sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Enlouquecemos todos?

 


Depois de um dia intenso em que eu estava tentando domar uma squamata phytonidae, fui fazer umas palavras cruzadas para descansar a mente. Descanso minha mente carregando tijolo. Mas você sabe né? O diabo mudou-se dos detalhes para o Facebook. E lá vem a notificação de um grupo que me colocaram algum dia. O assunto é filosofia.

Interagi de forma bastante irônica com uma das pessoas na publicação e sua incapacidade e das demais pessoas perceberem minha ironia escrachada me deixou pensativo: será que enlouquecemos todos?

Uma coisa é fato: a quantidade de pessoas dizendo sandices nas redes sociais, as coisas mais absurdas, sem o menor sentido, as convicções surreais, a inacreditável absolutização das opiniões, pior, opiniões totalmente piradas, enfim, esse sanatório geral em que se tornou o Brasil dos tempos bolsonaristas, é algo que garante o estupor meu de cada dia. Com uma frequência assustadora vejo amigos que até pouco tempo me pareciam, se não pessoas com um pensamento mais equilibrado ou mesmo uma forma de se expressar elegante, cristalina, ao menos pessoas que pensavam medianamente, tinham uma percepção da realidade distorcida por uma série de crenças superadas, mas não chegava a ser nada patológico.

Tenho a impressão de que, em meio a tanta gente histérica e surtada, estamos perdendo a capacidade de separar o que é real do que não é: uma ironia, por exemplo. Ironia nunca foi algo trivial, mas o exagero é algo facilmente detectável, porque se apresenta como uma deformação monstruosa da realidade. Mas, de repente, vivemos em um ambiente em que as deformidades de pensamento se tornaram tão explícitas, as pessoas se orgulham tanto de seus monstros pessoais, que simplesmente perdemos a referência: não sabemos mais se uma pessoa está sendo irônica ou é louca mesmo.

Isso me parece muito preocupante.

Voltando ao Facebook, a publicação me chamou a atenção, corri os olhos nos comentários e um deles me chamou atenção em particular. Daí, pensando em fazer uma “piada irônica e amigável” com a pessoa que tinha feito o comentário, respondi-lhe incorporando o fanático religioso, mas a pessoa não entendeu. Eu pensei, inicialmente, que minha ironia seria suficiente. Mas não. Resolvi aumentar as doses de ironia, mas mesmo assim a pessoa não sacou. No fim, joguei a toalha, antes que me denunciassem ao Facebook por mau comportamento.

Abaixo a conversa com alguns comentários meus entre parênteses:

ATEU: Sou ateu por convicção e opção.

EU: Filho de Belial, quando você chegar no inferno de fogo e enxofre, onde o Deus amoroso te lançará tão certo quanto o ar que eu respiro, quero ver onde você meterá sua convicção e opção. Arrependa-se antes que seja tarde. Porque Deus é amor mas também é justiça.

ATEU: Obadias de Deus, o seu sectarismo transcende ao ópio e a insanidade. Procure um psiquiatra já!

(Um cara entrou na conversa, quem eu chamarei de ATEU2)

ATEU2: Obadias de Deus Ahahahah pensei até que era uma piada mano, e esse nome ainda p cima kkkkkkkk. Na real não há nenhuma justiça em condenar alguém ao sofrimento eterno só pq ele não acredita em algo que não vê. E ainda diz que deuch é “amoroso” kkkkkkkkkkkkk 🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣

EU: ATEU2 piada??? Nunca falei tão sério, seu jebuseu incircunciso! 🍐 que vou orar pra Deus te tacar um câncer, seu ímpio de dura cerviz, filho de uma Raabe Madalena! 😡😡😡😡😡

ATEU2: Obadias de Deus, quanto amor de cristo estás emanando, meu caro! Posso sentir daqui os eflúvios benfazejos. Até minha querida mãe que nem ao menos sabe dessa celeuma, foi implicada... Mostra bem a laia dos que se dizem “os eleitos de deus” Tenho muito nojo de vcs e um pouco de pena também

ATEU2: PS: sou circuncidado sim, mas não devido à palhaçada judaica e sim a higiene – se quiser envio foto comprobatória

ATEU: Vc não passa de um mentecapto, vesânico, ANENCÉFALO, ACÉFALO, CACÓFAGO.

EU: ATEU, está me chamando de cacófato gago? Só fico gago diante do poder de Deus.

(Ok, essa piadinha foi bem ruim, mas foi a única que me ocorreu na hora)

EU: ATEU2 sua querida mãe não foi implicada. Eu falo da filiação espiritual. Se você estudar a Bíblia, além de ser salvo, vai entender o que eu quis dizer, amém? Quanto a ter nojo de mim, não tenha. Pensa bem: enquanto eu estiver nas bodas do cordeiro, em ruas de ouro, com Abraão, Isaque e Jacó, as 70 virgens (não, 🍐, as 70 virgens são no céu islâmico, me confundi), as 5 virgens prudentes, onde você estará? No inferno fedendo a enxofre. Pelo que consigo imaginar, o nojento será você, não?

EU: Vocês ateus são uma piada. Se Deus não existe, quem acende o bumbum dos vagalumes? Hein?

(Essa do vagalume me ocorreu porque eu tinha acabado de preencher a palavra VAGALUME no desafio de palavras cruzadas que estava fazendo: adoro jogos de palavras, duplo sentido, metáforas; e foi uma tentativa de mandar algo bem surreal pra ver se meus interlocutores perceberiam, finalmente, que eu estava sendo irônico)

(Aparentemente uma mulher viu a suposta surra que um suposto fanático religioso estava tomando de 2 ateus e fez uma pergunta; tive a impressão de que ela ficou com pena de mim e tentou dar uma aliviada. Por isso a chamarei de BOA SAMARITANA)

BOA SAMARITANA: ATEU Cê é filósofo?

ATEU: Significado de CACÓFAGO: É um adjetivo. "AQUELE QUE COME COISAS REPUGNANTES, EXCREMENTOS".

(De fato, não conhecia o termo. Aprendemos sempre. Aprendi mais uma)

ATEU: BOA SAMARITANA, qual é a essencialidade da pergunta? Filósofo todos nós somos, lógico: cada um com sua superficialidade...

EU: ATEU, essa eu não conhecia. De verdade. Cacófago. Obrigado por me ensinar essa. Fico lhe devendo essa. Agora vou utilizar essa maravilhosa palavra, nada eufônica, para acabar com a raça dos ateus e suas miseráveis ideias cacofônicas. A Bíblia diz que Jesus chorou. As pessoas acreditam que foi pela morte de Lázaro. Mas o Espírito Santo de Deus me revelou que não foi por isso. O motivo foi outro. Só não está nas Sagradas Escrituras porque ia pegar mal pro meu savior. Mas a verdade é que tinha um ateu cacófago do lado emitindo cacofonias ao dizer que Lázaro já não tinha mais jeito, já estava morto há dias. Jesus já irritado com aquele filho de Belial, sumamente irritado, acabou se emocionando e chorou, porque, apesar de ser Deus, também é filho do Homem. E homem que é homem, chora. Daí ele disse pro ateu: "Ô meu, para! Não enche o saco! Deixa eu fazer meu trampo, cacete! Pra quem pôs os bovinos pra cagar em forma de pasta e os caprinos pra cagar em forma de bolinhas, ressuscitar um presunto é brincadeira de criança, é trivial! Aparte-te de mim, ó tu comedor de bosta! Vai ter com as pastas e as bolinhas, cacófago!" Com um braço deu um jab no ateu e com outro tirou a pedra no túmulo, arrancou o defunto lazarento pra fora e... Bem, não vou dar spoiler. Quer saber o final da história? Vai ler a Bíblia. Quem sabe você aprende alguma coisa. Que la luciérnaga de Dios, lucena para os íntimos, te ilumine com seu bumbum fosforescente.

(“Luciérnaga de Dios” – “luciérnaga” é vagalume em espanhol – e lucena foi um feliz trocadilho que me ocorreu com o sobrenome Lucena de um amigo que, quando mandei a frase que me ocorreu, “Se Deus não existe, quem acende o bumbum dos vagalumes? Hein?”, ele me devolveu outra igualmente deliciosa, “Quem pôs os bovinos pra cagar em forma de pasta, e os caprinos em forma de bolinhas?” A pergunta dele foi tão deliciosa que tive que incluir no meu diálogo com os créditos devidamente cifrados. E por falar em cifra e jogo de palavras, “Obrigado por me ensinar essa. Fico lhe devendo essa. Agora vou utilizar essa maravilhosa palavra” foi proposital, pra forçar o vício de linguagem “eco”, uma cacofonia, já que eu iria falar justamente sobre isso 😊; ok, explicar piada é péssimo, mas já que estou comentando...)

EU: BOA SAMARITANA, concordo com o ATEU: todos somos filósofos, posto que todos somos pensantes. Eu apenas acrescentaria um detalhe: um bom filósofo entende ironia.


Enfim, espero que dessa vez eles saquem a ironia. O que me impressionou mesmo foi a incapacidade de eles perceberem o quanto eu estava sendo irônico. E é isso exatamente o que me causou a reflexão: ou as pessoas têm uma profunda incapacidade de entenderem ironia, ou – o que me parece mais provável – o espaço público e virtual está recentemente tão infestado de loucos, alucinados, fanáticos, que a gente acaba perdendo a capacidade de identificar uma irona, por mais exagerada e absurda que seja, contaminados que estamos por essa explosão de zumbis fanáticos nessa distopia apocalíptica bolsonarista walkingdeadiana que tem sido o Brasil dos últimos tempos.

Tempos tristes, apesar das piadas, memes, ironias e gargalhadas.


segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Múltiplas personalidades



 A personagem Ondine Duquette da série Netflx Ratched me levou a uma viagem no tempo. 1986. Acabara de completar 17 anos. Conferi a data na minha CTPS. Eu trabalhava na Mercantil São Caetano, uma concessionária da João Apolinário e Cia.

Abre Parênteses

Nunca tive curiosidade em saber quem é essa figura João Apolinário que aparece na minha CTPS. Acabei de pesquisar e... incrível, João Appolinário é nascido em São Caetano do Sul e é presidente, proprietário e fundador da Polishop. É conhecido como o "homem da tevê" ou o "rei da TV do Brasil" por ser o maior anunciante da televisão brasileira. (Wikipédia). Não fazia a menor ideia.

Fecha Parênteses

Então

Eu era office-boy e comigo trabalhava outro garoto também office-boy. Vivia em um bairro mais pobre de São Caetano, que tinha uns cortiços, se não me falha a memória, Vila São José.

Mas o que me chamava atenção nele é que se tratava de um garoto extremamente inteligente. Falava francês. Aprendera sozinho, lendo livros. Sempre tive admiração por pessoas intelectualmente mais arrojadas. Era o caso desse garoto. Conversávamos bastante.

Ele também frequentava uma casa de umbanda. Opa! Isso é coisa do diabo. Era meu papel, como cristão, salvá-lo do inferno. Mas antes de salvá-lo, fiz todas as perguntas possíveis a respeito do que ocorria na umbanda, como ele fora parar naquela antessala do inferno.

Ele me contou tudo. Confesso que era fascinante. O mais fascinante eram os guias que ele recebia. Ele me dissera que fora parar na umbanda porque recebia esses espíritos e lhe disseram que ele deveria desenvolver sua mediunidade. Claro que não, dizia eu, esses espíritos na realidade são demônios. E comecei a levar a Bíblia para ele ler comigo, mostrando-lhe pelas escrituras sagradas, como era certo e verdadeiro o que eu dizia.

Ele não gostava de ler a Bíblia. Passava mal. Dizia que eram os espíritos que ficavam incomodados. Tá vendo? Por que incomodados? São demônios. Não suportam a palavra de Deus!

Passávamos todo o tempo do almoço conversando. E confesso que eu gostava. Porque, depois de um certo tempo falando com ele, do nada ele era possuído por um espírito qualquer e conversava comigo. Lembro-me que um dos espíritos era de um garotinho que havia morrido quando garotinho. Por isso espírito garotinho. Elementar, meu caro Watson. Ele falava como uma criancinha, enchia as bochechas emburrado, fazia biquinho. Era engraçado. Sempre que ele voltava do transe, sem noção do que tinha acontecido, me perguntava o que ele tinha feito e, quando eu lhe explicava, identificava o espírito.

Então eu gostava de provocá-lo apenas para desencadear o transe e a possessão de algum desses espíritos. Muito antes dos shows deprimentes e trapaceiros da IURD na TV, veja que coisa!

Com o tempo ele me disse que seus guias, esse era o termo, haviam lhe dito em uma sessão na casa de umbanda que ele deveria se afastar de mim porque eu era alguém perigoso, uma péssima influência para ele. Pensa na sensação de poder. O diabo está com medo de mim! Eu estava com a bola toda.

Ele me disse que havia um espírito muito forte, Exu, que era do mal. Que ele não gostava de receber. Um dia, estávamos escovando os dentes no banheiro masculino coletivo da concessionária e, do nada, ele começou a soltar grunhidos e caiu no chão convulsionando. Mas eu já tinha me preparado para isso pois estava em constante oração. Tentei contê-lo com a mão esquerda enquanto com minha mão direita, firme, sobre sua cabeça, fiquei alguns instantes expulsando o demônio que lhe havia possuído, em nome de Jesus, com muita autoridade na voz, a meia voz, claro, torcendo para ninguém entrar no banheiro e se deparar com aquela cena dantesca. Depois de alguns instantes ele recobrou a consciência e confirmou minha suspeita: havia sido Exu. Ele estava muito irritado comigo.

Eu lhe disse que ele deveria frequentar uma igreja evangélica para se livrar daqueles demônios que o atormentavam, que ele poderia ter uma vida feliz. Com o tempo ele pareceu realmente querer a libertação da qual eu falava. Marquei um dia para levá-lo à igreja. Fui de carro com um irmão, um sábado à tardezinha, para levá-lo ao culto. Fomos até o endereço que ele passou na Vila São José. Ele não estava. Esperamos. Ele nunca apareceu. Desistimos, decepcionados. O diabo é xujo.

Depois disso nossa amizade esfriou. Alguns meses mais tarde eu seria demitido.

Vendo o surto de Ondine Duquette na série, transformando-se em uma criança, mais uma vez retomo esse episódio do passado e refaço a leitura que já fiz diversas vezes:

Um garoto muito inteligente, aprendera a falar francês sozinho, em um bairro pobre, uma vida familiar bastante tumultuada, provavelmente deveria ter sofrido alguns tipos de violência que ele nunca me contou. Poderia ter desenvolvido múltiplas personalidades, um processo de autodefesa da psique para evitar o sofrimento que fragmenta a personalidade da vítima em várias sub personalidades? Não é difícil.

Seu sofrimento e incompreensão de sua parte em função das ausências e comportamentos que ele não conseguiria compreender, quando em contato com alguém da umbanda, naturalmente encaminharam para o diálogo você é alguém especial, tem medinunidade e precisa desenvolvê-la? Não é difícil.

E eu, diante dessa situação toda, tinha certeza que era coisa do diabo? Não tenha dúvida.