sábado, 28 de março de 2020

Síntese gelatinosa

Como é bom estar na fazenda. Abandonar a grande cidade, o ruído, a agitação, ouvir os mugidos das vacas, o cacarejar das galinhas, sentir o cheiro do fogão à lenha misturado ao cheiro de capim da chuva recente... Esses pensamentos faziam a mente do ator divagar enquanto descia a pequena alameda barrenta com seus amigos também convidados por um amigo em comum, de posses, para um fim de semana de isolamento e descanso.

Desceram, instalaram-se na casa grande e depois saíram todos para a agradável varanda com suas cadeiras de madeira, o morro e o riacho que percorria por trás dele e passava ao lado da fazenda, numa espécie de praia, de águas cristalinas e convidativas para um nado até a outra margem.

Enquanto conversavam, bichano, o mais arredio dos felinos da fazenda, veio se enroscar nos pés dos convidados, num balé apressado e esquisito, que chamou atenção de todos. O dono da fazenda externou sua preocupação, pois aquele animal estava estranhamente agitado nos últimos dias e, algo impensável para ele, agora dera de se enroscar nas pessoas, pior ainda, que ele não conhecia. Nas últimas semanas a fazenda havia ficado vazia. Seria efeito do confinamento do gato, longe das pessoas? Não pode ser, protestaram os convidados. Houve até quem perguntasse seu nome, em tom de brincadeira: Banzé, Marley, Pluto?

O bichano olhou para seu dono, surpreso de ele ter sido capaz de identificar seu sofrimento. Não esperava isso. Mas ele mesmo, nada afeito a sentimentalismos, nas últimas semanas vinha sendo vítima de uma estranha tristeza, uma apatia, uma vontade de nem sei o quê, uma dor no peito, uma sensação de que a vida estava por um fio, incapaz de resistir a qualquer contingência da vida. E a vida é cheia de contingências. Como sobreviver? Como se manter lúcido? E, por mais estranho que parecesse, o que afastava sua profunda angústia ainda que por alguns momentos, era se enroscar nas pernas dos humanos. Mas ele o fazia apressadamente, numa luta feroz entre seu desejo momentâneo e seus princípios milenares.

Dos presentes, ninguém mais que o ator, alguém de profunda sensibilidade, capaz de se entregar na experiência alheia, de seus personagens, um ser dotado de profunda empatia, foi capaz de decodificar o dor que ia no peito daquele desafortunado felino, não se sabe exatamente de onde surgiu a dor, mas ela esta ali, incrustrada no peito felídeo. E capaz de mergulhar no lago do sofrimento alheio, ele estendeu a mão e chamou bichano para si. E para estupefação de seu dono, bichano aceitou o convite e se aninhou no colo artístico.

Foi como se estivesse ocorrendo uma terapia intensiva de recuperação emocional. Enquanto afagava bichano, mergulhando na sua dor o ator pode perceber que o problema estava na fonte da vida, o pequeno coração do animal, que parecia envolvido em uma crosta muito grossa de dor e sofrimento. Foi então que o ator dirigiu ao animal todos seus afetos: calma, tranquilo, tudo vai passar. E, como num processo mágico de transferência de energia, os afetos se incrustaram no âmago do ser, dos sentimentos felinos e o curaram do que o estivesse causando sofrimento.

O animal, de repente, sentiu-se calmo, tranquilo, sereno, e sem a menor cerimônia, protocolo cultivado desde seus mais remotos ancestrais, saltou para o chão da varanda e desapareceu para além dos limites da varanda, sem sequer olhar para trás, sem a menor intenção de agradecimento. O ator, pessoa tão sensível que era, não conseguiu passar incólume por aquele insignificante acontecimento, a já esperada total falta de consideração por parte do felino. E, subitamente, como se a enfermidade tivesse, feita um vírus, evoluído e saltado da cadeia animal para a humana, sentiu seu coração atacado por uma forte pressão de tristeza, desespero, frustração. Enfim, o pântano da dor.

Pálido, com uma forte dor no peito, com o centro das atenções transferidas do gato para ele, seus amigos aflitos tentaram ajudá-lo. É um ataque cardíaco! Ele sabia que não e tentou convencer seus amigos disso. Mostrou-lhes, inclusive, que os sintomas clássicos do acidente coronário não se aplicavam a ele, enquanto lutava com dificuldade para não sucumbir diante da dor lancinante que o feria. Enfim, solícitos que eram, seus amigos o ampararam até o veículo mais próximo e o levaram ao hospital igualmente mais próximo, ainda que a uma desesperadora distância.

Por fim chegaram. Ele estava até mais corado. Mas alguns se lembraram que, perto da morte, as pessoas costumam ter uma súbita melhora. Então era melhor não dar sopa para o azar. Depois da entrevista com o médico no pronto atendimento, ele concordou com o nobre ator não se tratar de um ataque do coração, mas de uma estranha síndrome de fundo emocional que estava se alastrando de forma quase epidêmica e que a ciência ainda não tinha até então encontrado cura nem tratamento. Mas já era claro que tal síndrome era somatização de questões emocionais e atacava o coração dos vitimados.

Mas, como nem tudo está perdido e a ciência sempre está a abrir novas possibilidades, o médico informou o paciente que estavam testando uma nova terapia, algo revolucionário, e que já tinha dado resultado em vários pacientes. Tinha um nome científico complicado, mas poderia ser simplificado para o cidadão comum: síntese gelatinosa.

Em termos práticos, ele seria colocado em um aparelho que ressonância magnética evoluído, que leria todo seu organismo e suas memórias afetivas e sentimentais das últimas semanas. Um processo sofisticado de Inteligência artificial sintetizaria uma gelatina que seria uma espécie de “eu” do paciente que, uma vez ingerida por ele, se deslocaria por suas entranhas, chegaria ao coração e, por algum processo ainda não totalmente compreendido (daí porque uma terapia experimental), a síndrome desapareceria.

O ator aceitou a proposta, não tinha nada a perder, a dor ainda o incomodava bastante. Enfiado dentro da máquina de ressonância durante os 40 minutos necessários para sintetizar a miraculosa gelatina, ele se viu envolvido em uma espécie de viagem onírica freudiana. Enquanto a máquina mapeava suas informações, seu cérebro percorria vertiginosamente por sensações, memórias, sentimentos das últimas semanas, sons, cheiros, música, ruído, ventania, cores, abraços, amigos, espaços, alucinações e aquele felino que lhe partira o coração.

Findo o prazo necessário para a síntese da gelatina, os médicos lhe apresentaram a gosma miraculosa que, adicionada de uma essência para lhe tornar mais palatável, proporcionaria a cura. Devidamente acomodado em uma maca, deglutiu a gelatina. No momento em que ela tocou seu esôfago, escorregando por seus órgãos internos, um portal se abriu em sua mente e era como se ele mesmo estivesse dentro de si, enxergando seus órgãos internos.

Lentamente ele escorria dentro de si mesmo, descendo pelo esôfago. Foi quando ele enxergou o coração sobressaltado, agitado, irrequieto. Nesse momento, o ele-gelatina se sentiu profundamente tocado por aquele sofrimento, aquela inquietação e seu impulso imediato foi se aproximar do coração e envolvê-lo suavemente.

O coração parecia um gatinho assustado, precisando de carinhos, afagos. E a única ideia que ocorreu ao eu-gelatina, a síntese do empático ator, foi carinhosamente afagar aquele coração agitado: calma, tranquilo, tudo vai passar. E em meio aquela confusão, que para o ele-gelatina eram dores de uma vida agitada, correria, gases lacrimogênios, o abraço carinho foi deixando o coração cada vez mais calmo, mais calmo, mais calmo...

Morreu.