domingo, 30 de setembro de 2012

Meu primeiro amor homossexual

Meu amor pela música de concerto começou na minha infância e na Rússia. Eu ouvia de tudo, mas me emocionava mesmo era com os russos. Eu era acometido de um frenesi emocional sempre que ouvia as Danças Polovtsianas com orquestra e coro da ópera O Príncipe Igor, de Borodin. Até hoje não entendo porque aquilo me afetava tanto. Eu era apaixonado por Murssogsky (Uma noite no monte Calvo é demais, por exemplo), Rimisky Korsakov e mais uma lista grande de compositores russos. Quando consegui meu primeiro emprego de office-boy, a primeira compra que fiz foram 2 discos de vinil, em São Paulo: Scheherazade de Korsakov e Pretushka de Stravinsky.

Mas o meu compositor preferido mesmo era Tchaikovsky. As músicas dele eram transcendentais demais para mim. Até fiquei um pouco chateado quando, anos mais tarde, descobri lendo que a música dele foi muitas vezes interpretada como cafona. Depois da minha paixão pelos russos, ampliei meus horizontes musicais de forma bastante ampla, primeiro pelo Europa, sempre a partir do romantismo, depois classicismo, barroco e período mais moderno, nessa ordem, por fim, o novo mundo e o restante da música universal.

Mas, se eu tivesse que escolher o compositor que mais me marcou profundamente, não titubearia: Tchaikovsky. Suas melodias e seus contracantos sempre me tocaram profundamente a alma e, depois que conheci o barroco, eu sempre dizia para mim mesmo que Tchaikovsky era o mais barroco dos compositores românticos, justamente por conta dessa amalgamação entre melodia e contracantos. Fiquei feliz quando, anos mais tarde, li na revista colombiana elmalpensante em uma reportagem traduzida da revista The New Yorker a defesa da mesma ideia.

Minha profunda admiração por Tchaikovsky ficou ainda maior quando descobri que ele foi um homossexual. Minha primeira reação foi: “Está explicado! Somente um homossexual poderia ter tanta sensibilidade assim!”. Quando vi a resenha do livro lançado recentemente no Brasil e que parece ser a biografia mais completa já escrita sobre ele, resolvi comprá-lo e lê-lo o quanto antes: Piotr Tchaikovisky: Biografia, de G. Ermakoff, com tradução de Alexey Lazarev: http://oglobo.globo.com/cultura/biografia-detalhada-de-tchaikovsky-chega-ao-brasil-6214789

Para finalizar, há um detalhe na minha história que me remete à biografia de Tchaikovsky, apenas por uma circunstância parecida: ele manteve uma relação de amizade durante anos de sua via com sua mecenas Nadejda Von Meck, sem nunca jamais tê-la encontrado pessoalmente. Eu também mantenho uma amizade que remonta meus aos meus quinze anos, quando as pessoas se comunicavam por meio de cartas, e que dura até hoje com uma garota que vi pessoalmente apenas uma vez na vida. Não há qualquer tipo de ligação financeira, nem nada, apenas amizade. Mas essa característica de termos essa amizade até hoje, sem previsão para arrefecer, apesar da distância e da falta de contato físico, sempre me pareceu uma relação bem tckaikoviskyniana.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Um sobrevivente de Varsóvia


Domingo passado, no carro, ouvia uma peça de um compositor brasileiro pela Cultura FM, quando meu filho observou que aquele trecho lembrava o final do filme “O menino do pijama listrado”. Disse-lhe que aquele tipo de música servia bem para ilustrar a cena final do filme. Lembrei-me então da peça "Um sobrevivente de Varsóvia", de Schoenberg, e lhe contei a história da peça.

Trata-se de uma narrativa escrita por um judeu sobrevivente do campo de concentração de Varsóvia. O texto é impactante e Schoenberg utilizou o Dodecafonismo (do qual foi o criador e maior expoente) para ilustrá-lo. Não vou me perder em digressões técnicas, mas grosso modo o dodecafonismo é uma forma musical onde os 12 semitons da escala cromática têm igual importância (não existe "centro tonal", dó maior, por exemplo) e as melodias são escritas a partir de uma técnica chamada serialismo em que uma nota não pode ser repetida até que as outras 12 tenham sido tocadas. Daí resultam melodias absolutamente estranhas.

Ouvi certa vez na Cultura FM que, quando a música foi estreada, em 1947, o mundo ainda estava estupefato com os horrores da solução final e, ao final da execução, o teatro ficou paralisado, emudecido, sem esboçar reação. Dada a reação do público, já que não havia muito o que fazer, o maestro resolveu repetir a execução. Ao final dela, o teatro foi inundado por uma histeria coletiva e a execução foi aplaudida por mais de meia hora. Para se ter ideia da comoção que a composição causou. Hoje em dia ela não causa tanta, mas ainda assim é uma música impactante. Eu, quando a ouvi da primeira vez, fiquei bastante impressionado. Tenho uma interpretação em CD, cujo texto é em alemão e ele me parece mais forte, por conta da aspereza do idioma.


domingo, 23 de setembro de 2012

Releitura - Handel’s Messiah: A Soulful Celebration


No final do ano passado escrevi alguns comentários sobre o CD Handel’s Messiah: A Soulful Celebration (http://en.wikipedia.org/wiki/Handel's_Messiah:_A_Soulful_Celebration). Ontem, conversando sobre música em um grupo de discussão, a ideia da releitura de um tema me lembrou desse CD que é uma releitura das partes mais populares (highlights) do oratório O Messias de Handel.

Daí eu fiquei com vontade de restaurar aqueles comentários e publicar aqui:

O CD foi produzido por Quincy Jones em 1992 e é todo superlativo. Vou comentar algumas faixas, para não ficar mais extenso, daquelas faixas em que a releitura da partitura inicial me pareceu mais interessante. Coloquei alguns links do Youtube para ilustrar os comentários.

A audição do CD é muito mais rica para quem conhece bem o oratório de Handel. Alguns links do Youtube são da própria gravação, outros de interpretações

·         01-Overture_ A Partial History Of Black Music – delícia essa abertura com o resumo da música black; simplesmente genial http://www.youtube.com/watch?v=0hUV6KsWyZk  (versão parcial)

·         02-Comfort Ye My People – sublime! esse arranjo é avassalador; é de ficar paralisado diante da força da música black norteamericana (black é black com os negros norteamericanos – o resto é uma pálida sombra, arremedo, da intensidade visceral do black autêntico)  http://www.youtube.com/watch?v=1MTwitfUog8 (a versão do CD é muito, muito superior)

·         03-Every Valley Shall Be Exalted – genial como, já na primeira frase do solista barroco eles mudam radicalmente para a música black. A harmonia é fantástica

·         05-But Who May Abide The Day Of His Coming – o solo inicial – e o retorno a ele –, com a cantora black interpretando a partitura original é sublime http://www.youtube.com/watch?v=dOQtfC5ViBQ&feature=results_main&playnext=1&list=PL58FCA541E4A3676B (não chega aos pés do CD mas serve como referência)

·         06-And He Shall Purify – êxtase total! Esse trecho é baseado em Malaquias 3:3, aquele capítulo da Bíblia tão mal utilizado... A partitura original é uma das mais difíceis que já coloquei no coro assembleiano que regi por mais de 20 anos e, no oratório, só é superada na minha preferência pelo insuperável final “Worthy is the Lamb – Amem”, com sua superlativa fuga e que era a partitura preferida dos coristas do coro (de fato, era uma delícia fazer essa partitura). Outra parte coral do oratório que eu gosto demais (a 3ª preferida) é “His yoke is easy” que, inclusive, me inspirou em uma composição coral que escrevi http://www.youtube.com/watch?v=LTbpW4tpXIk&feature=BFa&list=PL58FCA541E4A3676B&lf=results_main (gravação original)

·         08-O Thou That Tellest Good Tidings To Zion – Take 6 é Take 6. Qualquer comentário é chover no molhado. http://www.youtube.com/watch?v=1Ct9cLEumKQ  IMPRESSIONANTE! Foi o Take 6 genérico mais perfeito que já ouvi. Para os desavisados: não é o Take 6.

·         10-Glory To God – genial a fusão do arranjo coral num estilo “erudito contemporâneo” com aquela loucura funk

·         12-Behold, The Lamb Of God – deliciosa essa versão instrumental arranjada pelo ex-arranjador do Take 6 http://www.youtube.com/watch?v=5kmYpsAD4jI  

·         14-Why Do The Nations So Furiously Rage? – é impossível ouvir essa sem um sorriso nos lábios; que delícia... puro jazz... http://www.youtube.com/watch?v=CoxrHPS2cL8  versão coral, uma pálida sombra da gravação, mas dá para ter uma idéia da idéia do arranjo

·         15-I Know That My Redeemer Liveth – Aleluia! Meus argumentos estão se acabando. http://www.youtube.com/watch?v=e4o8yDjn0_g (gravação original)

·         16-Hallelujah! – a grandiosidade do coro (que não reproduziremos na Comuna por motivos óbvios, dentre eles a falta de... chorus) e a beleza do arranjo (escrito por Mervyn Warren [ex-arranjador do Take6], Michael Jackson [já ouviram falar?] e Mark Kibble [arranjador do Take6]) fazem jus a essa que é a parte mais popular desse que é considerado por muitos o principal oratório da tradição musical ocidental http://www.youtube.com/watch?v=vkbuHu2D_Ro (gravação original)

sábado, 22 de setembro de 2012

Por um fio

Vinte e quatro de novembro de dois mil e oito. Um dia depois do nono aniversário do Vítor. Sete e meia da manhã. Despeço-me dele quando ouço uma mãe gritar desesperadamente ao meu lado:

– Solta, solta! Ele tomou um choque!

Ouço um grito desesperado, o ruído da queda de algo. Olho para o outro lado da rua a tempo de ver utensílios de pintura caindo no chão, enquanto alguns pintores, atabalhoados, não sabem o que fazer.

É então que eu percebo o que aconteceu. Um grupo de pintores se ocupava de seu labor no prédio de um sindicato. Vários pintavam a fachada a partir da calçada e um deles fazia o mesmo a partir de uma laje na altura do 2º andar. Esse pintor manejava seu rolo com um cabo extensor, de cima para baixo. Provavelmente, ao fazer uma manobra com seu rolo para recolhê-lo, deve tê-lo afastado demais da fachada e tocado num dos fios do poste na calçada. Foi quando se deu o acidente. A mãe ao meu lado grita desesperadamente para os colegas do eletrocutado que ele havia tomado um choque e estava caído na laje. Alguém acode: “Chama os bombeiros!” Ante a dificuldade da mãe do grito em digitar 192 no teclado do seu celular, saco o meu e, mais que depressa, aciono o socorro.

Tentando manter a calma, dou as informações de praxe. Rua tal, número tal, no edifício do sindicato. A atendente quer mais detalhes: “Ele está desmaiado?” Grito para um dos pintores que já havia escalado a laje, mas está abaixado e o muro me impede de enxergá-lo. “Ei, o rapaz desmaiou?” Como ele não responde, quem sabe ocupado em tentar reanimar o colega ou talvez ele mesmo desmaiado de susto, informo que provavelmente sim. Entretanto, a lentidão e placidez da atendente me irritam. O infeliz acabou de tomar um choque, sabe-se lá em que estado se encontra e, em vez de mandar logo a porcaria do socorro, ela insiste com perguntas retóricas demais para o meu nível de ansiedade.

– Seu nome, por favor.

Meu nome? Que diferença o raio do meu nome faz nessa altura do torneio? Por uma fração de segundos, penso em responder José para simplificar, como muitas vezes faço quando falo com atendentes ao telefone para evitar que elas se enrosquem tartamudeando por labirintos e escaninhos silábicos na tentativa de acertar meu nome, mas a seriedade do momento exige total sinceridade de minha parte, o que me impede de dizer mesmo que uma mentirinha com a melhor das intenções.

– O...ba...di...as, contesto articulando o mais claramente as sílabas.

– Obadia?

Em outras situações eu faria questão de corrigir: Não! Obadiasss! No plural... Oba, interjeição de alegria e dias, contrário de noites... Isso mesmo! Mas a premência da situação impede que eu me perca em preciosismos ortográficos.

– Exatamente.

– Ok, o socorro está a caminho, responde a fleumática e irritante atendente.

Molhado que já estou da chuva e como todo ser humano decente deveria reagir, entro no sindicato às carreiras, subo um lance de escadas e depois escalo a parede por meio de uma escada que lá se encontra encostada. Encontro o pintor caído, olhos semicerrados mirando quem sabe um corredor com uma forte luz branca, o corpo meio retorcido. O rapaz que chegou antes de mim, um transeunte que passava por acaso no local e que eu imaginei inicialmente ser um dos pintores, me pergunta se eu tenho noções de primeiros socorros. Digo-lhe que não e, enquanto ele tenta fazer uma massagem torácica, me ocorre ligar para minha cunhada enfermeira e, quem sabe, ser orientado por ela. Como desconheço o número do seu celular e não me recordo do número do meu irmão, ligo para casa da minha irmã, a lista telefônica da família. Atende-me o cunhado, sonolento. A Neide está aí? Não. A minha mãe está? Não, mas pode falar. Cara, preciso falar urgente com o Micaías, mas estou sem o telefone dele aqui. Espera aí que vou buscar. Vai logo que é urgente! Alguns eternos instantes depois ele retorna e tenta me dizer o número do telefone. Atrapalha-se várias vezes e insiste em recitar um número de nove dígitos. Francisco, um telefone tem oito dígitos, você está me dizendo um de nove! Espera aí que vou procurar em outro lugar. Mano, vai logo, tem um cara aqui que está morrendo! Uma eternidade depois, o transeunte insistindo na massagem cardíaca e numa única tentativa de respiração boca a boca, meu cunhado volta ao telefone e, finalmente, recita o número correto. Ligo para meu irmão e, surpresa!, o seu telefone se encontra registrado no meu celular. Como não pensei nisso antes? Ele atende, eu lhe explico rapidamente o problema e, quando ele pensa em me informar o telefone da esposa, digo-lhe para esquecer, afinal o SAMU[1] acaba de chegar.

 

A morte é algo estranho. Desde que a crise dos quarenta me pegou aos trinta e cinco anos e eu passei para a segunda metade da minha vida, uma vez que morrer antes dos setenta será algo precoce para minhas aspirações, tenho pensado um bocado sobre minha morte, afinal, a vida é tão boa, por que morrer cedo? E minha missão enquanto ser humano? Não estaria inacabada caso eu passasse dessa para melhor tão jovem? E meus filhos? Órfãos antes do tempo? Cruel. Mas a verdade é que levantamos num belo dia de sol cheio de planos e veja o caso do pintor, a morte nos traga sem a menor cerimônia, se é que o pintor morrerá de fato dessa vez, o que ainda não sabemos. Não é o caso de se desesperar, mas a vida é uma roleta cheia de surpresas. Amanhã pode ser nossa vez. Aliás, quem sabe hoje mesmo, daqui a pouco.

Quando criança, eu era um garoto enfermiço. De tanto tomar antibióticos, meus dentes apodreceram precocemente. Minha mãe, desesperada com minha insistência em não comer, comprava-me doces, mimava-me para eu me alimentar, o filho raquítico. Recordo-me do pessoal fazendo aviãozinho para eu ingerir as colheradas. Por temer que eu morresse ainda criança, seus cuidados comigo eram redobrados: ainda hoje dizem que sou seu filho preferido. Mesmo que fosse verdade, daria um desconto à minha mãe, afinal é da índole materna proteger mais os filhos mais frágeis, algumas até ultrapassando o limite do bom senso, Milton Hatoum que o diga. Quando adolescente sofria de gastrite que me rendeu um tratamento de acupuntura. Certa vez amanheci cuspindo sangue e fui parar em um hospital público; nem me lembro o que foi diagnosticado, mas deve ter sido algo com relação à gastrite. Como se não bastasse, sofria desmaios ocasionais, meus ferimentos custavam cicatrizar, padecia de enxaquecas intermináveis, enfim, era uma festa.

A bem da verdade, meus problemas não eram sérios, eram apenas chatos. Tanto que sobrevivi sem quaisquer sequelas. O único problema que realmente deu trabalho para diagnosticar foi um fenômeno curioso que às vezes me tomava: de repente, tudo à minha volta parecia extremamente grande. Eu esticava meu braço e me divertia ao enxergá-lo como se ele fosse muito comprido. Eu gostava muito de me deitar de costas na sala de casa, os olhos voltados para a barra da cortina. Desse ângulo, o topo da cortina parecia estar a quilômetros de distância, quase tocando o céu do estuque da casa. Nessas ocasiões, as pessoas pareciam ter cabeças minúsculas e a sensação era de que a distância que nos separava era imensa. Esse fenômeno acontecia com alguma freqüência. Até hoje ocorre, ainda que muito raramente, quando fico muito cansado ou estressado. De tanto comentá-lo com minha mãe, percorremos vários médicos, fiz exames diversos, cheguei a fazer uma tomografia, mas ninguém descobria o que eu tinha. Até que um médico da Casa da Esperança, um centro neurológico em Santo André, pensou ter descoberto o problema: Síndrome de Wilson. “A síndrome de Wilson (SW) é uma doença cromossômica genética onde existe um defeito no metabolismo no cobre. Caracteriza-se por ter uma herança autossômica recessiva, sendo que o gene envolvido é o ATP7B, situado no braço longo do cromossomo 13 (...)”[2]. Tecnicismos incompreensíveis à parte, o médico disse que constatou uma irregularidade em minha íris e, eureca!, aquilo era característico da curiosa doença. Fim do mistério! Encaminhou-me para outro especialista que me mandou de volta, quando, depois de alguns exames, constatou que algo determinante no fígado não se encontrava no meu caso, portanto eu não sofria da tal síndrome. Retorno ao mistério. E ficou por isso mesmo essa minha estranheza. Some-se a isso um formigamento que eu sentia no cérebro. Mas essa foi fácil descobrir. Fácil em termos: depois de uma peregrinação em alguns médicos descobriu-se o problema, um molar cariado.

Apesar desses acidentes de percurso, a morte nunca foi um problema para mim. Ela se tornou uma ameaça imaginária, em vias de se tornar real, a partir da confluência de dois fatores, o primeiro deles resultado da minha lógica obtusa: se a minha vida é tão boa e há tanto sofrimento no mundo, algo está errado; portanto, para que a balança se equalize, eu morrerei de câncer. Evidentemente, esse pensamento não me assaltou da noite para o dia; ele veio se esgueirando insidiosamente na minha mente até tomar posse de um cantinho, feito um assaltante que invade a propriedade alheia na calada da noite para levar algo de valor que encontre. Quando dei por mim, o bom senso já havia sido surrupiado. Explicando melhor, aparte das limitações financeiras que passei na infância e adolescência, nada mais de extraordinário aconteceu na minha vida que pudesse ter um impacto negativo considerável. Sonhos eu sempre tive, mas nada que fosse grandioso demais, afinal, nunca fui soberbo, nunca olhei as outras pessoas com arrogância, nunca tive sonhos mirabolantes, fora do meu alcance. Nossas frustrações são proporcionais aos tamanhos de nossos sonhos: sonhos medianos, frustrações idem, pouco estresse, nada que traumatize. Sempre deixei a vida me levar, grato a Deus por tudo que ele me deu, por vezes pouco, mas o suficiente. Acrescente-se a isso, minhas amizades. Os amigos são um patrimônio inestimável e, com raríssimas exceções e por motivos alheios ao meu controle, sempre consegui cultivar boas amizades. Além de amigos, tenho até mesmo alguns admiradores, pessoas que, a bem da verdade, são muito generosas comigo, já que me valorizam além do que eu realmente valho. E aí há uma grande injustiça, parece-me, afinal há pessoas muito mais legais, muito mais interessantes, muito mais íntegras que eu que não dispõem de uma relação tão profícua como a que eu tenho com o outro. Talvez essa minha sensação de injustiça seja reflexo de um complexo de inferioridade mal resolvido, questão que já me ocorreu algumas vezes, ou talvez minha dificuldade em aceitar a Graça[3] quando alvo dela.

E quanto ao sofrimento?[4] Muito do nosso sofrimento se deve a nós mesmos, mas o mesmo não pode ser dito a respeito de tantas criaturas que nascem em condições miseráveis, violentas, sem opção de escolha, só para ficar num exemplo. Quanto a mim, tenho uma vida ótima, uma verdadeira dádiva dos céus. Por que minha vida é tão boa quando tanta gente padece sofrimento? Independente das respostas do cristianismo e apesar dos meus esforços para ajudar o próximo, a miséria alheia me incomoda bastante e, por vezes, quase me leva ao sentimento de culpa. Diante de tanta miséria nesse mundo, é quase indecente viver tão bem. Aliás, não é de se admirar que as pessoas comentem a respeito de alguém rico que tem uma doença grave: “com tanto dinheiro e não conseguiu ter saúde!”. Na realidade, acredito que há uma idéia subjacente a esse tipo de afirmação: “com tanto dinheiro era de se esperar que não tivesse saúde, afinal essa injustiça tem que ser reparada de alguma forma”.

Quem não tem problemas? Mesmo as pessoas que não possuem problemas econômicos podem passar por problemas ocasionais, entretanto muitas pessoas passam toda uma existência condenada por todo tipo de problema. Definitivamente não é o meu caso. Considero-me uma pessoa feliz e realizada. Com raríssimas exceções, minha história está permeada de plenitude e felicidade. Daí porque essa idéia curiosa da morte por câncer: quando a oferta é muito grande, o santo desconfia.

O segundo fator em que a morte se tornou uma presença mais real foi ela mesma representada numa experiência muito amarga que eu tive. Minha expectativa em relação às pessoas é mínima. Eu jamais diria de alguém haver traído minha confiança simplesmente por eu jamais esperar que as pessoas não falhem, afinal, ninguém é perfeito. Entretanto, estupidamente, abri uma exceção e me dei mal, muito mal. Foi uma experiência tão amarga que me levou a fazer terapia. Quando os eventos estavam no seu auge, eu mal dormia à noite. Pela manhã acordava com um zumbido na cabeça que passava depois de algumas horas. Num dia não passou. Só depois de alguns dias me dei conta que o zumbido ficara no meu ouvido esquerdo. Procurei um médico, mas já era tarde: o estresse me causara uma lesão no ouvido e perdi parte significativa da minha audição esquerda, que foi substituída por um zumbido que nunca mais me abandonou. Minha mãe sofre do mesmo mal há anos, depois de levar um tombo. A diferença é que minha lesão surgiu mais precocemente que nela. Outro aspecto curioso é que meu ouvido esquerdo ouve notas musicais meio tom abaixo. É fácil constatar isso: se ouço uma música com fone de ouvido, ela soa num determinado tom. Se ouço apenas com o ouvido esquerdo, a sensação é que a música baixa meio tom. Se ouço com o direito, percebo a música no tom original. Normalmente, quando ouço uma música, não sofro nenhuma sensação de desconforto como se estivesse ouvindo dois tons. Entretanto, passei a ter uma grande dificuldade para afinar instrumentos, violão, por exemplo. É como se meus ouvidos estivessem descalibrados e eu tivesse dificuldade de identificar bem quando duas notas estão soando na mesma freqüência. Por conta desse problema, faço visitas periódicas ao otorrino e a constatação é que meu ouvido direito tem uma sensibilidade acima da média, equivalente a uma criança de seis anos, algo que me parece razoável já que desde a infância meu ouvido foi sempre treinado, por conta da minha percepção musical. Entretanto, assim como alguém que tivesse uma perna atlética e outra mirrada teria dificuldade para caminhar, de nada me adianta um ouvido com tamanha sensibilidade, uma vez que o resultado é a dificuldade para ouvir, principalmente na região aguda do espectro sonoro.

Eu tomei a decisão de fazer terapia porque teria que gastar muita energia para tentar resolver sozinho o trauma e tinha receio de que, no meu estado depressivo, pudesse somatizar uma nova doença qualquer. Como meu estômago sofreu muito nessa época, eu temia desenvolver um câncer no estômago ou minha gastrite se tornar uma úlcera. Conheço caso de pessoas – quem não conhece? – que adquiriram graves doenças decorrentes de somatizações de ordem emocional. Eu não gostaria de aumentar essa estatística.

Claro, todas essas experiências têm aspectos positivos: ganhei um grande amigo no meu terapeuta e meu irmão poeta me dedicou um poema quando eu estava deixando a fase crítica do trauma, no meu aniversário de 37 anos, poema esse que um dia ainda hei de musicar:

 

Trinta e Sete Anos

 

              Para o Badia, meu irmão.

 

Aos 37, a ti compete
Seguir em frente
e, num repente (mas sabiamente)
olhar à frente e ver o novo,
que vem latente e, como um ovo
prestes a romper-se
encerra vida nova e esperançosa.

 

 

Aos 37, a ti compete
o rompimento que traz alento
a sonhos antigos e encerrados,
em tempos outros, ultrapassados,
ou em recentes, tumultuados.
Romper, e à luz trazer o novo
é sempre bom, sempre é renovo;
faze-o e dize-o com garra e esforço:
"Aos 37, também me movo".

 

 

Aos 37, a ti compete
tomar tua cruz, sem mágoas, sem rodeios.
A fé tem olhos à razão alheios.
Por estes olhos verás, por certo,
quais são as formas, quais são os meios
Para tornar-te cristão inteiro.
Aos 37, pára e reflete:
A quarta década vem chegando;
Vai me encontrar caído ou lutando?

 

Micaías Pascoal de Deus

 

Se o trauma me colocou em contato mais direto com minha finitude, ela também foi uma experiência com a morte, não no sentido literal do termo, mas no efeito que a experiência me causou: virei páginas da minha vida, o que não deixa de ser uma espécie de morte. Idéias, sentimentos, sensações, ingenuidades morreram. Como no poema do meu irmão, rompi com alguns conceitos passados. Morri um pouco, ainda que algumas renúncias tragam novo sopro de vida. Também tem a questão do perdão, que nos parece bonita até que precisam perdoar alguém de fato[5]. Eu sempre me considerei um perdoador até que me deparei com uma ofensa que realmente me feriu. Foi então que eu percebi que perdoar pequenas ofensas, principalmente quando não se espera muito das pessoas, é quase não perdoar. Perdão implica em perda, abrir mão de um direito. E isso dói um bocado. Perdoar também é morrer, é uma espécie de suicídio em favor do outro. Não direi que eu fui um exemplo de perdoador a ser seguido, mas tive que engolir meu instinto assassino (metaforicamente, é claro) e isso já é alguma coisa. Matar esse psicopata dentro de mim também foi uma experiência mortal.

Portanto, em duas situações eu me via um candidato potencial para empacotar: como solução da injustiça no mundo, uma vez que eu sempre vivi o lado bom desse drama e quando eu, estupidamente, me permiti me machucar e, se não tomo umas decisões mais drásticas, poderia ter somatizado alguma doença séria, talvez atraindo a morte para mais perto de mim.

 

Enquanto eu tento contatar meu irmão para contatar minha cunhada para ajudar a me contatar com o fio de vida que provavelmente ainda resta no moribundo, as massagens torácicas e a quase respiração boca a boca que o transeunte está aplicando no acidentado parecem surtir um fugaz efeito: ele dá um suspiro. Ótimo presságio: ele não deve estar morto, apenas desmaiado. Que bom que o transeunte não é um inútil como eu em primeiros socorros; ele conseguiu arrancar ao menos um suspiro do eletrocutado!

O pessoal do SAMU estaciona a ambulância e, calmamente, se dirige à laje onde estamos instalados. A calma deles me parece anormal, irrita-me. Mas deve ser assim mesmo, eu que sou um mero desconhecedor do tratamento (e da presteza) adequado para uma situação como essa. Os dois socorristas escalam a laje e verificam a situação do local. Perguntam se existe alguma tomada para ligar o desfibrilador. Tomada??? Como é que não pensaram em colocar uma tomada na laje para uma eventualidade como essa? Parece-me estranho o desfibrilador só funcionar com energia elétrica, mas, enfim, sou leigo no assunto. Um dos socorristas fala pelo seu comunicador sobre a dificuldade de acesso: talvez sequer consigam subir o desfibrilador. Maca, nem pensar. De minha parte, o que posso fazer, o faço: depois de pegar o equipamento de oxigênio que estava com um dos socorrista trepado na escada, equilibrar-me por uma viga de concreto que dá acesso à laje e entregá-lo ao outro socorrista que já está atendendo o acidentado, desço rapidamente a laje e pergunto aos empregados do sindicato se há uma extensão. Não faço idéia de que tamanho pode ser e nem quero saber onde pode estar a tomada mais próxima. Espero que um milagre resolva o problema da distância da tomada e o tamanho da extensão necessária para permitir que o desfibrilador seja ligado. Caramba, mas desfibrilador não deveria funcionar à bateria? Uma das senhoras interpelada me diz que vai tentar localizar uma extensão e antes de desaparecer pelos corredores do sindicato, vaticina: “Ele não vai morrer, em nome de Jesus!” Amém é a minha resposta. Talvez seja esse o milagre que precisemos: que ele simplesmente não morra, independente de desfibrilador, tomadas, extensões, macas ou quaisquer recursos para ressuscitá-lo. Talvez ele precise mesmo é de um “talito” cumi.

Um rapaz se aproxima de mim, os olhos são puro desespero. Como está meu irmão? Ele está bem? O que lhe dizer? Algo me diz que a situação do rapaz é crítica, mas os olhos do seu irmão não estão preparados para ouvir coisa semelhante. E se ele tem que ouvir, não será de mim, evidentemente. Conto-lhe o episódio do suspiro, um fio de esperança para ele. Fujo do rapaz, a pretexto de encontrar a extensão. Topo com alguns empregados do sindicato, mas nenhum deles ainda encontrou uma extensão, até que alguém me traz um cabo com as pontas descascadas, sem plugue, sem nada. Aquilo não serve de nada. No instante em que penso o que fazer, a senhora me aborda de novo e me relembra: “Ele não vai morrer, em nome de Jesus!” Já consternado, devolvo-lhe um Amém. Num futuro muito próximo ela me abordará de novo com o mesmo bordão – e adianto o episódio aqui porque não vou tratar mais desse detalhe – mas eu não lhe respondo nada afinal fica claro que, se essa senhora tem alguma certeza é que ela não tem certeza de nada, do contrário não precisaria ficar repetindo o mesmo bordão como quem quisesse provar a si mesma que seria capaz de acreditar que a providência divina pode livrar o rapaz de sua morte iminente, se é que ele já não está morto.

Resolvo subir de novo na laje para perguntar ao pessoal se a extensão é imprescindível. Não é. Já que lá estou novamente, lá fico para ajudar no que for possível, enquanto uma pequena multidão se forma na rua. Como você não avisou que ele estava tendo uma parada?, pergunta-me um dos socorristas. E eu iria saber?, respondo, quase ofendido, sem me lembrar de acrescentar que eu estava na rua, sem acesso à laje. Já o transeunte das massagens cardíacas, mostra-se mais que um transeunte com alguma noção em primeiros socorros. Explica que é um funcionário da Eletropaulo que estava passando por acaso no momento do acidente. Ele então, o ex-pintor, o ex-transeunte-sem-qualquer-relação-com-o-acidente, o agora providencial funcionário da Eletropaulo, explica ao socorrista que por aquele fio passa uma carga de cerca de 13 mil volts. Caramba! Como o cara não virou carvão? Bem, há muito tempo deixei meus estudos de eletricidade e não sei exatamente se essa voltagem tem a propriedade de transformar um organismo vivo relativamente sadio em um pedaço de carvão. De forma que apenas escuto o diálogo do funcionário da Eletropaulo e do socorrista que, depois de encaixar a máscara de oxigênio no rosto de olhos vazios, recomeça a massagem torácica, dessa vez com a competência de um perito. O rapaz da Eletropaulo animado com sua especialidade em assuntos elétricos, começa a descrever seus esforços para ressuscitar o eletrocutado. Conta e reconta como fez as massagens, o detalhe do suspiro, que ele foi o primeiro a chegar, não se esquece do detalhe dos 120 volts do cabo da rede elétrica (ué, não eram 13 mil volts? onde foram parar os 12880 volts restantes?) Lá pelas tantas, o socorrista solta um lacônico “foi isso que salvou o rapaz” talvez como quem diz “ok, já entendi, agora deixa eu me concentrar aqui”. O rapaz parece realizado porque, afinal, terá uma história para contar aos seus netos, o dia em que ele fez uma massagem e salvou um eletrocutado da morte. Quanto a mim, o que contarei se não morrer até lá? Que não sabia que o rapaz tivera uma parada cardíaca? Que não consegui falar com minha cunhada antes e receber eu os louros do heroísmo? Que não soube o que dizer ao irmão do eletrocutado? Que não fui capaz de encontrar uma extensão que prestasse ainda que desnecessária? Enquanto esses eventos de fundamental importância ao acontecimento se desenrolam, o outro socorrista liga para os bombeiros e solicita um apoio adicional, afinal as condições do moribundo e – principalmente de acesso – não são favoráveis. Quando da iminência da chegada da viatura dos bombeiros, o socorrista me pede que eu faça sinal à viatura, já que eu sou o que está mais próximo da mureta da laje. Mas nem é preciso porque, ao surgir na curva da rua com as sirenes a todo vapor, a muvuca que já tinha se formado na rua permitiria a rápida identificação do local mesmo que o condutor fosse algum dos personagens de Saramago, menos a Júlia Moore, é claro.

 

Se a morte se tornou um tema recorrente por conta da suposta injustiça de minha condição de vida tão privilegiada e da experiência traumática que eu tive, até os 39 anos e oito meses eu ainda não havia tido a visita da morte a mim mesmo ou a alguma pessoa de meu convívio mais íntimo. Não digo depois dessa data porque já terei terminado de escrever esse capítulo e não pretendo revisá-lo por conta disso.

O primeiro contato com a morte que me lembro foi na minha infância, quando fui a um velório de um senhor vizinho na Travessa Oscar Freire, na época em que os velórios eram feitos na residência dos então desencarnados. A família era conhecida de minha mãe e me lembro de que eu fiquei algum tempo no velório. Eu era bem pequeno e havia um defunto naquele enorme caixão. Não me lembro se eu consegui enxergar o defunto, acho que não tinha altura suficiente, mas me recordo que a impressão foi muito forte. Nos dias seguintes a imagem de um caixão onde havia uma pessoa morta dentro me perseguiu implacavelmente. Afortunadamente, sobrevivi.

O outro episódio de morte foi com a família Martins do Carmo. Amigos de nossa família, quase parentes, o Adalberon, marido da Amarina e pai de quatro filhos, trabalhava na Petrobrás, se não me engano. Ele vivia viajando. Eu quase não o via. Lembro-me de que não gostava quando ele voltava porque sua presença representava alguma intimidação para mim e, de repente, a casa deles deixava de ser minha casa e eu me sentia uma visita. Então eu gostava mais quando ele estava viajando. Egoísta. É claro que a Amarina, sua sogra Dona Eulália e os quatro garotos não sentiam o mesmo que eu. Os anos se passaram e, numa tarde, chegou uma notícia: o Adalberon, que estava no Nordeste, morrera. Não me lembro dos detalhes, mas o Micaías, meu irmão, de memória prodigiosa, se lembrará de todos eles. Perguntem a ele. O que me lembro foi do desespero, da desolação, da dor, do desamparo. Eu não convivia com o Adalberon, não me sentia à vontade com ele, mas sofri na pele dos Martins do Carmo. Foi horrível. A perda deles foi a minha. Foi o meu batismo no luto. A perda de um ente querido, principalmente de forma precoce, é algo muito difícil de suportar. A empresa informou que ele havia morrido na praia, enquanto tomava um banho de sol ou afogado, não me lembro. E mandaram o caixão lacrado sem mais explicações. Foi revoltante porque ficou a nítida impressão de que eles mentiram e, para não pagarem a devida indenização, inventaram uma história qualquer. Bastardos. Espero não estar sendo injusto.

No meu ciclo familiar mais íntimo, em tese, o primeiro da fila é meu pai. Com mais de 74 anos, já teve câncer na próstata, sofre de hipertensão, é diabético e já teve um micro derrame. Mas o velhinho segue valente. É bem verdade que seu micro derrame o deixou bastante esclerosado. Ele havia ido para a casa de minha irmã e, quando voltava de ônibus, sofreu o derrame. O resgate o levou para o hospital público de Santo André, aquele que viveu seus dias de notoriedade no triste caso Eloá. Meu pai sempre foi muito fechado, pouco falador, discreto, desprovido de sinais externos de carinho. Por conta desse perfil de personalidade, nunca fomos íntimos, a exemplo de minha mãe. Recentemente, comecei a beijá-lo nas despedidas. Não é que o velhinho adorou? Como já venho me preparando há anos para aceitar a idéia da morte dos meus pais, fui visitá-lo no hospital com uma boa expectativa, uma vez que eu já sabia que o derrame havia sido pouco mais que um susto. Eu me julgava preparado para enfrentar um simples ensaio das primeiras notas do último movimento, inclusive por nossa relação um tanto mais polida. Quando o vi deitado na maca da enfermaria, abandonado em meio a outros enfermos, fragilizado, os cabelos em desalinho, não resisti. Disfarcei e saí rapidamente para fora do hospital. Chorei.

Eu não estou me preparando para minha morte, afinal esse é o tipo de evento que ninguém gosta de se preparar. Se eu morrer precocemente, não há muito que fazer. O máximo que espero é que, se alguma coisa prestar dos meus órgãos, façam-me o favor de doar. Não faço questão de lápide alguma e, se não for caro, posso ser cremado. Espero que meu seguro de vida pague direitinho, que a Flávia mande um email para as pessoas da minha lista de contatos no Outlook informando que fui desta para melhor e que o arquivo de senhas está à disposição dela em local não informado aqui. Se você for ao meu enterro, contente por não ter sido sua vez de receber o bilhete premiado e com aquela curiosidade mórbida para verificar se estou sorrindo ou deformado ou se colocaram bastante algodão no meu nariz, e não ouvir o Réquiem de Maurice Duruflé, procure o organizador da festa e lhe pergunte: vocês não se esqueceram do réquiem? Também seriam uma boa pedida o Requiem for my friend de Zbigniew Preisner (com destaque para Kairos, sobre Eclesiastes 3, para uma reflexão sobre a transitoriedade da vida) ou o Réquiem de Gabriel Fauré (com destaque para o pungente Libera me, para a despedida final).

 

Enquanto os bombeiros não chegam, os socorristas continuam a tentativa de ressuscitar o eletrocutado. Um deles solicita que o funcionário da Eletropaulo o ajude levantando um pouco a cabeça do moribundo enterrada na máscara de oxigênio. Ao fazê-lo, Aleluia!, seu estômago se dilata. O socorrista explica que sua glote estava obstruída. Mas nossa alegria dura pouco: esse é o último movimento executado por ele que eu presencio.

Os bombeiros chegam e rapidamente se dirigem à laje. Observo que um deles atravessa a viga de concreto que dá acesso à laje com extremo cuidado, como quem anda sobre uma corda bamba. Ou ele está com medo ou é extremamente cuidadoso. Opto pela segunda opção, afinal ele é um perito e sabe muito bem dos riscos de atravessar aquela viga. Só não sei explicar como os outros não são tão cuidadosos também.

Sobram pessoas na laje. Percebo que é hora de sair de cena. É preciso ter o discernimento para saber quando não se é mais necessário, o momento em que, de ajuda, pode-se tornar um estorvo. Desço da laje e, antes de abandonar o sindicato, me encontro com o irmão do acidentado novamente que, ainda muito aflito, me pergunta sobre a situação. Faço-lhe um breve relato da glote desobstruída com claro objetivo de manter sua esperança ainda que artificialmente. Se ele vai receber uma má notícia, que não seja por mim.

Já na rua, ao meu aproximar do meu veículo, os curiosos me fazem perguntas a respeito do estado do acidentado o que eu respondo com o prestígio de quem presenciou os fatos de forma privilegiada. A considerar suas reações, não acredito que ele sobreviva. Esse é meu palpite que dou às pessoas, com a gravidade que o momento exige.

Curioso, quero saber o que será do funcionário da Eletropaulo. Terá ele também simancol para saber quando sair de cena? Alguns minutos depois ele desce. Espero que também por conta própria e não por convite dos bombeiros. Pode ir, meu chapa, agora é com a gente. Desce também com a gravidade de quem participou de algo importante, é entrevistado por alguns curiosos e, depois de alguns instantes, se vai, passos lentos, sem pressa, solenemente a encontrar seus futuros netos.

Depois de alguns instantes, quando os bombeiros estão improvisando um meio de descer o moribundo por uma maca improvisada e presa a cordas, resolvo entrar no veículo e seguir meu cronograma do dia, já comprometido pelo incidente. Ficar ali mais tempo só demonstrará curiosidade mórbida de minha parte. Parto.

 

Uma vez quase parti desta para melhor. Quando adolescente, em certa ocasião notei que a região do meu externo – osso na caixa torácica – havia sofrido uma pequena estufada. Pareceu-me estranho aquilo, mas, como um amigo de escola tinha o peito bastante inchado, pareceu-me que meu caso era nada perto do dele. Sendo assim, não dei a mínima atenção.

Os anos se passaram e minha caixa torácica ganhou uma pequena elevação. Nada que me preocupasse ou que eu afligisse minha mãe. Às vezes doía. Mas como eu sou muito relapso com as questões da saúde, nunca dei muita importância.

Envelheci, casei-me. Os anos foram se passando e, de vez em quando, especialmente no frio, a dor do peito me incomodava um pouco. Vai ao médico, sempre me dizia a Flávia. Até que um dia resolvi ir quando a dor começou a me incomodar bastante. Procurei a especialidade de ortopedia do Hospital São Pedro em Santo André.

– Doutor, faz um bom tempo que essa parte do meu tórax começou a inchar e fez uma espécie de calombo. Sempre doeu um pouco, mas eu nunca dei muita importância. Agora dói muito e está sempre dolorido. Por exemplo, quando espirro, dói bastante. Às vezes dói tanto que não encontro uma posição confortável para dormir.

O ortopedista, até então, sorridente, ficou muito sério.

– Dói exatamente aí no centro ou dói nas costelas em volta?

– Bem no centro.

– Nesse caso, uma simples radiografia não resolve. Você terá que fazer uma tomografia computadorizada. Sua assistência médica não cobre aqui pelo hospital. Você deve procurar uma clínica do próprio convênio. Entendeu perfeitamente?

– Sim.

Meio preocupado, perguntei-lhe:

– É muito sério? Tem a ver com postura?

Ele, ainda bastante sério, me disse:

– Não tenho a menor idéia do que possa ser. Mas não deixe de procurar a clínica do seu convênio o mais rápido possível. Esse tipo de problema tem que ser tratado imediatamente.

– Ué, então o que poderá ser?

– Essa região que está lhe incomodando é responsável pela medula sanguínea. Não deixe esse assunto para depois. Estamos entendidos?

– Claro! Claro!

Saí do consultório apavorado. Medula??? Lembrei-me imediatamente de um primo da Flávia que havia morrido de câncer na medula. Era um garoto. Quando foi procurar o médico, seus ossos estavam tão fracos que estavam a ponto de se quebrarem. Lembrei-me das dores constantes que vinha sentindo nos últimos tempos em todos os meus ossos e não apenas no externo. Achava até que tinha alguma coisa a ver com reumatismo ou algo semelhante. Mas o médico tinha falado em medula!!! E a cara do médico que ficou séria de repente? O que significava aquilo? O sujeito é um ortopedista e diz não ter idéia do que poderia ser o problema? Será que ele está me escondendo algo?

Aí está! Eu sabia! O maldito câncer! Meu Deus, por que eu não fui ver isso antes? Eu devo estar com câncer na medula! É isso que dá não esquentar a cabeça com nada, não dar a devida atenção aos sinais! Entretanto, naquele fim de semana, por mais que eu me esforçasse, não conseguia me tranquilizar. Só não entrei em pânico porque fiz um esforço imenso. Mas já comecei a imaginar a morte precoce, meu filho que não veria mais o pai, minha esposa que iria se virar, é claro, casando-se com outro, meu CD, meus projetos de vida interrompidos. Lembrei-me do Cazuza. A impotência diante da doença numa tarde cinzenta e fria, o esforço para espantar a solidão e os pensamentos, os medos de amar, de ser feliz; os filhos que nunca virão e não permitirão a existência perpétua por meio dos descendentes.

Esforço em vão. O final de semana quase não passou. Não comentei nada com a Flávia para não alarmá-la. Simplesmente disse que o médico fez um exame de rotina e me encaminhou a um especialista para aprofundar o diagnóstico. Será que vai muita gente no meu enterro? Será que vou morrer rapidamente ou o câncer vai me devorar sem pressa e dolorosamente? Que bobagem! Não tem nada a ver! E Murphy, onde fica? Se estou pensando que é grave, é porque de fato não é! Mas aí que está: então deve ser, justamente porque estou pensando que Murphy vai me pegar exatamente porque já o previ: se acho que é grave é porque não é. E justamente por achar isso, é. Que enrosco!

Preciso passar minhas senhas para a Flávia, orientá-la sobre o seguro de vida e os emails que ela deve mandar. De repente nem dê tempo de eu fazer isso: os caras me hospitalizam e eu nem saio mais do hospital. Comecei até a me sentir pior. A dor do externo agora era o menor problema. Todo meu corpo doía, as pernas, a bacia. Eu diria que meus ossos estavam quase esfarelados, era possível senti-lo. Como eu não tinha percebido isso antes? Que idiota! Quando o câncer é diagnosticado cedo o problema tem solução! Que estupidez não ter investigado antes! Mas, e se não for câncer? Não, eu não tenho tanta sorte assim. Se todo mundo morre de câncer, por que eu não morreria? Pensando bem, é melhor não pensar nisso.

Na segunda-feira – eu havia ido ao hospital no sábado – fui dirigindo lentamente até o especialista, aproveitando quiçá os últimos momentos de vida sem o fantasma da morte a me seguir impiedosamente. Aquela segunda-feira parecia um dia bonito. Cheguei ao consultório, estava cheio de gente. Como de praxe, fui ao banheiro. Deixei a revista que estava lendo na cadeira. Quando voltei, outro paciente a estava lendo. Resolvi dizer-lhe que era minha e que eu precisava lê-la. Antes de fazê-lo, desisti. Afinal, se eu estivesse perto da morte, mais nobre que ler as notícias, seria dividir a revista com aquele senhor, já que a leitura da revista não me acrescentaria muito, já o nobre gesto seria algo que ficaria marcado, ainda que anonimamente, com um derradeiro ato de generosidade. Parece que o senhor leu os meus pensamentos e fez menção de me devolver a revista. Sorridente, insisti que ele continuasse com a leitura. Evidentemente, não lhe disse que queria praticar um ato de generosidade antes de morrer, para não assustá-lo e fazê-lo perder a gana pela leitura. Ele continuou lendo e, momentos depois, quando foi chamado, devolveu-a com um obrigado. Enquanto esperava, me deu vontade de tomar café. Geralmente evito por causa da minha gastrite, principalmente se o café estiver muito forte. Mas naquele dia foi diferente. O que é um cafezinho para quem vai morrer daqui a pouco? Por via das dúvidas, tomei um copo de água antes e saboreei o café.

Quando o médico me chamou, simpatizei imediatamente com ele. Era um senhor visivelmente acima dos 60 anos. Fiquei mais tranqüilo porque ele deveria ser bem mais experiente que o médico que me atendera no fim de semana. De fato era. Eu não me arrisquei a dizer a ele que estava apavorado, mas acredito que ele percebeu minha preocupação por conta das perguntas tangenciais que lhe fiz. Por fim, admiti estar receoso de que aquilo pudesse ser um câncer.

Sorridente, ele me tranqüilizou:

– Pode deixar que você ainda vai viver muito tempo. Isso aí deve ser uma artrite, uma inflamação nos ossos.

Receitou-me um medicamento para aliviar as dores e me encaminhou para um reumatologista.

De fato, não era câncer. A reumatologista dentre outras coisas pediu uma cintilografia computadorizada e se admirou do estado dos meus ossos. Bastante afetados. Entretanto não era de se estranhar para quem tem o problema há tanto tempo. Ela disse que esse problema pode ocorrer na adolescência, não me lembro em quais circunstâncias, e também é comum em decorrência de lesões em atletas jovens, por causa do esforço. Não era o meu caso. Apesar do estágio avançado da doença, ela se admirou de meus sintomas serem tão poucos e ficou mais tranquila quando constatou que minhas juntas não foram afetadas.

Estou fazendo um tratamento que, a menos que haja um avanço na medicina, será mantido até o fim da minha vida, espero, depois dos 70 anos. O nome da doença? Espondiloartropatia soronegativa.

Sei lá o que é isso!

Como se pode ver, eu quase morri. Não da doença, obviamente, mas de susto. E por uma boa dose de estupidez, devo reconhecer.

 

No final da tarde, quando voltei para pegar meu filho, me informei a respeito do rapaz acidentado. Informaram-me que os bombeiros o levaram e ele morreu no hospital. Que hospital que nada! Ele já estava mortinho da silva na laje!

Também soube que ele, seu irmão e alguns colegas haviam subido de Santos para fazer o serviço de pintura em Santo André e ele acabou morrendo.

O mais triste foi a circunstância da morte. Estúpida. Todos morreremos um dia, é inescapável, mas morrer de uma forma tão estúpida é algo que me assusta.

No período da tarde, funcionários da Eletropaulo encaparam o fio desencapado na região onde aconteceu o acidente. Esse detalhe só aumenta a estupidez da morte. A irresponsabilidade criminosa da Eletropaulo potencializou a morte estúpida do rapaz. Sua família deveria processar a Eletropaulo. Tudo bem que o contribuinte pagará, mas é o mínimo que se espera para que haja alguma justiça nesse episódio. Tomara que tenham processado.

 


 

Réquiem


 

(Meu pai se foi 46 dias depois de terminado o texto acima, 45 dias depois da foto abaixo, vitimado por dois derrames, o primeiro em sua casa, o outro no hospital.)

 

 

No ano em que completei quarenta anos, quando ainda contava trinta e nove, eu vi meu pai entubado numa UTI, eu vi meu pai indefeso de fraldão num necrotério, eu vi meu pai gelado sob uma manta de flores, eu vi meu pai descer no paletó de madeira que o protegia no seu melhor paletó, meias e sem sapato para o seu último e derradeiro descanso. E nunca mais o vi.

Eu vi o último encontro dos três mais jovens representantes de um clã de incontáveis irmãos que eu nem sei mais a conta, mas que não passam de dez: meu pai, ido aos setenta e quatro, meu tio Nuca[6] ao setenta e seis toureando seus males da ancianidade, meu tio Júlio alquebrado aos setenta e nove pelo implacável diabetes.

Eu vi uma viúva sentada desolada ao lado do caixão do seu marido que se foi. Caçula das mulheres de seu clã que também caminha em contagem regressiva, amparada por seu irmão, o caçula definitivo.

Vi amigos e conhecidos, alguns deles de longos anos, renderem tributo ao meu pai por seu caráter inspirador, o que me encheu de orgulho e serviu de consolo.

Vi as coroas de flores e, agradecido, conferi o quanto meu pai era tido em grande estima.

Vi a família reunida, os filhos de perto e de longe, dois deles pastores (um deles desempenhando um exemplar labor de recuperação da dignidade de famílias mexicanas), os netos, as noras, os genros, e pude ver que meu pai cumpriu com louvor sua missão de, juntamente com minha mãe, constituir uma família madura, equilibrada, unida e de bem.

Vi os belos discursos das exéquias e concluí que isso só ocorreria se estivesse repousando naquele caixão alguém realmente inspirador.

Vi que meu pai não se tornou um santo porque morreu, mas já era um santo em vida.

Mas também vi que nossos projetos realizados, inconclusos, nossos sonhos, nosso esforço, nossa vitalidade, nossos bens, nosso dinheiro, nossa pobreza, nossa fome, nossas lágrimas, nossos sorrisos, nossos abraços, nosso fôlego de vida, tudo passa. Tudo é vaidade. Só fica a força de nosso caráter que, para o bem ou para o mal, molda nossa história e é isso, não o que construímos ou deixamos de construir, que testemunhará a respeito de nós quando partirmos e servirá de exemplo e inspiração – ou não – aos que ficarem.

Meu pai foi um homem bom.

Sidnei Ribeiro de Souza


Caro Obadias,

 

Sinto muito pelo falecimento do nosso querido irmão Cícero. Homem que na sua simplicidade, pôde deixar valores impressos em mim. Aprendi com ele a determinação no trabalho do Senhor, mesmo quando nós, na nossa juventude, não valorizávamos isso. Seus longos tempos gastos, para aprender a dinâmica de qualquer instrumento, para ensinar-nos depois e muito mais.

Deixo meus mais profundos sentimentos a você e a toda sua família, orando para que Deus, através do Seu Santo Espírito, os dê resignação.

Um abraço!!

 

Sidnei e família.

(Sidnei é pastor em Caleta Olívia, na Argentina)

 

Sérgio Schuindt da Silva


Queridos “de Deus”,

O semeador de fato não tem idéia da dimensão do seu trabalho. Possivelmente a maior parte do seu trabalho ele não verá (“mas ficará satisfeito”)

Entre muitos, sou mais um aluno do querido Prof.Cícero de Deus. Minha gratidão pelo privilégio de tê-lo como o incansável mestre. O curso natural daquele que voluntariamente se dispõe a servir seria desistir ante tamanhos desafios e constantes revezes dos pretensos aprendizes. Mas essa não foi a decisão do professor: sábado após sábado ele estava lá; se havíamos estudado ou não a lição, lembre-se: o malfadado Bona, terror dos pouco afeitos aos livros, como o autor dessa breve missiva; se retribuíssemos pelo menos com um “valeu irmão” ou “obrigado” ou equivalente; mas sequer isso: prá mim, quase que um suplício; pra ele: uma missão;

Pra mim, o tempo que seria furtado das incansáveis jornadas infantis; pra ele, o tempo que seria ganho com homens que seriam formados; pra mim, mais uma chateação dos meus pais; pra ele: mais um serviço ao Pai celestial.

Ele também deveria desistir nos ensaios: quanto preconceito, quantas chacotas; aproveitávamos de sua simplicidade para até em códigos infanto-juvenis tentar desqualificá-lo; mas o nosso herói professor não se importava com os de fato crianças; sua maturidade, convicção e determinação superavam a simplicidade habitual; e no domingo seguinte, após a Escola Bíblica Dominical, ele estava lá. Um apóstolo formando discípulos; discípulos que hoje estão pelo mundo (nesse momento estou em uma viagem nos EUA), chorando a ausência do mestre, mas guardando pra sempre os seus ensinamentos; querendo ser íntegros como ele.

Sempre me lembrei do irmão Cícero por sua persistência; como alguém que a seu modo, fez o melhor que podia; me sinto devedor quando vejo que deveria frutificar mais,  já que venho de uma geração que recebeu mais também.

Queridos Obadias, Tatá e Micaías, estendam essas breves considerações e agradecimento aos demais filhos e netos “de Deus”, além da querida irmã Ilza. Prossigamos assim firmes, multiplicando as sementes plantadas pelo vosso papai.

 

Ao mestre, com carinho.

 

Sergio Schuindt

(Sérgio é pastor e sócio da KPMG)

 

Priscila Ferminio


Badias, me emocionei ao ler isto. Sobretudo, porque a maneira como me sinto em relação ao te pai, é exatamente o que foi tão lindamente escrito pelos queridos Sérgio e Sidnei...

E me sinto afortunada neste momento, porque me lembro de alguns momentos em que orei por ele com gratidão. De uns anos pra cá, tenho pedido a Deus que me ensine a ser grata por tudo aquilo que tenho na vida, o que considero ser oportunidades que outros muitos não têm, mas gostariam. Por exemplo, sempre que estou num lugar, num evento, num momento, que jamais pensei que chegaria, paro, e agradeço a Deus de todo o meu coração, digo a ele o quanto me sinto especial por dentre tantos, eu estar ali, desfrutando aquilo.

E num belo dia, no discurso do Thiago Nicácio Lima, quando estava, com a família, mudando para a Sede, agradeceu publicamente ao irmão Cícero pelas horas dedicadas aos ensinamentos musicais, nos emocionamos juntos, ele, no púlpito, eu, a Priscila Lima, a Berê[7] e outros tantos que pude notar sentados nos muitos bancos da igreja de Vila Scarpelli com lágrimas no rosto, sentindo-se de igual modo gratos a Deus pela vida daquele 'homenzinho' que tanto e a tantos influenciou.

Não, não é demagogia. É só gratidão e reconhecimento mesmo. E estou feliz porque não passei a sentir isto depois que ele se foi. Vem de antes, o que prova a mim mesma que é um sentimento verdadeiro.

 Compartilho do teu sentimento de consolo ao ver o carinho e reconhecimento das pessoas em relação ao teu pai. Por ter sentido exatamente a mesma coisa no velório e sepultamento do meu pai, foi que decidi ir ao do teu. Aliás, foi o primeiro que tive coragem de ir após o falecimento de meu pai. E não iria, estava decidida, mas me lembrei de como, mesmo sem palavras (se elas foram ditas, realmente não me lembro), a presença de meus amigos me consolou naqueles momentos tão cruéis. Só por isto fui, e não me arrependo. Fico feliz de não ter cedido ao meu egoísmo, e junto com tantos outros, ter cumprido meu papel de amiga e irmã.

 

Beijos,

 

Pri

(Priscila Ferminio é integrante do Kol Brasilis)



[1] Serviço de Atendimento Médico de Urgência
[2] Definição retirada da internet
[3] Maravilhosa Graça, de Philip Yancey, é uma boa pedida para entender o conceito.
[4] O problema do sofrimento, de C. S. Lewis é outra sugestão de leitura, uma abordagem cristã bastante interessante sobre o sofrimento humano.
[5] Um livro bastante interessante sobre a arte de perdoar e suas dificuldades intrínsecas é O poder terapêutico do perdão, de Ray Pritchard.
[6] Ao não encontrar minha mãe em casa, o pessoal do hospital ligou para o Tio Nuca e comunicou a morte do meu pai, seu irmão mais próximo, no dia do seu aniversário de 76 anos.
[7] A Berenilda nunca se esquecia, todos os anos, de entregar um presentinho ao meu pai em gratidão pelo trabalho que ele fez com seus filhos, na época crianças, hoje adultos formados.