sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

A dentista

Minha relação com os dentistas é antiga e começou na minha infância. Por tomar muitos antibióticos, meus dentes se estragaram rapidamente. Isso me custou um dos dentes da arcada dentária superior e, na pré-adolescência, recordo-me de ter feito um tratamento de canal no Sindicato dos Metalúrgicos, levado por meu pai, na época funcionário da Otis em Santo André. Foi uma experiência traumatizante, e me lembro como era horrível e dolorosa a raspagem que o dentista fazia no canal do dente.
Anos depois, fiz um tratamento com um dentista perto de casa, o dr. Paulino. No início ia com minha mãe. Fiquei um bom tempo tratando os dentes e não gostava nada daquilo. Mas, enfim, era obrigatório porque meus dentes realmente eram muito frágeis. Ganhei várias obturações, inclusive nos dentes da frente.
Depois de adulto voltei ao dentista novamente, dessa vez com o dr. Marcos e fiz mais uma série de restaurações, canais e novas obturações. Na época, eu já reclamava de um dos dentes do siso. Parecia haver um buraco e juntava comida. Ele analisou o dente e comentou:
– Hum, isso não será uma extração: será uma cirurgia.
A senha estava dada: nunca mais apareci.

Passarem-se mais de 10 anos e eu sempre adiava a volta ao dentista porque sabia que teria que fazer minha entrevista final com aquele dente do siso. O fato é que, depois de tantos anos, uma restauração que o dr. Marcos fizera num dos dentes da frente que quebrara acabou escurecendo. Ele fizera uma gambiarra para não ter que fazer uma caríssima jaqueta mas, depois de uma década, a gambiarra estava escura. Eu não conseguia rir sem tapar a boca ou disfarçar o riso. Terrível.
Como eu começara um tratamento ortodôntico numa clínica com meu filho, o Vítor, animei-me com a história e resolvi encarar esse desafio de anos adiado. Fiz orçamento em alguns dentistas e acabei optando pela clínica mesmo, porque eles me pareceram mais profissionais que os demais, até mais honestos: o avaliador sugeriu não fazer todas as obturações que uma dentista havia sugerido e deu razões bastante plausíveis que, na minha opinião, a outra dentista poderia ter feito o mesmo. Se não o fez, foi por estar preocupada com seu faturamento ou por imperícia.
Paguei tudo de uma vez (quer dizer, no cartão de crédito, parcelado) para não ter como desistir da extração do dente do siso quando ela chegasse.

A clínica tem profissionais especializados em cada caso, de forma que eu comecei o tratamento pelo mais simples: as restaurações nos dentes da frente. O tratamento foi feito com uma dentista. Ela sempre estava com seu jaleco e seu gorro. Mas o seu jeito extremamente profissional me cativou. Sem falar que ela parecia ser muito bonita. E tinha um jeito de aplicar a anestesia que me deixou “anestesiado”! Ela passava uma pasta e depois aplicava a agulha com tanto jeito que nunca consegui sentir as picadas, nem mesmo na frente dos dentes frontais, embaixo do nariz, onde costuma incomodar um bocado. Depois fiquei sabendo que hoje é assim mesmo: a técnica melhorou. O fato é que eu gostava de ir ao dentista! Incrível. Eu simplesmente fechava os olhos e relaxava! Às vezes conversávamos amenidades:
– Quantos anos você tem?
– Quanto você acha?
– 25 anos.
Na mosca. Numa ocasião perguntei-lhe se o ofício da restauração odontológica tinha algum paralelo com a vocação artística (papo cabeça, hein?), ela me disse que, de certa forma, sim, e que gostava disso. Também me contou que estudou odontologia influenciada por sua tia dentista. Sua tia também é bonita assim? Bem, essa pergunta não fiz, o que provavelmente exporia meu total amadorismo nessas questões.
Numa das vezes em que estava de volta na recepção para agendar o próximo retorno, ela veio pelo corredor, toda gloriosa, e avisou que ia tirar seu carro do estacionamento. Quando reconheci seus passos no corredor, antes de ouvir sua voz, virei a cabeça e me dei de cara com ela sem o gorro. Ela era bastante bonita! As madeixas meio encaracoladas e compridas querendo esvoaçar com seu passo rápido. Ela anda bem rápido. Tive ímpeto de encará-la para olhar bem no seu rosto, explorá-lo, mas não fui capaz de fazê-lo, pois minha curiosidade poderia me trair. Acho que lhe dei um despistante sorrisinho cortês e voltei a falar com a moça da recepção, disfarçando a impressão que sua súbita aparição havia me causado. Essa foi a única vez que a vi em ação fora do contexto deusa-paciente, ops!, dentista-paciente, em traje quase civil.
Na última seção ela lixou meus dentes, me disse que ficariam um pouco ásperos. Se com o passar dos dias eles não ficassem lisinhos, que eu voltasse e ela daria uma nova lixada. Foi o único trabalho que ela não fez direito: não ficou lisinho. Pensei em procurá-la na próxima consulta que faria para continuar o tratamento com outro profissional e solicitar uma nova lixada. Para evitar que ela me pedisse para esperar um pouco mais, resolvi esperar por conta própria. Nunca mais a vi. Depois fiquei sabendo que ela tinha saído de lá. Meus dentes continuam ásperos. E tristes.

A próxima fase foi recuperar o dente escuro: tive de fazer uma jaqueta que custou o olho da cara. O profissional era um dentista muito simpático cuja esposa estava no mesmo período de gravidez da Flávia. Então trocamos algumas impressões sobre esse momento. Era seu primeiro filho. Ele também foi muito profissional. Quando precisou tirar uma radiografia para verificar se o trabalho havia ficado bom, percebeu uma necrose na raiz do dente ao lado. Perguntou-me se doía e eu lhe disse que sim, resultado de uma queda que tivera quando adolescente. Ele me informou que seria melhor eu tratar o canal desse dente, afinal ele poderia “explodir” a qualquer momento, mesmo não tendo “explodido” em tantos anos, porque isso é imprevisível. Então era melhor tratar. Doeu de novo. Dessa vez no bolso.
Algo que me incomodou um pouco nesse dentista é que ele parecia um perfeccionista. Fez o molde, me explicou toda a cadeia produtiva da jaqueta e fiquei de voltar uma semana depois para testar. Uma semana depois voltei. Ele tirou o dente falso que havia confeccionado, testou o molde e demorou cerca de uma hora fazendo pequenos ajustes e desgastes na peça. Quando já me coçava a unha do dedão de tanto ficar com a boca aberta, ele concluiu: não ficara bom e teria que tirar novo molde para encomendar nova peça. Não acreditei! Eu pensando que o cara iria dizer que fora o melhor pino da sua carreira e o sujeito me vinha com essa de que não ficara bom! Vai gostar assim da profissão! Melhor para mim, entretanto, apesar da minha impaciência. Quando retornei novamente, ele testou um bom tempo o pino, fez ajustes e, por fim, feliz, concluiu que ficara bom. Perguntou-me se eu percebera que dessa vez havia ficado melhor. Claro que menti.

Numa das idas à clínica, uma das simpáticas recepcionistas perguntou a origem do meu nome. Expliquei-lhe o significado de “Obadias” e, quando ela perguntou a origem do sobrenome, fiz aquela cara típica de quem vai tocar num assunto doloroso, mas que se esforça para apresentar naturalidade e lhe preguei a peça que gosto de pregar em pessoas desavisadas. Expliquei-lhe que meus pais adotivos me encontraram na escadaria de uma igreja e, por isso, resolveram me dar esse sobrenome. Ela não sabia o que dizer. Só foi capaz de dizer que havia muita gente bondosa no mundo, o que eu concordei, comovido. Tenho o palpite que uma senhora sentada na recepção só não se levantou e me deu um abraço solidário por pura vergonha. Algumas semanas mais tarde, quando lhe perguntei se ela se recordava da história da origem do meu nome, ela fez uma cara de Madre Teresa de Calcutá e me disse que – claro! – se lembrava. Então eu lhe expliquei que era uma brincadeira, que “de Deus” é sobrenome da família do meu pai. Ela teve ímpetos de me dar umas palmadas, acredito.
– Como você pode ter feito isso? Eu contei para todo mundo! – protestou a piedosa recepcionista.
– Então desconta!
A outra recepcionista quase morreu de rir. Foram necessários vários retornos à clínica para a recepcionista deixar de me receber com um afetuoso ‘seu’-Obadias-o-senhor-me-paga!

Depois do dentista da jaqueta, fui encaminhado para uma dentista para fazer o canal. Era uma senhora muito simpática também. Mas não aplicava a anestesia tão bem quanto a garota de 25 anos. Talvez ela já não tivesse mais paciência ou não tivesse tanta necessidade de auto-afirmação. Ou talvez não fosse tão boa para aplicar anestesia como a garota. Mas, se não me engano, dava aulas em faculdade. Então deveria ser uma profissional altamente capacitada. Só não gostava muito das incontáveis ligações que ela atendia sempre com a mesma recomendação “não fecha a boca!”, o que era bastante cansativo para mim.
Fiquei surpreso de saber que ela ainda ia fazer a raspagem com os palitinhos que tanto de traumatizaram na infância. Ela me explicou que, apesar de tanta tecnologia, algumas coisas não mudam. Mas depois se retratou: disse que existe um aparelho automático que faz isso, mas que não fica tão bom. Então ela preferia fazer do modo antigo mesmo. Bem, diante da uma tão dedicada artesã, eu só tinha que agradecer, nem que isso representasse mais sofrimento para mim. Mas confesso que não foi tão ruim quanto minhas memórias me contavam.
Depois de algumas visitas, ela colocou o curativo definitivo. Pediu-me que aguardasse um prazo maior. Enroladíssimo como sempre estou no meu trabalho, não voltei no dia agendado e o prazo maior se converteu num prazo tão grande que eu receava que ela diria que o trabalho se perdera por causa do retorno tão depois. Ainda bem que isso não aconteceu e pude concluir o canal.

E então chegou o temido fim. A hora da verdade. Mas nem tudo é tragédia. Quando fui apresentado à dentista, eu pensei que não seria tão ruim assim se eu tivesse que extrair os quatro dentes do siso em vez de “apenas” dois, o problemático e seu irmão superior. Era uma morena muito simpática. Bonita, mas principalmente muito simpática. Pensando bem, simpática é pouco, mas deixa para lá.
Ao analisar a radiografia ela me informou que, de fato, aquele era um caso complicado. Segundo ela, há três níveis de gravidade de um dente do siso: o normal, que é quando o dente nasce de pé; o mediano, quando ele nasce meio torto; o pior caso, quando ele nasce deitado. O meu era o pior caso, e ele estava deitado para o lado do outro dente, o que piorava ainda mais a situação. Seria necessário cerrar o dente e outros detalhes da tortura que ela descreveu. Bem, pelo menos eu seria tratada por uma morenaça, se isso servia de consolo.
No dia agendado, um sábado, tomei os remédios com a antecipação solicitada e fui como uma ovelha ao matadouro. Ela me recebeu com duas assistentes. Uau! Não pelas assistentes, se bem que elas mereciam (nem tanto), mas pelo número de profissionais. Três profissionais para extrair o desgraçado de um dente? Ela então explicou que as outras duas eram estudantes e, mais que assistentes, iam assistir à extração. Então eu concluí que de fato meu caso era um tanto singular e fiquei feliz em saber que, se não iria ajudar para o avanço da ciência, ao menos contribuiria para o aperfeiçoamento de futuras dedicadas profissionais.
Depois de várias agulhadas, espera, mais agulhadas, espera e agulhadas de novo (a anestesia não estava pegando bem) a tortura para valer começou. E dá-lhe bate-papo com as meninas. Eu percebi que era estratégia da dentista porque, entre uma conversa e outra, ela não conseguia deixar de escapar algum comentário surpreso com a dificuldade no meu dente. Ela não queria me assustar. Num certo momento eu pedi para ela parar porque parecia que minha cabeça ia estourar. Quem se assustou foi ela. Perguntou-me se eu tinha pressão alta e eu lhe disse que não: baixa. Não me lembro bem, mas ela fez alguns comentários, tomou algumas precauções e depois de me perguntar uma centena de vezes se já estava melhor, retomou a extração.
Para encurtar a história, depois de quase 2 horas e meia ela desistiu. Não de arrancar o dente, é claro, ou os pedaços dele que foram saindo aos poucos, mas de arrancar as raízes. Ela me explicou que nunca vira um caso tão complicado, que as raízes estavam totalmente sedimentadas com o osso e que seria inócuo tentar extirpá-las. Ela cerrara o que fora possível e as quatro raízes ficaram lá mesmo, grudadinhas no osso, depois de me garantir que não haveria problemas. E dá-lhe pontos. Quando tudo terminou, ela me explicou que se assustara, de fato, com minha reclamação da cabeça que parecia explodir.
Voltei para casa dirigindo o carro com uma mão e segurando uma bolsa de gelo na outra. A recuperação foi relativamente rápida, já que no terceiro dia já estava em condições de voltar às minhas atividades com moderação. Mas doeu muito depois. Quando voltei para tirar os pontos, nova tortura. Ela disse que nem se lembrava de ter colocado tantos pontos, mas tivera realmente que fazê-lo por causa do estrago na minha boca. Tirar os pontos foi uma tortura também. Até achei que foi pior que extrair o dente.
Voltei para casa e depois de alguns dias tive que voltar porque o local continuava sangrando e doía muito como se estivesse cheio de pedrinhas. Ela falou que, de fato, como a região cortada fora muito grande, a sujeira se acumulou nas camadas de gengiva e boa parte da que tinha se cristalizado estava me incomodando juntamente com aquela que não havia cristalizado ainda. E dá-lhe mais uma seção de pinça para arrancar as pedrinhas. Mais uma seção de tortura! Eita dentinho desgraçado da moléstia!
Tendo em vista a complicação, ela sugeriu que eu esperasse mais uns quinzes dias para voltar e extrair o dente superior. Não segui seu conselho: seis meses depois retornei.
Era uma quinta-feira, já havia me preparado emocionalmente, havia revisado meu testamento, enfim, tomara todas as medidas de praxe. Menos arranjar alguém para ir comigo e me levar de volta para casa. A caminho da clínica, a covardia me tomou e liguei para a Flávia que estava na faculdade (a sua quarta – vai gostar de estudar assim!). Quem sabe ela poderia passar lá e dirigir o carro para casa com escala na farmácia para comprar o remédio contra a dor. Ela achou que não era uma boa ideia improvisar naquele momento e pediu para eu solicitar que seu pai me ajudasse. Como eu sabia com o sogro tinha que ir ao médico mais tarde, decidi assumir minha condição de saco de batatas com dignidade. Encarei a bronca sozinho.
A dentista me chamou, conversamos um pouco, comentei sobre a preocupação da Flávia e da reação negativa da Flávia quando lhe disse que uma equipe de TV iria à nossa casa me entrevistar num programa que iria tratar sobre pessoas que trabalham em casa.
– Como as mulheres são complicadas!
Ela concordou. E disse que, caso fosse homem, pensaria o mesmo. Seus amigos lhe dizem que ela tem cabeça de homem.
– Então você gosta de futebol.
E não é que ela gosta mesmo? De todos os esportes e é corintiana. Veja que beleza! Morenaça, quase linda, simpaticíssima e ainda corintiana! Que fique registrada mais uma prova de que a perfeição não existe.
Bem, vamos ao que interessa porque estou fugindo do assunto.
Para não me assustar, ela disse que seria mais fácil porque o osso superior é mais poroso. Valeu pela tentativa de me tranqüilizar. Quatro agulhadas, o meu nível de aflição subindo, alguns minutos de espera, e então ela pega a primeira pinça. Procura uma melhor posição para chacoalhar o dente, dá uma experimentada, força um pouquinho e...
– Pronto, acabou!
Quê??? Em menos de um minuto o dente estava extraído!
– Eu acho que Deus viu o seu sofrimento da outra vez e quis facilitar as coisas para você dessa vez.
Receita preenchida, prontuário assinado por ela e por mim, recomendações para meu retorno a fim de arrancar os pontos, nos despedimos com um aperto de mão.
– Acabou. Agora você ficou livre de mim.
Quando dei por mim, já tinha soltado o lacônico e involuntário comentário:
– Que pena!
E foi tudo.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Jesus e a biodanza

Em 2002 resolvi fazer um curso de arranjo em música popular com o André Protásio, um maestro do Rio de Janeiro. Eu estava numa fase em que procurava afirmar minha brasilidade através das músicas que estava escrevendo para o Cifra (Coral Ingrid Fransson), um coral jovem com o qual eu trabalhava na Assembleia de Deus. O “QG” desse coro era na igreja-sede da AD em Santo André, igreja essa que, anos antes e durante vários anos, tivera como organista um competente músico, o Edivaldo. Lembro-me que suas performances ao órgão me deixavam encantado e, de alguma maneira, sua harmonia me lembrava muito Albert Ketèlby*. Uma das músicas que eu gostava muito de ouvir no coro daquela igreja era a tradicional “Fugi, Tristeza e Horror” em que, a cada estrofe (eram 3), o Edivaldo fazia uma rápida introdução e modulava meio tom acima.



* Albert Ketèlbey foi um compositor, regente e pianista inglês que viveu entre 1875 e 1959. Compôs temas como Em um mercado persa e No jardim de um mosteiro que, a propósito, utilizei como trilha sonora para os cumprimentos dos padrinhos no meu casamento



Enquanto fazia o curso do André Protásio, resolvi exercitar algumas técnicas em uma música e acabei escolhendo a “Em Jesus”, do hinário das AD, a Harpa Cristã. Resolvi alterar a estrutura rítmica da música e deixá-la com levada de baião. A exemplo da “Fugi, Tristeza e Horror”, resolvi fazer modulações de meio tom a cada estrofe. O tom original da música no hinário é Lá maior. Eu decidi começá-la em Dó maior e terminá-la em Mi bemol maior. Ficaria numa região confortável para as vozes extremas: o dó não seria muito grave para o baixo, nem o mi bemol muito agudo para o soprano. Quanto às vozes intermediárias, não era um grande problema, já que a extensão da música* é de uma nona.



* Extensão de uma música é a distância intervalar entre a nota mais grave e mais aguda da melodia. Por exemplo, a extensão da música “Parabéns pra você” é de uma oitava; se cantada em sol maior, a nota mais grave será o ré e a mais aguda, o ré uma oitava acima, lembrando que a escalda diatônica, base da música ocidental, possui 7 notas que se repetem com o dobro da freqüência, na repetição mais aguda (a oitava de cima), ou com o metade da freqüência, na repetição mais grave (a oitava de baixo). Bem, mas aí é outra história: Física



Como sou fissurando em harmonia, tratei de rearmonizar a música pelo menos para uma das estrofes. Eu queria que o início da rearmonização não sugerisse a tonalidade em que ela estava. Depois de um bom exercício de tiro ao alvo, cheguei à rearmonização da música. Achei o resultado harmônico interessante. Só que ficou um pouco complicado do ponto de vista harmônico. Então eu tomei a decisão de colocar essa rearmonização no final da música. Decidido esse aspecto, resolvi usar uma das técnicas sugeridas pelo Protásio para abrir as vozes: definir uma linha melódica interessante para o baixo e, depois, completar as demais vozes com as outras notas do acorde.



Essa decisão foi tomada, provavelmente, num sábado, porque me lembro de ter anotado a melodia e a harmonia num caderno de música e de ter ido ao salão cabeleireiro do meu amigo Samuel. Enquanto esperava minha vez para o corte do cabelo, escrevi a linha do baixo e, depois, completei as demais vozes. De volta para casa, transcrevi a solução no computador e ouvi. Gostei do resultado. Achei, inclusive, que tinha ficado com cara de Otis Skillings*. Resolvi testar o arranjo no Karpos, um coro de vozes mistas que eu regia na AD que frequentei até os meus 39 anos. Imprimi algumas cópias da partitura e levei para o ensaio, com a desculpa de que essa seria a primeira de uma série de músicas com uma proposta um pouco diferenciada que eu levaria para ensaiar. Achei que seria fácil. Como estava enganado! Por se tratar de uma sonoridade mais dissonante, o pessoal teve muita dificuldade em aprender a divisão de vozes, particularmente no tocante à afinação. Desisti da idéia. Se eu fosse escrever arranjos diferenciados para o coro, teria que começar com soluções harmônicas bem mais simples. Por isso, o arranjo ficou encostado, até ele surgir como alternativa para me salvar da minha indefinição quanto ao trabalho de conclusão no curso do Protásio.



* Otis Skillings foi um respeitadíssimo músico, arranjador, compositor, regente de orquestra, pianista concertista, palestrante e professor. Morreu em 2004. Meu contato com sua obra foi através de algumas partituras, algumas das quais coloquei no coral Karpos. Sempre gostei demais da sua linguagem harmônica.



Bem, se eu já havia decidido por modular a cada estrofe e que a harmonização final seria a mais complexa, restaria sair de uma harmonização mais simples na primeira estrofe e ir complicando até chegar à última. Pareceu-me um a boa ideia. Além disso, eu iria sair de uma proposta rítmica mais elaborada na primeira estrofe, em contraponto à harmonia mais simples e iria simplificando ritmicamente enquanto deixaria a harmonia mais complexa. Adicionalmente, também escreveria alguma estrofe no relativo menor (fiz isso na terceira) e, em uma delas, faria um solo acompanhando de uma cama harmônico-ritmica com um eventual contracanto feminino. No entanto, logo na segunda estrofe, desisti da estratégia do solo pois o resultado não estava me agradando. Resolvi então fazer algo que remetesse aos dobrados que eu tocara na vida, particularmente o contracanto do Bombardino, instrumento que toquei mais tempo. Embora um amigo tenha identificado o estilo como um maracatu, na realidade a inspiração foi outra, justamente o Bombardinho.



* O Bombardino tem um primo equivalente na orquestra que é o Eufônio.



Na terceira estrofe utilizei a relativa menor e fiz um solo feminino acompanhado de uma cama harmônica masculina com uma textura de harpejo nas vozes. Além desses aspectos, pensei em uma melodia curta para a introdução e que seria repetida três vezes, entre as estrofes, com pequenas variações. Esse aspecto também deu certo. No final, como me é característico, o arranjo ficou com bastante informação:



·         Introdução com uma melodia própria

·         1ª estrofe com solo feminino e cama harmônico-rítmica masculina com figura rítmica de baião – Tom: C

·         Modulação para a segunda estrofe utilizando uma variação da melodia da introdução

·         2ª estrofe em 4 vozes num esquema semi polifônico – Tom: Db

·         Modulação para a terceira estrofe, sem utilizar a melodia da introdução, mas utilizando uma célula rítmica bastante clichê em arranjos baião

·         3ª estrofe com solo feminino e harpejo nas vozes masculinas – Tom: Bm

·         Modulação para a 4ª estrofe utilizando uma variação da melodia da introdução

·         4ª estrofe com a rearmonização mais elaborada, utilizando uma linha melódica alternativa no baixo (não chega a ser um contracanto) e técnica de drop2* nas vozes intermediárias onde era necessário para equilibrar as vozes – Tom: C



* Drop2 é uma técnica que consiste em escrever a abertura de vozes em posição fechada a partir da melodia (posição fechada consiste em abrir o acorde juntando as notas vizinhas do acorde) e depois “deixar cair” (drop) a nota da 2ª voz uma oitava abaixo. Essa técnica ocorre “naturalmente” quando se montam shapes jazzísticos nas 4 cordas mais agudas do violão por causa da distribuição das notas da afinação básica do instrumento.



Uma vez que eu desisti de fazer o arranjo com o coro da minha igreja, resolvi fazê-lo com alguns amigos que vieram a ser a primeira formação do Kol e foi a segunda música que ensaiamos e gravamos no estúdio do João Alexandre, Voz e Violão. Os ensaios com o Kol foram complicados. Infelizmente, nas igrejas quase não se faz música de ritmos brasileiros de raiz. O pessoal está acostumado mesmo é com música norte-americana. Por isso, foi bastante trabalhoso extrair o gingado que se espera de uma música em ritmo baião. Eu cheguei a ensaiar auxiliado por uma percussão, feita pelo Rodrigo Castardo, vulgo Pedrero, um amigo que cantava no coro jovem, o Cifra. Essa foi a música que mais ensaiamos em grupo antes de uma gravação. Fiz vários ensaios gerais, ensaios só com vozes masculinas, enfim, tentei vários expedientes para conseguir extrair uma interpretação mais convincente.



A gravação da música foi um capítulo à parte. Ainda estávamos na fase inicial do grupo e a estratégia que eu tinha montado – e que não funcionou – era levar todo o grupo de uma vez só ao estúdio do Jalex e tentar gravar durante um dia inteiro. Não funcionou porque o estúdio é pequeno, o pessoal levava a coisa em ritmo de festa e isso é muito ruim para o trabalho em um estúdio. Nós mais bagunçávamos que gravávamos. O João Alexandre, inclusive, entrava na festa. Mas, fora da bagunça, chegou a me dizer algumas vezes que a estratégia não funcionaria. Por conta disso, nas músicas seguintes, passei a levar poucas pessoas que fossem suficientes para 4 horas de gravação em média, ou menos. A gravação se deu em outubro de 2003. Lembro-me que finalizamos a gravação de madrugada.



Foram 16 pessoas, quatro de cada vez. Quando ouvi o resultado final, fiquei desanimado. Parecia um coral da Cracóvia tentando fazer música brasileira. Eu não imagino como seria um coral da Cracóvia fazendo música brasileira, mas algo me disse que seria algo parecido. Ou talvez nosso resultado estivesse pior. Fiquei tão desapontado que pensei em desistir da música, regravá-la inteira novamente, regravar somente os pedaços piores, enfim. O Jalex fez uma versão de áudio com metade do pessoal, já que ele captara as vozes em separado, e a música ficou menos pesada. Mas, nem mesmo assim, ficou “menos ruim”. Por fim, resolvi manter a música e colocar no final do CD como uma faixa bônus. Passado o tempo, acostumado que fiquei com a música, decidi incluí-la no CD assim mesmo, sem essa de faixa bônus.



Quanto ao arranjo, hoje já não gosto tanto dele. Se eu fosse escrever esse arranjo novamente, minhas idéias seriam outras. Portanto, o arranjo serviu como registro de minha forma de pensar arranjos na época em que fiz o curso com o Protásio.



Biodança




Um episódio engraçado quanto ao arranjo para o curso do Protásio ocorreu quando eu ainda tinha como objetivo utilizar a música “O que será” do Chico Buarque: inicialmente eu pretendia escrever um arranjo para essa música. Eu me hospedava com frequência no Hotel Cosmos 100, em Bogotá. Não era dos melhores hotéis, mas me servia muito bem e eu acabei fazendo amizade com uma banda de jazz que tocava lá.



Num dos incontáveis fins de semana que passei naquele hotel, num domingo à tarde eu estava no lobby com meu caderno de música fazendo alguns trabalhos musicais, quando escutei a música “O que será” tocada pelo sistema de alto-falantes do hotel. Era uma versão em espanhol muito interessante. Perguntei ao pessoal da recepção se eles conseguiam uma cópia daquela interpretação para mim, com objetivo de escutá-la mais e, quem sabe, me inspirar para o arranjo. Eles me informaram que aquele CD era de um senhor que estava promovendo um evento de biodança* no hotel. Eu nunca ouvira falar dessa tal de biodança, de forma que me interessei em procurar o tal senhor para falar sobre a música e, de repente, conhecer melhor o que seria biodança. O senhor, um argentino, era bastante simpático, e foi mais ainda quando lhe disse minha nacionalidade, afinal, ele tinha muita música de brasileiros no repertório da biodança. Ele me prometeu um CD com uma cópia da música e me convidou para participar de uma sessão de biodança. Como eu estava no hotel, não tinha nada a perder, fui. A sessão seria no mesmo dia, algumas horas mais tarde.



* A biodança (do espanhol biodanza, neologismo do grego bio (vida) + dança, literalmente a dança da vida) é um sistema de integração afetiva e desenvolvimento humano baseado em “vivências” (experiências intensas no “aqui e agora”) criadas através de movimentos de dança com músicas selecionadas, e através de situações de encontro não-verbal dentro de um grupo, centradas no olhar e no toque físico. Fonte: Wikipédia.



No horário combinado, desci do apartamento onde estava alojado para o local da sessão. Há, no hotel, uma série de salas que eles utilizam para eventos. Eles eliminaram as divisórias das salas e o espaço se tornou um comprido salão, com um carpete bem aconchegante. Cheguei em meio à sessão e, timidamente, abri a porta. Havia cerca de 30 pessoas. O senhor, muito simpaticamente, me anunciou ao pessoal como um músico brasileiro. Todos foram muito simpáticos, sorridentes.  Convidaram-me para participar, mas eu, educadamente, não aceitei. Limitei-me a me sentar no chão e observar a sessão.



A maioria das músicas era, de fato, brasileira. Lembro-me de ter ouvido Djavan e Ivan Lins. Sempre que podia, ele insistia na minha participação, mas eu recusava. Apenas observava o pessoal e achava aquilo tudo muito engraçado. As pessoas pulavam, faziam brincadeira de roda, dançavam, faziam trenzinhos, todo mundo encoxando todo mundo (hum... eita!) , uma festa. Era realmente muito engraçado. Num determinado momento, quando todos se sentaram numa grande roda para descansar, uma mulher começou a chorar bastante. Era um choro convulsivo. Obviamente, o senhor que conduzia a sessão quase chegou ao êxtase, afinal, ali estava um exemplo inequívoco da utilidade daquilo tudo. Todos, sorridentes e felizes, esperaram a senhora se acalmar. Se não me engano, uma assistente do professor de biodança foi até a mulher e lhe deu um longo e afetivo abraço. Todos acompanharam aquela cena singela com um sorriso calmo nos lábios.



Depois daquele momento de catarse, a reunião estava chegando ao final. Talvez mais excitados com o choro convulsivo da mulher e com o frenesi que o final da sessão estava sugerindo, o professor me convidou novamente para participar. Dessa vez foi mais insistente e todos fizeram um corredor e insistiram para que eu participasse. O professor colocou uma música alegre, agitada, o pessoal começou a dançar sem qualquer coreografia e continuaram no convite insistente para que eu participasse. Bem, já estava ficando chato e não custava nada eu atender ao pedido do pessoal. Levantei-me e, já que iria “dançar”, resolvi fazer no melhor estilo: sem o menor pudor (não caberia ali), comecei a pular, os braços meio soltos para cima, rodopiando, “feliz da vida” em meio ao pessoal. Eu acho que eles não esperavam aquela atitude tão “espontânea” e todos se animaram muito com minha performance. Se algum conhecido meu entrasse naquela sala, não entenderia nada: eu pulando, rodopiando, rindo, com as mãos para cima, como um bezerro tresloucado em meio à relva, e aquela turba em volta fazendo o mesmo. Isso durou alguns instantes até que a música se acabou, quando enfim finalizamos exaustos e sorridentes. No final, quase todos vieram me abraçar efusivamente, talvez com a sensação de que abraçavam mais um novo integrante da irmandade. Eu retribuí o abraço, rachando de rir (por dentro, é claro), pelo inusitado da situação. Foi algo cômico, tosco até, mas que me divertiu à beça.



Por fim, o professor de biodança finalizou nossa interação convidando-me para conhecer sua escola que ficava perto do hotel com uma frase de efeito, algo como “todo encuentro casual es una cita” que vim a saber (agora que pesquisei no Google) ser provavelmente uma frase do grande escritor argentino Jorge Luis Borges. Letrado o professor, não?  Como pedia encontro de tamanha felicidade e magnitude, eu lhe prometi que, assim que possível, visitaria sua escola. Ele até comentou do movimento de biodança no Brasil, não me lembro dos detalhes, talvez pensando na minha continuidade na irmandade já em terras tupiniquins. No dia seguinte, o pessoal da recepção me entregou um CD recomendado pelo professor de biodança. Lá estava a bela interpretação em espanhol (não encontro agora nos meus CDs para tentar descobrir quem estava cantando) mas, decepção, não havia mais nada. E eu que esperava que sua gentileza fosse além do convite para eu participar da biodança e também implicasse em algumas musiquinhas a mais no CD... Pelo menos essa decepção fez com que não me tornasse refém de uma dívida de gratidão às músicas gravadas no CD o que poderiam me constranger a visitar sua escola de biodança, o que, com efeito, nunca fiz.