alienado que me disse ter ido várias vezes à Venezuela pré Chávez e nunca viu nenhum tipo de problema.” Só que eu também fui muito na Venezuela pré Chávez e, por minha sensibilidade política e à pobreza, vi muita coisa fora do lugar. Eu andava pelos lugares mais ricos de Caracas (urbanizaciones) e pelos lugares mais pobres e violentos da cidade (barrios mais distantes como Gato Negro e Petare, em extremos distintos), para desespero de meus amigos venezuelanos que me diziam que qualquer hora eu seria morto, para refletir como era possível enxergar tanta riqueza onde eu estava e ver tanta miséria e pobreza a tão poucos quilômetros.

Talvez para você isso não seja uma informação significativa. Para você talvez importasse a renda per capita, mesmo que isso não significasse uma vida mais digna para a maioria da população. Sociólogos, historiadores, filósofos e estudiosos das humanas em geral concordariam que a sociedade deve prover meios para que cada indivíduo viva de forma digna e o ideal é uma sociedade mais igualitária. Provavelmente você dirá que isso é pensamento de esquerdista, mas não é. É pensamento de quem se debruça sobre essas questões e as estuda a fundo. Os EUA são uma sociedade mais igualitária que os países sul-americanos e nem por isso são mais esquerdistas... Os mais prósperos países europeus são mais igualitários ainda por adotarem políticas que brasileiros de direita esbravejariam dizendo ser coisa de comunista de merda caso tentássemos fazer o mesmo aqui.

Em algum momento da história venezuelana e brasileira surgiram duas figuras importantes: Chávez lá e Lula aqui. Eles guardavam paralelo na leitura de que o status quo precisava ser mudado. Não é mais aceitável que as riquezas de um país sejam monopolizadas por uma pequena elite oligopolista. Provavelmente sua leitura ideológica capitalista discorda disso porque você, como a maioria dos brasileiros, sempre foi doutrinado para não ter essa visão crítica. Na sua cabeça, um país só prospera se não houver políticas públicas que objetivem diminuir as desigualdades. De onde vem esse pensamento? Da cabeça dos mais ricos, obviamente. É fácil compreender isso. Fizeram um estudo na Inglaterra com os ganhadores de loteria. Antes de ganharem o prêmio, a maioria deles acreditava que o estado deve ter políticas para diminuir a pobreza através da taxação dos mais ricos. Depois de ganharem na loteria mudaram totalmente de opinião. Os mais pobres são doutrinados desde sempre a enxergar a sociedade a partir do ponto de vista dos ricos a ponto de criarem situações esdrúxulas como essa que vou descrever: perguntei a um amigo pobre de direita porque ele era contra a taxação de grandes fortunas. Sua resposta para mim inesperada e inacreditável foi de que ele não queria pagar mais imposto quando fosse rico, portanto era melhor deixar as coisas assim. Você consegue perceber o nível de alienação da criatura?

Chávez e Lula propunham uma revolução (o primeiro) ou reforma (o segundo) para mudar esse desequilíbrio. Chávez, um militar que guarda muitas semelhanças com Bolsonaro, tentou resolver a questão à sua moda, por meio da truculência. Eu acompanhei mais ou menos de perto a questão, inclusive em algumas viagens que fiz à Venezuela na época. Eu ligava a TV e ficava estarrecido e profundamente triste, com o nível do debate, tanto de Chávez quanto da oposição elitista e oligopolista. Você, que provavelmente não conhece a Venezuela tanto quanto eu, não viu essas coisas todas. Na sua cabeça provavelmente só existe a sua narrativa “capitalismo é bom”, “socialismo é ruim”, uma visão maniqueísta infantil, e o relato da grande mídia que, partindo do pressuposto implantado na sua mente, pintou Chávez como o vilão e a elite oligopolista venezuelana como vítima de um ditador. Nada mais equivocado.

E aí vem a questão que você cita, a do sofrimento. Sua leitura é simplificada e alienada. Obviamente que o venezuelano hoje sente saudades da era pré Chávez. Ele não aguenta mais. Entretanto, o motivo não é porque eles estão sob uma “ditadura socialista” e anseiam serem libertos para uma “democracia capitalista”. Esqueça essa leitura pueril. Por que você acha que somente agora os venezuelanos estão “desertando” da “revolução bolivariana”? Porque eles sofriam muito antes e viam nessa tal de “revolução” a possibilidade de diminuir o sofrimento. Mas a luta entre o chavismo e a oligarquia histórica venezuelana foi tão intensa, tão renhida, tão sangrenta, que a população em geral está gritando: “Chega, não queremos mais geurras, não queremos mais você, Maduro!” Porque perceberam que o sonho acabou. E a oligarquia venceu novamente.

Obviamente que estou deixando de levar em consideração a incapacidade de Chávez e Maduro de promoverem políticas sustentáveis para apresentar uma alternativa que fosse razoável. Mas não podemos desconsiderar que a oligarquia histórica venezuelana nunca baixou a guarda. Eles não largaram o osso nem a pau! Eu vi isso de perto. Eu acompanhei. Então veja que a questão é bem mais complexa que você imagina.

No Brasil só não aconteceu isso porque Lula teve habilidade suficiente para conciliar os dois interesses, dos mais pobres e dos mais ricos. Mas, em nome da perpetuação no poder, ele abriu mão das reformas mais profundas com potencial para diminuir as desigualdades sociais no Brasil e ficou fazendo agrado para os mais ricos. Dançou. Mas ao abrandar suas reformas, chegou quase a lugar algum, apesar dos grandes avanços observados no país. Ele acabaria sendo derrubado pela oligarquia brasileira, mais cedo ou mais tarde, caso não fizesse um sucessor à sua altura. Caiu. Bolsonaro só não terá o mesmo caminho de Lula nesse sentido porque ele não pensa reformas para diminuir as desigualdades sociais. Ele pensa assim: facilitemos para os mais ricos que a vida dos mais pobres melhora. Mas a história da América do Sul sempre foi essa: os ricos com todas as benesses dos governos, os pobres à margem, e nunca vimos prosperidade. E não haverá porque isso simplesmente não funciona por uma questão simples: a ganância humana.

O ponto em que a doutrinação a que você foi submetido falha é não considerar que, se não houver mecanismos de controle, um rico será cada vez mais rico, terá cada vez mais poder para sufocar os mais pobres e utilizá-los como mão-de-obra barata. Sempre foi assim. Esse círculo só foi rompido na História com revoluções. Hoje vivemos uma reedição dos reinados ou mesmo do feudalismo, apenas com roupagens diferentes. No entanto, se o vassalo de um rei se mantinha submisso por acreditar que o rei tinha direitos divinos, hoje o vassalo moderno se submete porque acredita que o rico tem “direitos meritocráticos”: se ele tem toda essa riqueza à sua disposição e a multiplica a partir da exploração dos mais pobres, é porque ele tem seus méritos, ele fez por merecer. Esse vassalo moderno não conhece a história do seu país e seus desdobramentos. Eu vejo muito isso em você.

Ainda sobre o Brasil, o Lula teve bastante apoio enquanto o pobre via nele uma alternativa. Mas quando ele não aprofundou as reformas como prometeu e o viu cair em desgraça na lava-jato (que de republicana não teve nada, mas isso é outra conversa), pulou fora. Porque o pobre, o mais pobre, está se lixando para capitalismo ou socialismo. Ele quer ver a comida no prato. Entretanto, não se pode esquecer que o brasileiro em geral é doutrinado pelo pensamento de direita. Então, na era do PT, o brasileiro mais pobre foi “cooptado” por uma visão mais igualitária da sociedade, do bem-estar social. No entanto, como as reformas não avançaram, ele voltou para sua religião na qual ele foi doutrinado e tudo o que ele faz é repetir ideias “de direita” enlatadas mas que não resistem a um escrutínio maior se comparadas com a realidade em que ele vive, como meu amigo pobre de direita e sua espantosa justificativa sobre não ser a favor de taxar grandes fortunas.

Veja bem, sobre a questão da Venezuela, eu toquei apenas um aspecto. A crise da Venezuela tem muitos outros aspectos a se considerar, como por exemplo a guerra ideológica que os EUA travam com bastante sucesso no mundo todo e na região. Há outras variáveis mais envolvidas.

Então, ao analisar o caso da Venezuela, resumir a “pergunte para qualquer venezuelano se ele prefere pré chaves ou pôs maduro e terá sua resposta...” é resultado de simplificar extremamente a questão, mesmo que, para você, sua colocação pareça complexa. Não é. Não passa de um maniqueísmo raso.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Jair Mito Bolsonaro

Jair Bolsonaro estabeleceu que conversa via whatsapp não é conversa.
Alguém já pensou no significado disso? No precedente que isso abre?
Ele aposentou o "não é o que você está pensando", afinal, não se trata de uma conversa.
Isso é uma vitória para o cidadão comum muito maior que derrota sofrida por Bolsonaro e Mourão no decreto que tentava diminuir a transparência do governo.
Jair Bolsonaro é mito, tenho que finalmente reconhecer!

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

Ricardo Boechat e o PSL

Acabo de ouvir Boechat dizer algo como:

Não é o PSL que se dizer ser o partido que iria varrer a corrupção da política? Considerando o ritmo em que ele vem se envolvendo em lambanças e histórias mal explicadas, não demorará muito para ele deixar para trás políticos como Maluf, Renan e outros. Se mantido o ritmo, daqui a pouco Geddel Vieira vai se tornar referência de moralidade.

Então...

domingo, 3 de fevereiro de 2019

O secular

Eu sempre digo para meus interlocutores: “Se acreditar que um gnomo de jardim seja algum tipo de divindade lhe faz uma pessoa melhor, mais compassiva, mais equilibrada, capaz de aceitar as demais pessoas diferentes, você está no caminho certo. Se acreditar no Deus de Abraão, Isaque e Jacó lhe faz uma pessoa intolerante com os diferentes, motiva-lhe a mandar as pessoas para o inferno, faz de você alguém que se julga o único capaz de saber a verdade, sua crença é disfuncional.”


Abaixo, trecho do livro “21 lições para o século 21” de Yuval Harari:

O que significa ser secular? O secularismo às vezes é definido como negação da religião, e as pessoas seculares são, portanto, caracterizadas por aquilo em que não acreditam e não fazem. De acordo com essa definição, as pessoas seculares não acreditam em deuses ou anjos, não frequentam igrejas e templos e não realizam ritos ou rituais. Como tal, o mundo secular parece oco, niilista e amoral — uma caixa vazia esperando ser preenchida por algo.

Poucas pessoas adotariam uma identidade negativa. Secularistas autoprofessados veem o secularismo de maneira muito diferente. Para eles, o secularismo é uma visão de mundo muito positiva e ativa, definida por um código de valores coerentes, e não pela oposição a esta ou aquela religião. Realmente, muitos dos valores seculares são compartilhados por várias tradições religiosas. Salvo algumas seitas que insistem em que têm o monopólio de toda a sabedoria e toda a bondade, uma das principais características das pessoas seculares é que elas não reivindicam esse monopólio. Não pensam que moralidade e sabedoria tenham descido do céu num lugar e tempo específicos. E sim que moralidade e sabedoria são o legado natural de todos os humanos. Daí, só se poderia esperar que ao menos alguns valores surgissem nas sociedades Poucas pessoas adotariam uma identidade negativa. Secularistas autoprofessados veem o secularismo de maneira muito diferente. Para eles, o secularismo é uma visão de mundo muito positiva e ativa, definida por um código de valores coerentes, e não pela oposição a esta ou aquela religião. Realmente, muitos dos valores seculares são compartilhados por várias tradições religiosas. Salvo algumas seitas que insistem em que têm o monopólio de toda a sabedoria e toda a bondade, uma das principais características das pessoas seculares é que elas não reivindicam esse monopólio. Não pensam que moralidade e sabedoria tenham descido do céu num lugar e tempo específicos. E sim que moralidade e sabedoria são o legado natural de todos os humanos. Daí, só se poderia esperar que ao menos alguns valores surgissem nas sociedades humanas por todo o mundo, e fossem comuns a muçulmanos, cristãos, hindus e ateus.

Líderes religiosos frequentemente defrontam seus seguidores com uma rigorosa escolha na forma “ou isso ou aquilo” — ou vocês são muçulmanos ou não são. E, se são muçulmanos, devem rejeitar todas as outras doutrinas. Em contraste, as pessoas seculares sentem-se confortáveis com múltiplas identidades híbridas. No que concerne ao secularismo, você pode continuar se dizendo muçulmano e continuar a rezar para Alá, comer alimentos halal e fazer o haj, a peregrinação a Meca — e ainda ser um bom membro da sociedade secular, contanto que adote o código ético secular. Esse código — que na verdade é aceito por milhões de muçulmanos, cristãos e hindus assim como por ateus — cultua valores como liberdade, compaixão, igualdade, coragem e responsabilidade. Constitui o fundamento das modernas instituições científicas e democráticas.