Vinte
e quatro de novembro de dois mil e oito. Um dia depois do nono aniversário do
Vítor. Sete e meia da manhã. Despeço-me dele quando ouço uma mãe gritar
desesperadamente ao meu lado:
–
Solta, solta! Ele tomou um choque!
Ouço
um grito desesperado, o ruído da queda de algo. Olho para o outro lado da rua a
tempo de ver utensílios de pintura caindo no chão, enquanto alguns pintores,
atabalhoados, não sabem o que fazer.
É
então que eu percebo o que aconteceu. Um grupo de pintores se ocupava de seu
labor no prédio de um sindicato. Vários pintavam a fachada a partir da calçada
e um deles fazia o mesmo a partir de uma laje na altura do 2º andar. Esse pintor
manejava seu rolo com um cabo extensor, de cima para baixo. Provavelmente, ao fazer
uma manobra com seu rolo para recolhê-lo, deve tê-lo afastado demais da fachada
e tocado num dos fios do poste na calçada. Foi quando se deu o acidente. A mãe ao
meu lado grita desesperadamente para os colegas do eletrocutado que ele havia
tomado um choque e estava caído na laje. Alguém acode: “Chama os bombeiros!” Ante
a dificuldade da mãe do grito em digitar 192 no teclado do seu celular, saco o
meu e, mais que depressa, aciono o socorro.
Tentando
manter a calma, dou as informações de praxe. Rua tal, número tal, no edifício do
sindicato. A atendente quer mais detalhes: “Ele está desmaiado?” Grito para um
dos pintores que já havia escalado a laje, mas está abaixado e o muro me impede
de enxergá-lo. “Ei, o rapaz desmaiou?” Como ele não responde, quem sabe ocupado
em tentar reanimar o colega ou talvez ele mesmo desmaiado de susto, informo que
provavelmente sim. Entretanto, a lentidão e placidez da atendente me irritam. O
infeliz acabou de tomar um choque, sabe-se lá em que estado se encontra e, em
vez de mandar logo a porcaria do socorro, ela insiste com perguntas retóricas
demais para o meu nível de ansiedade.
–
Seu nome, por favor.
Meu
nome? Que diferença o raio do meu nome faz nessa altura do torneio? Por uma
fração de segundos, penso em responder José para simplificar, como muitas vezes
faço quando falo com atendentes ao telefone para evitar que elas se enrosquem
tartamudeando por labirintos e escaninhos silábicos na tentativa de acertar meu
nome, mas a seriedade do momento exige total sinceridade de minha parte, o que
me impede de dizer mesmo que uma mentirinha com a melhor das intenções.
– O...ba...di...as,
contesto articulando o mais claramente as sílabas.
–
Obadia?
Em
outras situações eu faria questão de corrigir: Não! Obadiasss! No plural... Oba,
interjeição de alegria e dias, contrário de noites... Isso mesmo! Mas a premência
da situação impede que eu me perca em preciosismos ortográficos.
– Exatamente.
–
Ok, o socorro está a caminho, responde a fleumática e irritante atendente.
Molhado
que já estou da chuva e como todo ser humano decente deveria reagir, entro no
sindicato às carreiras, subo um lance de escadas e depois escalo a parede por
meio de uma escada que lá se encontra encostada. Encontro o pintor caído, olhos
semicerrados mirando quem sabe um corredor com uma forte luz branca, o corpo
meio retorcido. O rapaz que chegou antes de mim, um transeunte que passava por
acaso no local e que eu imaginei inicialmente ser um dos pintores, me pergunta
se eu tenho noções de primeiros socorros. Digo-lhe que não e, enquanto ele tenta
fazer uma massagem torácica, me ocorre ligar para minha cunhada enfermeira e,
quem sabe, ser orientado por ela. Como desconheço o número do seu celular e não
me recordo do número do meu irmão, ligo para casa da minha irmã, a lista telefônica
da família. Atende-me o cunhado, sonolento. A Neide está aí? Não. A minha mãe
está? Não, mas pode falar. Cara, preciso falar urgente com o Micaías, mas estou
sem o telefone dele aqui. Espera aí que vou buscar. Vai logo que é urgente! Alguns
eternos instantes depois ele retorna e tenta me dizer o número do telefone.
Atrapalha-se várias vezes e insiste em recitar um número de nove dígitos.
Francisco, um telefone tem oito dígitos, você está me dizendo um de nove!
Espera aí que vou procurar em outro lugar. Mano, vai logo, tem um cara aqui que
está morrendo! Uma eternidade depois, o transeunte insistindo na massagem
cardíaca e numa única tentativa de respiração boca a boca, meu cunhado volta ao
telefone e, finalmente, recita o número correto. Ligo para meu irmão e,
surpresa!, o seu telefone se encontra registrado no meu celular. Como não
pensei nisso antes? Ele atende, eu lhe explico rapidamente o problema e, quando
ele pensa em me informar o telefone da esposa, digo-lhe para esquecer, afinal o
SAMU
acaba de chegar.
A
morte é algo estranho. Desde que a crise dos quarenta me pegou aos trinta e
cinco anos e eu passei para a segunda metade da minha vida, uma vez que morrer
antes dos setenta será algo precoce para minhas aspirações, tenho pensado um
bocado sobre minha morte, afinal, a vida é tão boa, por que morrer cedo? E
minha missão enquanto ser humano? Não estaria inacabada caso eu passasse dessa
para melhor tão jovem? E meus filhos? Órfãos antes do tempo? Cruel. Mas a
verdade é que levantamos num belo dia de sol cheio de planos e veja o caso do
pintor, a morte nos traga sem a menor cerimônia, se é que o pintor morrerá de
fato dessa vez, o que ainda não sabemos. Não é o caso de se desesperar, mas a
vida é uma roleta cheia de surpresas. Amanhã pode ser nossa vez. Aliás, quem
sabe hoje mesmo, daqui a pouco.
Quando
criança, eu era um garoto enfermiço. De tanto tomar antibióticos, meus dentes
apodreceram precocemente. Minha mãe, desesperada com minha insistência em não
comer, comprava-me doces, mimava-me para eu me alimentar, o filho raquítico.
Recordo-me do pessoal fazendo aviãozinho para eu ingerir as colheradas. Por
temer que eu morresse ainda criança, seus cuidados comigo eram redobrados: ainda
hoje dizem que sou seu filho preferido. Mesmo que fosse verdade, daria um
desconto à minha mãe, afinal é da índole materna proteger mais os filhos mais
frágeis, algumas até ultrapassando o limite do bom senso, Milton Hatoum que o
diga. Quando adolescente sofria de gastrite que me rendeu um tratamento de acupuntura.
Certa vez amanheci cuspindo sangue e fui parar em um hospital público; nem me
lembro o que foi diagnosticado, mas deve ter sido algo com relação à gastrite. Como
se não bastasse, sofria desmaios ocasionais, meus ferimentos custavam
cicatrizar, padecia de enxaquecas intermináveis, enfim, era uma festa.
A
bem da verdade, meus problemas não eram sérios, eram apenas chatos. Tanto que
sobrevivi sem quaisquer sequelas. O único problema que realmente deu trabalho
para diagnosticar foi um fenômeno curioso que às vezes me tomava: de repente,
tudo à minha volta parecia extremamente grande. Eu esticava meu braço e me
divertia ao enxergá-lo como se ele fosse muito comprido. Eu gostava muito de me
deitar de costas na sala de casa, os olhos voltados para a barra da cortina.
Desse ângulo, o topo da cortina parecia estar a quilômetros de distância, quase
tocando o céu do estuque da casa. Nessas ocasiões, as pessoas pareciam ter
cabeças minúsculas e a sensação era de que a distância que nos separava era
imensa. Esse fenômeno acontecia com alguma freqüência. Até hoje ocorre, ainda
que muito raramente, quando fico muito cansado ou estressado. De tanto
comentá-lo com minha mãe, percorremos vários médicos, fiz exames diversos,
cheguei a fazer uma tomografia, mas ninguém descobria o que eu tinha. Até que
um médico da Casa da Esperança, um centro neurológico em Santo André, pensou
ter descoberto o problema: Síndrome de Wilson. “A síndrome de Wilson (SW) é uma
doença cromossômica genética onde existe um defeito no metabolismo no cobre.
Caracteriza-se por ter uma herança autossômica recessiva, sendo que o gene
envolvido é o ATP7B, situado no braço longo do cromossomo 13 (...)”.
Tecnicismos incompreensíveis à parte, o médico disse que constatou uma irregularidade
em minha íris e, eureca!, aquilo era característico da curiosa doença. Fim do
mistério! Encaminhou-me para outro especialista que me mandou de volta, quando,
depois de alguns exames, constatou que algo determinante no fígado não se
encontrava no meu caso, portanto eu não sofria da tal síndrome. Retorno ao
mistério. E ficou por isso mesmo essa minha estranheza. Some-se a isso um
formigamento que eu sentia no cérebro. Mas essa foi fácil descobrir. Fácil em
termos: depois de uma peregrinação em alguns médicos descobriu-se o problema,
um molar cariado.
Apesar
desses acidentes de percurso, a morte nunca foi um problema para mim. Ela se
tornou uma ameaça imaginária, em vias de se tornar real, a partir da
confluência de dois fatores, o primeiro deles resultado da minha lógica obtusa:
se a minha vida é tão boa e há tanto sofrimento no mundo, algo está errado;
portanto, para que a balança se equalize, eu morrerei de câncer. Evidentemente,
esse pensamento não me assaltou da noite para o dia; ele veio se esgueirando
insidiosamente na minha mente até tomar posse de um cantinho, feito um assaltante
que invade a propriedade alheia na calada da noite para levar algo de valor que
encontre. Quando dei por mim, o bom senso já havia sido surrupiado. Explicando
melhor, aparte das limitações financeiras que passei na infância e
adolescência, nada mais de extraordinário aconteceu na minha vida que pudesse
ter um impacto negativo considerável. Sonhos eu sempre tive, mas nada que fosse
grandioso demais, afinal, nunca fui soberbo, nunca olhei as outras pessoas com
arrogância, nunca tive sonhos mirabolantes, fora do meu alcance. Nossas
frustrações são proporcionais aos tamanhos de nossos sonhos: sonhos medianos,
frustrações idem, pouco estresse, nada que traumatize. Sempre deixei a vida me
levar, grato a Deus por tudo que ele me deu, por vezes pouco, mas o suficiente.
Acrescente-se a isso, minhas amizades. Os amigos são um patrimônio inestimável
e, com raríssimas exceções e por motivos alheios ao meu controle, sempre
consegui cultivar boas amizades. Além de amigos, tenho até mesmo alguns
admiradores, pessoas que, a bem da verdade, são muito generosas comigo, já que
me valorizam além do que eu realmente valho. E aí há uma grande injustiça,
parece-me, afinal há pessoas muito mais legais, muito mais interessantes, muito
mais íntegras que eu que não dispõem de uma relação tão profícua como a que eu
tenho com o outro. Talvez essa minha sensação de injustiça seja reflexo de um complexo
de inferioridade mal resolvido, questão que já me ocorreu algumas vezes, ou
talvez minha dificuldade em aceitar a Graça
quando alvo dela.
E
quanto ao sofrimento?
Muito do nosso sofrimento se deve a nós mesmos, mas o mesmo não pode ser dito a
respeito de tantas criaturas que nascem em condições miseráveis, violentas, sem
opção de escolha, só para ficar num exemplo. Quanto a mim, tenho uma vida
ótima, uma verdadeira dádiva dos céus. Por que minha vida é tão boa quando
tanta gente padece sofrimento? Independente das respostas do cristianismo e
apesar dos meus esforços para ajudar o próximo, a miséria alheia me incomoda
bastante e, por vezes, quase me leva ao sentimento de culpa. Diante de tanta
miséria nesse mundo, é quase indecente viver tão bem. Aliás, não é de se
admirar que as pessoas comentem a respeito de alguém rico que tem uma doença
grave: “com tanto dinheiro e não conseguiu ter saúde!”. Na realidade, acredito
que há uma idéia subjacente a esse tipo de afirmação: “com tanto dinheiro era
de se esperar que não tivesse saúde, afinal essa injustiça tem que ser reparada
de alguma forma”.
Quem
não tem problemas? Mesmo as pessoas que não possuem problemas econômicos podem
passar por problemas ocasionais, entretanto muitas pessoas passam toda uma
existência condenada por todo tipo de problema. Definitivamente não é o meu
caso. Considero-me uma pessoa feliz e realizada. Com raríssimas exceções, minha
história está permeada de plenitude e felicidade. Daí porque essa idéia curiosa
da morte por câncer: quando a oferta é muito grande, o santo desconfia.
O
segundo fator em que a morte se tornou uma presença mais real foi ela mesma
representada numa experiência muito amarga que eu tive. Minha expectativa em
relação às pessoas é mínima. Eu jamais diria de alguém haver traído minha
confiança simplesmente por eu jamais esperar que as pessoas não falhem, afinal,
ninguém é perfeito. Entretanto, estupidamente, abri uma exceção e me dei mal,
muito mal. Foi uma experiência tão amarga que me levou a fazer terapia. Quando
os eventos estavam no seu auge, eu mal dormia à noite. Pela manhã acordava com
um zumbido na cabeça que passava depois de algumas horas. Num dia não passou. Só
depois de alguns dias me dei conta que o zumbido ficara no meu ouvido esquerdo.
Procurei um médico, mas já era tarde: o estresse me causara uma lesão no ouvido
e perdi parte significativa da minha audição esquerda, que foi substituída por
um zumbido que nunca mais me abandonou. Minha mãe sofre do mesmo mal há anos, depois
de levar um tombo. A diferença é que minha lesão surgiu mais precocemente que
nela. Outro aspecto curioso é que meu ouvido esquerdo ouve notas musicais meio
tom abaixo. É fácil constatar isso: se ouço uma música com fone de ouvido, ela
soa num determinado tom. Se ouço apenas com o ouvido esquerdo, a sensação é que
a música baixa meio tom. Se ouço com o direito, percebo a música no tom
original. Normalmente, quando ouço uma música, não sofro nenhuma sensação de
desconforto como se estivesse ouvindo dois tons. Entretanto, passei a ter uma
grande dificuldade para afinar instrumentos, violão, por exemplo. É como se
meus ouvidos estivessem descalibrados e eu tivesse dificuldade de identificar
bem quando duas notas estão soando na mesma freqüência. Por conta desse
problema, faço visitas periódicas ao otorrino e a constatação é que meu ouvido
direito tem uma sensibilidade acima da média, equivalente a uma criança de seis
anos, algo que me parece razoável já que desde a infância meu ouvido foi sempre
treinado, por conta da minha percepção musical. Entretanto, assim como alguém
que tivesse uma perna atlética e outra mirrada teria dificuldade para caminhar,
de nada me adianta um ouvido com tamanha sensibilidade, uma vez que o resultado
é a dificuldade para ouvir, principalmente na região aguda do espectro sonoro.
Eu
tomei a decisão de fazer terapia porque teria que gastar muita energia para
tentar resolver sozinho o trauma e tinha receio de que, no meu estado
depressivo, pudesse somatizar uma nova doença qualquer. Como meu estômago
sofreu muito nessa época, eu temia desenvolver um câncer no estômago ou minha
gastrite se tornar uma úlcera. Conheço caso de pessoas – quem não conhece? –
que adquiriram graves doenças decorrentes de somatizações de ordem emocional.
Eu não gostaria de aumentar essa estatística.
Claro,
todas essas experiências têm aspectos positivos: ganhei um grande amigo no meu
terapeuta e meu irmão poeta me dedicou um poema quando eu estava deixando a
fase crítica do trauma, no meu aniversário de 37 anos, poema esse que um dia
ainda hei de musicar:
Trinta
e Sete Anos
Para o Badia, meu irmão.
Aos 37, a ti compete
Seguir em frente
e, num repente (mas sabiamente)
olhar à frente e ver o novo,
que vem latente e, como um ovo
prestes a romper-se
encerra vida nova e esperançosa.
Aos 37, a ti compete
o rompimento que traz alento
a sonhos antigos e encerrados,
em tempos outros, ultrapassados,
ou em recentes, tumultuados.
Romper, e à luz trazer o novo
é sempre bom, sempre é renovo;
faze-o e dize-o com garra e esforço:
"Aos 37, também me movo".
Aos 37, a ti compete
tomar tua cruz, sem mágoas, sem rodeios.
A fé tem olhos à razão alheios.
Por estes olhos verás, por certo,
quais são as formas, quais são os meios
Para tornar-te cristão inteiro.
Aos 37, pára e reflete:
A quarta década vem chegando;
Vai me encontrar caído ou lutando?
Micaías
Pascoal de Deus
Se o
trauma me colocou em contato mais direto com minha finitude, ela também foi uma
experiência com a morte, não no sentido literal do termo, mas no efeito que a
experiência me causou: virei páginas da minha vida, o que não deixa de ser uma
espécie de morte. Idéias, sentimentos, sensações, ingenuidades morreram. Como
no poema do meu irmão, rompi com alguns conceitos passados. Morri um pouco,
ainda que algumas renúncias tragam novo sopro de vida. Também tem a questão do
perdão, que nos parece bonita até que precisam perdoar alguém de fato.
Eu sempre me considerei um perdoador até que me deparei com uma ofensa que realmente me feriu. Foi então que eu
percebi que perdoar pequenas ofensas, principalmente quando não se espera muito
das pessoas, é quase não perdoar. Perdão implica em perda, abrir mão de um
direito. E isso dói um bocado. Perdoar também é morrer, é uma espécie de
suicídio em favor do outro. Não direi que eu fui um exemplo de perdoador a ser
seguido, mas tive que engolir meu instinto assassino (metaforicamente, é claro)
e isso já é alguma coisa. Matar esse psicopata dentro de mim também foi uma
experiência mortal.
Portanto,
em duas situações eu me via um candidato potencial para empacotar: como solução
da injustiça no mundo, uma vez que eu sempre vivi o lado bom desse drama e
quando eu, estupidamente, me permiti me machucar e, se não tomo umas decisões
mais drásticas, poderia ter somatizado alguma doença séria, talvez atraindo a
morte para mais perto de mim.
Enquanto
eu tento contatar meu irmão para contatar minha cunhada para ajudar a me
contatar com o fio de vida que provavelmente ainda resta no moribundo, as
massagens torácicas e a quase respiração boca a boca que o transeunte está aplicando
no acidentado parecem surtir um fugaz efeito: ele dá um suspiro. Ótimo
presságio: ele não deve estar morto, apenas desmaiado. Que bom que o transeunte
não é um inútil como eu em primeiros socorros; ele conseguiu arrancar ao menos um
suspiro do eletrocutado!
O
pessoal do SAMU estaciona a ambulância e, calmamente, se dirige à laje onde
estamos instalados. A calma deles me parece anormal, irrita-me. Mas deve ser
assim mesmo, eu que sou um mero desconhecedor do tratamento (e da presteza)
adequado para uma situação como essa. Os dois socorristas escalam a laje e
verificam a situação do local. Perguntam se existe alguma tomada para ligar o
desfibrilador. Tomada??? Como é que não pensaram em colocar uma tomada na laje
para uma eventualidade como essa? Parece-me estranho o desfibrilador só
funcionar com energia elétrica, mas, enfim, sou leigo no assunto. Um dos
socorristas fala pelo seu comunicador sobre a dificuldade de acesso: talvez
sequer consigam subir o desfibrilador. Maca, nem pensar. De minha parte, o que
posso fazer, o faço: depois de pegar o equipamento de oxigênio que estava com
um dos socorrista trepado na escada, equilibrar-me por uma viga de concreto que
dá acesso à laje e entregá-lo ao outro socorrista que já está atendendo o
acidentado, desço rapidamente a laje e pergunto aos empregados do sindicato se
há uma extensão. Não faço idéia de que tamanho pode ser e nem quero saber onde pode
estar a tomada mais próxima. Espero que um milagre resolva o problema da
distância da tomada e o tamanho da extensão necessária para permitir que o desfibrilador
seja ligado. Caramba, mas desfibrilador não deveria funcionar à bateria? Uma
das senhoras interpelada me diz que vai tentar localizar uma extensão e antes
de desaparecer pelos corredores do sindicato, vaticina: “Ele não vai morrer, em
nome de Jesus!” Amém é a minha resposta. Talvez seja esse o milagre que
precisemos: que ele simplesmente não morra, independente de desfibrilador,
tomadas, extensões, macas ou quaisquer recursos para ressuscitá-lo. Talvez ele
precise mesmo é de um “talito” cumi.
Um
rapaz se aproxima de mim, os olhos são puro desespero. Como está meu irmão? Ele
está bem? O que lhe dizer? Algo me diz que a situação do rapaz é crítica, mas
os olhos do seu irmão não estão preparados para ouvir coisa semelhante. E se
ele tem que ouvir, não será de mim, evidentemente. Conto-lhe o episódio do suspiro,
um fio de esperança para ele. Fujo do rapaz, a pretexto de encontrar a extensão.
Topo com alguns empregados do sindicato, mas nenhum deles ainda encontrou uma
extensão, até que alguém me traz um cabo com as pontas descascadas, sem plugue,
sem nada. Aquilo não serve de nada. No instante em que penso o que fazer, a
senhora me aborda de novo e me relembra: “Ele não vai morrer, em nome de
Jesus!” Já consternado, devolvo-lhe um Amém. Num futuro muito próximo ela me
abordará de novo com o mesmo bordão – e adianto o episódio aqui porque não vou
tratar mais desse detalhe – mas eu não lhe respondo nada afinal fica claro que,
se essa senhora tem alguma certeza é que ela não tem certeza de nada, do
contrário não precisaria ficar repetindo o mesmo bordão como quem quisesse
provar a si mesma que seria capaz de acreditar que a providência divina pode livrar
o rapaz de sua morte iminente, se é que ele já não está morto.
Resolvo
subir de novo na laje para perguntar ao pessoal se a extensão é imprescindível.
Não é. Já que lá estou novamente, lá fico para ajudar no que for possível,
enquanto uma pequena multidão se forma na rua. Como você não avisou que ele
estava tendo uma parada?, pergunta-me um dos socorristas. E eu iria saber?,
respondo, quase ofendido, sem me lembrar de acrescentar que eu estava na rua,
sem acesso à laje. Já o transeunte das massagens cardíacas, mostra-se mais que
um transeunte com alguma noção em primeiros socorros. Explica que é um
funcionário da Eletropaulo que estava passando por acaso no momento do
acidente. Ele então, o ex-pintor, o
ex-transeunte-sem-qualquer-relação-com-o-acidente, o agora providencial
funcionário da Eletropaulo, explica ao socorrista que por aquele fio passa uma
carga de cerca de 13 mil volts. Caramba! Como o cara não virou carvão? Bem, há
muito tempo deixei meus estudos de eletricidade e não sei exatamente se essa
voltagem tem a propriedade de transformar um organismo vivo relativamente sadio
em um pedaço de carvão. De forma que apenas escuto o diálogo do funcionário da
Eletropaulo e do socorrista que, depois de encaixar a máscara de oxigênio no
rosto de olhos vazios, recomeça a massagem torácica, dessa vez com a
competência de um perito. O rapaz da Eletropaulo animado com sua especialidade
em assuntos elétricos, começa a descrever seus esforços para ressuscitar o
eletrocutado. Conta e reconta como fez as massagens, o detalhe do suspiro, que
ele foi o primeiro a chegar, não se esquece do detalhe dos 120 volts do cabo da
rede elétrica (ué, não eram 13 mil volts? onde foram parar os 12880 volts
restantes?) Lá pelas tantas, o socorrista solta um lacônico “foi isso que
salvou o rapaz” talvez como quem diz “ok, já entendi, agora deixa eu me
concentrar aqui”. O rapaz parece realizado porque, afinal, terá uma história
para contar aos seus netos, o dia em que ele fez uma massagem e salvou um
eletrocutado da morte. Quanto a mim, o que contarei se não morrer até lá? Que
não sabia que o rapaz tivera uma parada cardíaca? Que não consegui falar com
minha cunhada antes e receber eu os louros do heroísmo? Que não soube o que
dizer ao irmão do eletrocutado? Que não fui capaz de encontrar uma extensão que
prestasse ainda que desnecessária? Enquanto esses eventos de fundamental
importância ao acontecimento se desenrolam, o outro socorrista liga para os
bombeiros e solicita um apoio adicional, afinal as condições do moribundo e –
principalmente de acesso – não são favoráveis. Quando da iminência da chegada
da viatura dos bombeiros, o socorrista me pede que eu faça sinal à viatura, já
que eu sou o que está mais próximo da mureta da laje. Mas nem é preciso porque,
ao surgir na curva da rua com as sirenes a todo vapor, a muvuca que já tinha se
formado na rua permitiria a rápida identificação do local mesmo que o condutor
fosse algum dos personagens de Saramago, menos a Júlia Moore, é claro.
Se a
morte se tornou um tema recorrente por conta da suposta injustiça de minha
condição de vida tão privilegiada e da experiência traumática que eu tive, até
os 39 anos e oito meses eu ainda não havia tido a visita da morte a mim mesmo
ou a alguma pessoa de meu convívio mais íntimo. Não digo depois dessa data
porque já terei terminado de escrever esse capítulo e não pretendo revisá-lo
por conta disso.
O
primeiro contato com a morte que me lembro foi na minha infância, quando fui a
um velório de um senhor vizinho na Travessa Oscar Freire, na época em que os
velórios eram feitos na residência dos então desencarnados. A família era
conhecida de minha mãe e me lembro de que eu fiquei algum tempo no velório. Eu
era bem pequeno e havia um defunto naquele enorme caixão. Não me lembro se eu
consegui enxergar o defunto, acho que não tinha altura suficiente, mas me
recordo que a impressão foi muito forte. Nos dias seguintes a imagem de um caixão
onde havia uma pessoa morta dentro me perseguiu implacavelmente. Afortunadamente,
sobrevivi.
O
outro episódio de morte foi com a família Martins do Carmo. Amigos de nossa
família, quase parentes, o Adalberon, marido da Amarina e pai de quatro filhos,
trabalhava na Petrobrás, se não me engano. Ele vivia viajando. Eu quase não o
via. Lembro-me de que não gostava quando ele voltava porque sua presença
representava alguma intimidação para mim e, de repente, a casa deles deixava de
ser minha casa e eu me sentia uma visita. Então eu gostava mais quando ele
estava viajando. Egoísta. É claro que a Amarina, sua sogra Dona Eulália e os
quatro garotos não sentiam o mesmo que eu. Os anos se passaram e, numa tarde,
chegou uma notícia: o Adalberon, que estava no Nordeste, morrera. Não me lembro
dos detalhes, mas o Micaías, meu irmão, de memória prodigiosa, se lembrará de
todos eles. Perguntem a ele. O que me lembro foi do desespero, da desolação, da
dor, do desamparo. Eu não convivia com o Adalberon, não me sentia à vontade com
ele, mas sofri na pele dos Martins do Carmo. Foi horrível. A perda deles foi a
minha. Foi o meu batismo no luto. A perda de um ente querido, principalmente de
forma precoce, é algo muito difícil de suportar. A empresa informou que ele
havia morrido na praia, enquanto tomava um banho de sol ou afogado, não me
lembro. E mandaram o caixão lacrado sem mais explicações. Foi revoltante porque
ficou a nítida impressão de que eles mentiram e, para não pagarem a devida indenização,
inventaram uma história qualquer. Bastardos. Espero não estar sendo injusto.
No
meu ciclo familiar mais íntimo, em tese, o primeiro da fila é meu pai. Com mais
de 74 anos, já teve câncer na próstata, sofre de hipertensão, é diabético e já
teve um micro derrame. Mas o velhinho segue valente. É bem verdade que seu
micro derrame o deixou bastante esclerosado. Ele havia ido para a casa de minha
irmã e, quando voltava de ônibus, sofreu o derrame. O resgate o levou para o
hospital público de Santo André, aquele que viveu seus dias de notoriedade no
triste caso Eloá. Meu pai sempre foi muito fechado, pouco falador, discreto,
desprovido de sinais externos de carinho. Por conta desse perfil de
personalidade, nunca fomos íntimos, a exemplo de minha mãe. Recentemente, comecei
a beijá-lo nas despedidas. Não é que o velhinho adorou? Como já venho me
preparando há anos para aceitar a idéia da morte dos meus pais, fui visitá-lo
no hospital com uma boa expectativa, uma vez que eu já sabia que o derrame
havia sido pouco mais que um susto. Eu me julgava preparado para enfrentar um
simples ensaio das primeiras notas do último movimento, inclusive por nossa
relação um tanto mais polida. Quando o vi deitado na maca da enfermaria,
abandonado em meio a outros enfermos, fragilizado, os cabelos em desalinho, não
resisti. Disfarcei e saí rapidamente para fora do hospital. Chorei.
Eu
não estou me preparando para minha morte, afinal esse é o tipo de evento que
ninguém gosta de se preparar. Se eu morrer precocemente, não há muito que fazer.
O máximo que espero é que, se alguma coisa prestar dos meus órgãos, façam-me o
favor de doar. Não faço questão de lápide alguma e, se não for caro, posso ser
cremado. Espero que meu seguro de vida pague direitinho, que a Flávia mande um
email para as pessoas da minha lista de contatos no Outlook informando que fui
desta para melhor e que o arquivo de senhas está à disposição dela em local não
informado aqui. Se você for ao meu enterro, contente por não ter sido sua vez
de receber o bilhete premiado e com aquela curiosidade mórbida para verificar
se estou sorrindo ou deformado ou se colocaram bastante algodão no meu nariz, e
não ouvir o Réquiem de Maurice Duruflé, procure o organizador da festa e lhe
pergunte: vocês não se esqueceram do réquiem? Também seriam uma boa pedida o Requiem for my friend de Zbigniew
Preisner (com destaque para Kairos,
sobre Eclesiastes 3, para uma reflexão sobre a transitoriedade da vida) ou o
Réquiem de Gabriel Fauré (com destaque para o pungente Libera me, para a despedida final).
Enquanto
os bombeiros não chegam, os socorristas continuam a tentativa de ressuscitar o
eletrocutado. Um deles solicita que o funcionário da Eletropaulo o ajude
levantando um pouco a cabeça do moribundo enterrada na máscara de oxigênio. Ao
fazê-lo, Aleluia!, seu estômago se dilata. O socorrista explica que sua glote
estava obstruída. Mas nossa alegria dura pouco: esse é o último movimento
executado por ele que eu presencio.
Os
bombeiros chegam e rapidamente se dirigem à laje. Observo que um deles
atravessa a viga de concreto que dá acesso à laje com extremo cuidado, como
quem anda sobre uma corda bamba. Ou ele está com medo ou é extremamente
cuidadoso. Opto pela segunda opção, afinal ele é um perito e sabe muito bem dos
riscos de atravessar aquela viga. Só não sei explicar como os outros não são
tão cuidadosos também.
Sobram
pessoas na laje. Percebo que é hora de sair de cena. É preciso ter o
discernimento para saber quando não se é mais necessário, o momento em que, de
ajuda, pode-se tornar um estorvo. Desço da laje e, antes de abandonar o
sindicato, me encontro com o irmão do acidentado novamente que, ainda muito
aflito, me pergunta sobre a situação. Faço-lhe um breve relato da glote
desobstruída com claro objetivo de manter sua esperança ainda que artificialmente.
Se ele vai receber uma má notícia, que não seja por mim.
Já
na rua, ao meu aproximar do meu veículo, os curiosos me fazem perguntas a
respeito do estado do acidentado o que eu respondo com o prestígio de quem
presenciou os fatos de forma privilegiada. A considerar suas reações, não
acredito que ele sobreviva. Esse é meu palpite que dou às pessoas, com a
gravidade que o momento exige.
Curioso,
quero saber o que será do funcionário da Eletropaulo. Terá ele também simancol
para saber quando sair de cena? Alguns minutos depois ele desce. Espero que
também por conta própria e não por convite dos bombeiros. Pode ir, meu chapa,
agora é com a gente. Desce também com a gravidade de quem participou de algo
importante, é entrevistado por alguns curiosos e, depois de alguns instantes,
se vai, passos lentos, sem pressa, solenemente a encontrar seus futuros netos.
Depois
de alguns instantes, quando os bombeiros estão improvisando um meio de descer o
moribundo por uma maca improvisada e presa a cordas, resolvo entrar no veículo
e seguir meu cronograma do dia, já comprometido pelo incidente. Ficar ali mais
tempo só demonstrará curiosidade mórbida de minha parte. Parto.
Uma
vez quase parti desta para melhor. Quando adolescente, em certa ocasião notei
que a região do meu externo – osso na caixa torácica – havia sofrido uma
pequena estufada. Pareceu-me estranho aquilo, mas, como um amigo de escola
tinha o peito bastante inchado, pareceu-me que meu caso era nada perto do dele.
Sendo assim, não dei a mínima atenção.
Os
anos se passaram e minha caixa torácica ganhou uma pequena elevação. Nada que
me preocupasse ou que eu afligisse minha mãe. Às vezes doía. Mas como eu sou
muito relapso com as questões da saúde, nunca dei muita importância.
Envelheci,
casei-me. Os anos foram se passando e, de vez em quando, especialmente no frio,
a dor do peito me incomodava um pouco. Vai ao médico, sempre me dizia a Flávia.
Até que um dia resolvi ir quando a dor começou a me incomodar bastante.
Procurei a especialidade de ortopedia do Hospital São Pedro em Santo André.
– Doutor,
faz um bom tempo que essa parte do meu tórax começou a inchar e fez uma espécie
de calombo. Sempre doeu um pouco, mas eu nunca dei muita importância. Agora dói
muito e está sempre dolorido. Por exemplo, quando espirro, dói bastante. Às
vezes dói tanto que não encontro uma posição confortável para dormir.
O
ortopedista, até então, sorridente, ficou muito sério.
– Dói
exatamente aí no centro ou dói nas costelas em volta?
– Bem
no centro.
– Nesse
caso, uma simples radiografia não resolve. Você terá que fazer uma tomografia
computadorizada. Sua assistência médica não cobre aqui pelo hospital. Você deve
procurar uma clínica do próprio convênio. Entendeu perfeitamente?
– Sim.
Meio
preocupado, perguntei-lhe:
– É
muito sério? Tem a ver com postura?
Ele,
ainda bastante sério, me disse:
– Não
tenho a menor idéia do que possa ser. Mas não deixe de procurar a clínica do
seu convênio o mais rápido possível. Esse tipo de problema tem que ser tratado
imediatamente.
– Ué,
então o que poderá ser?
– Essa
região que está lhe incomodando é responsável pela medula sanguínea. Não deixe
esse assunto para depois. Estamos entendidos?
– Claro!
Claro!
Saí
do consultório apavorado. Medula??? Lembrei-me imediatamente de um primo da Flávia
que havia morrido de câncer na medula. Era um garoto. Quando foi procurar o
médico, seus ossos estavam tão fracos que estavam a ponto de se quebrarem.
Lembrei-me das dores constantes que vinha sentindo nos últimos tempos em todos
os meus ossos e não apenas no externo. Achava até que tinha alguma coisa a ver
com reumatismo ou algo semelhante. Mas o médico tinha falado em medula!!! E a
cara do médico que ficou séria de repente? O que significava aquilo? O sujeito
é um ortopedista e diz não ter idéia do que poderia ser o problema? Será que
ele está me escondendo algo?
Aí
está! Eu sabia! O maldito câncer! Meu Deus, por que eu não fui ver isso antes?
Eu devo estar com câncer na medula! É isso que dá não esquentar a cabeça com
nada, não dar a devida atenção aos sinais! Entretanto, naquele fim de semana,
por mais que eu me esforçasse, não conseguia me tranquilizar. Só não entrei em
pânico porque fiz um esforço imenso. Mas já comecei a imaginar a morte precoce,
meu filho que não veria mais o pai, minha esposa que iria se virar, é claro,
casando-se com outro, meu CD, meus projetos de vida interrompidos. Lembrei-me
do Cazuza. A impotência diante da doença numa tarde cinzenta e fria, o esforço
para espantar a solidão e os pensamentos, os medos de amar, de ser feliz; os
filhos que nunca virão e não permitirão a existência perpétua por meio dos
descendentes.
Esforço
em vão. O final de semana quase não passou. Não comentei nada com a Flávia para
não alarmá-la. Simplesmente disse que o médico fez um exame de rotina e me
encaminhou a um especialista para aprofundar o diagnóstico. Será que vai muita
gente no meu enterro? Será que vou morrer rapidamente ou o câncer vai me
devorar sem pressa e dolorosamente? Que bobagem! Não tem nada a ver! E Murphy,
onde fica? Se estou pensando que é grave, é porque de fato não é! Mas aí que
está: então deve ser, justamente porque estou pensando que Murphy vai me pegar exatamente
porque já o previ: se acho que é grave é porque não é. E justamente por achar
isso, é. Que enrosco!
Preciso
passar minhas senhas para a Flávia, orientá-la sobre o seguro de vida e os
emails que ela deve mandar. De repente nem dê tempo de eu fazer isso: os caras
me hospitalizam e eu nem saio mais do hospital. Comecei até a me sentir pior. A
dor do externo agora era o menor problema. Todo meu corpo doía, as pernas, a
bacia. Eu diria que meus ossos estavam quase esfarelados, era possível
senti-lo. Como eu não tinha percebido isso antes? Que idiota! Quando o câncer é
diagnosticado cedo o problema tem solução! Que estupidez não ter investigado
antes! Mas, e se não for câncer? Não, eu não tenho tanta sorte assim. Se todo
mundo morre de câncer, por que eu não morreria? Pensando bem, é melhor não
pensar nisso.
Na
segunda-feira – eu havia ido ao hospital no sábado – fui dirigindo lentamente
até o especialista, aproveitando quiçá os últimos momentos de vida sem o fantasma
da morte a me seguir impiedosamente. Aquela segunda-feira parecia um dia
bonito. Cheguei ao consultório, estava cheio de gente. Como de praxe, fui ao
banheiro. Deixei a revista que estava lendo na cadeira. Quando voltei, outro
paciente a estava lendo. Resolvi dizer-lhe que era minha e que eu precisava
lê-la. Antes de fazê-lo, desisti. Afinal, se eu estivesse perto da morte, mais
nobre que ler as notícias, seria dividir a revista com aquele senhor, já que a
leitura da revista não me acrescentaria muito, já o nobre gesto seria algo que
ficaria marcado, ainda que anonimamente, com um derradeiro ato de generosidade.
Parece que o senhor leu os meus pensamentos e fez menção de me devolver a
revista. Sorridente, insisti que ele continuasse com a leitura. Evidentemente,
não lhe disse que queria praticar um ato de generosidade antes de morrer, para
não assustá-lo e fazê-lo perder a gana pela leitura. Ele continuou lendo e,
momentos depois, quando foi chamado, devolveu-a com um obrigado. Enquanto
esperava, me deu vontade de tomar café. Geralmente evito por causa da minha
gastrite, principalmente se o café estiver muito forte. Mas naquele dia foi
diferente. O que é um cafezinho para quem vai morrer daqui a pouco? Por via das
dúvidas, tomei um copo de água antes e saboreei o café.
Quando
o médico me chamou, simpatizei imediatamente com ele. Era um senhor
visivelmente acima dos 60 anos. Fiquei mais tranqüilo porque ele deveria ser
bem mais experiente que o médico que me atendera no fim de semana. De fato era.
Eu não me arrisquei a dizer a ele que estava apavorado, mas acredito que ele
percebeu minha preocupação por conta das perguntas tangenciais que lhe fiz. Por
fim, admiti estar receoso de que aquilo pudesse ser um câncer.
Sorridente,
ele me tranqüilizou:
– Pode
deixar que você ainda vai viver muito tempo. Isso aí deve ser uma artrite, uma
inflamação nos ossos.
Receitou-me
um medicamento para aliviar as dores e me encaminhou para um reumatologista.
De
fato, não era câncer. A reumatologista dentre outras coisas pediu uma
cintilografia computadorizada e se admirou do estado dos meus ossos. Bastante
afetados. Entretanto não era de se estranhar para quem tem o problema há tanto
tempo. Ela disse que esse problema pode ocorrer na adolescência, não me lembro
em quais circunstâncias, e também é comum em decorrência de lesões em atletas
jovens, por causa do esforço. Não era o meu caso. Apesar do estágio avançado da
doença, ela se admirou de meus sintomas serem tão poucos e ficou mais tranquila
quando constatou que minhas juntas não foram afetadas.
Estou
fazendo um tratamento que, a menos que haja um avanço na medicina, será mantido
até o fim da minha vida, espero, depois dos 70 anos. O nome da doença?
Espondiloartropatia soronegativa.
Sei
lá o que é isso!
Como
se pode ver, eu quase morri. Não da doença, obviamente, mas de susto. E por uma
boa dose de estupidez, devo reconhecer.
No
final da tarde, quando voltei para pegar meu filho, me informei a respeito do
rapaz acidentado. Informaram-me que os bombeiros o levaram e ele morreu no
hospital. Que hospital que nada! Ele já estava mortinho da silva na laje!
Também
soube que ele, seu irmão e alguns colegas haviam subido de Santos para fazer o
serviço de pintura em Santo André e ele acabou morrendo.
O
mais triste foi a circunstância da morte. Estúpida. Todos morreremos um dia, é
inescapável, mas morrer de uma forma tão estúpida é algo que me assusta.
No
período da tarde, funcionários da Eletropaulo encaparam o fio desencapado na
região onde aconteceu o acidente. Esse detalhe só aumenta a estupidez da morte.
A irresponsabilidade criminosa da Eletropaulo potencializou a morte estúpida do
rapaz. Sua família deveria processar a Eletropaulo. Tudo bem que o contribuinte
pagará, mas é o mínimo que se espera para que haja alguma justiça nesse episódio.
Tomara que tenham processado.
Réquiem
(Meu
pai se foi 46 dias depois de terminado o texto acima, 45 dias depois da foto
abaixo, vitimado por dois derrames, o primeiro em sua casa, o outro no hospital.)
No
ano em que completei quarenta anos, quando ainda contava trinta e nove, eu vi
meu pai entubado numa UTI, eu vi meu pai indefeso de fraldão num necrotério, eu
vi meu pai gelado sob uma manta de flores, eu vi meu pai descer no paletó de
madeira que o protegia no seu melhor paletó, meias e sem sapato para o seu
último e derradeiro descanso. E nunca mais o vi.
Eu
vi o último encontro dos três mais jovens representantes de um clã de
incontáveis irmãos que eu nem sei mais a conta, mas que não passam de dez: meu
pai, ido aos setenta e quatro, meu tio Nuca
ao setenta e seis toureando seus males da ancianidade, meu tio Júlio alquebrado
aos setenta e nove pelo implacável diabetes.
Eu
vi uma viúva sentada desolada ao lado do caixão do seu marido que se foi.
Caçula das mulheres de seu clã que também caminha em contagem regressiva,
amparada por seu irmão, o caçula definitivo.
Vi
amigos e conhecidos, alguns deles de longos anos, renderem tributo ao meu pai
por seu caráter inspirador, o que me encheu de orgulho e serviu de consolo.
Vi
as coroas de flores e, agradecido, conferi o quanto meu pai era tido em grande estima.
Vi a
família reunida, os filhos de perto e de longe, dois deles pastores (um deles
desempenhando um exemplar labor de recuperação da dignidade de famílias
mexicanas), os netos, as noras, os genros, e pude ver que meu pai cumpriu com
louvor sua missão de, juntamente com minha mãe, constituir uma família madura,
equilibrada, unida e de bem.
Vi
os belos discursos das exéquias e concluí que isso só ocorreria se estivesse
repousando naquele caixão alguém realmente inspirador.
Vi
que meu pai não se tornou um santo porque morreu, mas já era um santo em vida.
Mas
também vi que nossos projetos realizados, inconclusos, nossos sonhos, nosso
esforço, nossa vitalidade, nossos bens, nosso dinheiro, nossa pobreza, nossa
fome, nossas lágrimas, nossos sorrisos, nossos abraços, nosso fôlego de vida,
tudo passa. Tudo é vaidade. Só fica a força de nosso caráter que, para o bem ou
para o mal, molda nossa história e é isso, não o que construímos ou deixamos de
construir, que testemunhará a respeito de nós quando partirmos e servirá de
exemplo e inspiração – ou não – aos que ficarem.
Meu
pai foi um homem bom.
Sidnei Ribeiro de
Souza
Caro Obadias,
Sinto muito pelo falecimento do nosso
querido irmão Cícero. Homem que na sua simplicidade, pôde deixar valores
impressos em mim. Aprendi com ele a determinação no trabalho do Senhor, mesmo
quando nós, na nossa juventude, não valorizávamos isso. Seus longos tempos
gastos, para aprender a dinâmica de qualquer instrumento, para ensinar-nos
depois e muito mais.
Deixo meus mais profundos sentimentos a você
e a toda sua família, orando para que Deus, através do Seu Santo Espírito, os
dê resignação.
Um abraço!!
Sidnei e família.
(Sidnei é pastor em Caleta Olívia, na
Argentina)
Sérgio Schuindt da
Silva
Queridos “de Deus”,
O semeador de fato não tem idéia da dimensão
do seu trabalho. Possivelmente a maior parte do seu trabalho ele não verá (“mas
ficará satisfeito”)
Entre muitos, sou mais um aluno do querido
Prof.Cícero de Deus. Minha gratidão pelo privilégio de tê-lo como o incansável
mestre. O curso natural daquele que voluntariamente se dispõe a servir seria
desistir ante tamanhos desafios e constantes revezes dos pretensos aprendizes.
Mas essa não foi a decisão do professor: sábado após sábado ele estava lá; se
havíamos estudado ou não a lição, lembre-se: o malfadado Bona, terror dos pouco
afeitos aos livros, como o autor dessa breve missiva; se retribuíssemos pelo
menos com um “valeu irmão” ou “obrigado” ou equivalente; mas sequer isso: prá
mim, quase que um suplício; pra ele: uma missão;
Pra mim, o tempo que seria furtado das
incansáveis jornadas infantis; pra ele, o tempo que seria ganho com homens que
seriam formados; pra mim, mais uma chateação dos meus pais; pra ele: mais um
serviço ao Pai celestial.
Ele também deveria desistir nos ensaios:
quanto preconceito, quantas chacotas; aproveitávamos de sua simplicidade para
até em códigos infanto-juvenis tentar desqualificá-lo; mas o nosso herói
professor não se importava com os de fato crianças; sua maturidade, convicção e
determinação superavam a simplicidade habitual; e no domingo seguinte, após a
Escola Bíblica Dominical, ele estava lá. Um apóstolo formando discípulos;
discípulos que hoje estão pelo mundo (nesse momento estou em uma viagem nos
EUA), chorando a ausência do mestre, mas guardando pra sempre os seus
ensinamentos; querendo ser íntegros como ele.
Sempre me lembrei do irmão Cícero por sua
persistência; como alguém que a seu modo, fez o melhor que podia; me sinto
devedor quando vejo que deveria frutificar mais, já que venho de uma geração que recebeu mais
também.
Queridos Obadias, Tatá e Micaías, estendam
essas breves considerações e agradecimento aos demais filhos e netos “de Deus”,
além da querida irmã Ilza. Prossigamos assim firmes, multiplicando as sementes
plantadas pelo vosso papai.
Ao mestre, com carinho.
Sergio Schuindt
(Sérgio é pastor e sócio da KPMG)
Priscila Ferminio
Badias, me emocionei ao ler isto. Sobretudo,
porque a maneira como me sinto em relação ao te pai, é exatamente o que foi tão
lindamente escrito pelos queridos Sérgio e Sidnei...
E me sinto afortunada neste momento, porque
me lembro de alguns momentos em que orei por ele com gratidão. De uns anos pra
cá, tenho pedido a Deus que me ensine a ser grata por tudo aquilo que tenho na
vida, o que considero ser oportunidades que outros muitos não têm, mas gostariam.
Por exemplo, sempre que estou num lugar, num evento, num momento, que jamais
pensei que chegaria, paro, e agradeço a Deus de todo o meu coração, digo a ele
o quanto me sinto especial por dentre tantos, eu estar ali, desfrutando aquilo.
E num belo dia, no discurso do Thiago
Nicácio Lima, quando estava, com a família, mudando para a Sede, agradeceu
publicamente ao irmão Cícero pelas horas dedicadas aos ensinamentos musicais,
nos emocionamos juntos, ele, no púlpito, eu, a Priscila Lima, a Berê
e outros tantos que pude notar sentados nos muitos bancos da igreja de Vila
Scarpelli com lágrimas no rosto, sentindo-se de igual modo gratos a Deus pela
vida daquele 'homenzinho' que tanto e a tantos influenciou.
Não, não é demagogia. É só gratidão e
reconhecimento mesmo. E estou feliz porque não passei a sentir isto depois que
ele se foi. Vem de antes, o que prova a mim mesma que é um sentimento
verdadeiro.
Compartilho do teu sentimento de consolo ao
ver o carinho e reconhecimento das pessoas em relação ao teu pai. Por ter
sentido exatamente a mesma coisa no velório e sepultamento do meu pai, foi que
decidi ir ao do teu. Aliás, foi o primeiro que tive coragem de ir após o
falecimento de meu pai. E não iria, estava decidida, mas me lembrei de como,
mesmo sem palavras (se elas foram ditas, realmente não me lembro), a presença
de meus amigos me consolou naqueles momentos tão cruéis. Só por isto fui, e não
me arrependo. Fico feliz de não ter cedido ao meu egoísmo, e junto com tantos
outros, ter cumprido meu papel de amiga e irmã.
Beijos,
Pri
(Priscila Ferminio é integrante do Kol
Brasilis)