Fazia tempo que não pegava o trem para São Paulo antes das 7
h da manhã. Não existe fila na bilheteria em Santandré. Isso me impressiona. Achava
que nesse horário haveria uma fila enorme. Compro o bilhete e enquanto passo
pela catraca, o trem chega. Nem dá tempo de passar para a plataforma do outro
lado. Escolho a primeira porta mais à direita porque descerei próximo das
escadas em Tamanduateí. Na realidade, o trem chega lotado e fica claro que nem
todo mundo entrará. Calmamente me aproximo da porta, passando pelas pessoas que
desistiram, esperando que eu seja o último a embarcar. Dessa forma não ficarei
ensardinhado do lado de dentro. A estratégia funciona e eu fico bem no centro
da porta. Não empurro como os demais porque, se o fizer, caberá uma pessoa mais
e perderei minha posição estratégica.
O trem finalmente fecha as portas depois de eu colocar a
mochila nos ombros, deixando-a pendurada pela frente. A ideia é não ter que
ficar com meu rosto espremido em alguém e ainda me sobrar algum espaço para eu
abrir meu Mutarelli e continuar minha leitura. O espaço não permite. Melhor utilizar
o livro com outra utilidade: dados os aromas de hálito matutino e perfume
barato que assaltam minhas narinas, decido afundar meu rosto na capa do livro e
tentar, com o cheiro da encadernação, dar algum alento para meu olfato. Quando embarquei,
certifiquei-me de que não haveria nenhuma mulher próxima a mim para que, por
descuido, não ficasse roçando nela e ser interpretado de maneira incorreta. Não
havia. Portanto, com a cara afundada no livro, além dos corpos me pressionando
por todos os lados exceto na frente graças à mochila, o que me incomoda mesmo é
sentir na minha mão, que segura o livro, dois jatos de respiração nasal que
emitem duas pessoas. Isso me incomoda bastante, mas faz parte inevitável da experiência
de trens lotados. Aliás, não sei como as pessoas conseguem soltar jatos de
vento tão fortes pelo nariz enquanto respiram naturalmente. Para eu fazer o
mesmo, tenho que empreender um grande esforço diafragmático, o que gera
cansaço.
Prefeito Saladino. A porta se abre, gente que sai, gente que
entra, naturalmente sou empurrado para mais dentro. Minha expectativa de que me
livre dos jatos respiratórios faz com que essa onda de gente a me empurrar me
pareça uma boa ideia. Realmente, mudo de posição e agora estou de costas para
uma senhora gordinha. Tento diminuir a pressão desse lado para não incomodá-la.
Livro-me da respiração nasal mas dou de cara com dois senhores com um
insuportável hálito de cachaça. Afundo ainda mais minha cara no livro, fecho os
olhos e espero o tempo passar.
Em Utinga quase nada muda e, em São Caetano, com a abertura
das duas portas, eu não mudo de lugar mas mudo de posição, agora de frente à
porta por onde entrei. Gente que sai, gente que entra, o trem fecha as portas e
percebo que, uma pessoa depois da porta, vai uma garota de cabelos negros. Muito
bonita e com ar de ser bastante meiga. Sua expressão denota que ela está
bastante incomodada com o desconforto mas não reclama. Fico com dó dela. Depois
de algum tempo, desvio o olhar: já pensou se ela me flagra olhando e confunde
meu sentimento de empatia com outra coisa?
Finalmente chegamos a Tamanduateí. Alívio. A multidão se
aglomera no acesso às escadas rolantes. Aproveito que quase ninguém acessou as
escadas fixas e a escalo de 2 em 2 degraus. Ainda dá tempo de subir as escadas
rolantes caminhando porque ela ainda não está entupida. O metrô chega logo e me
posiciono no primeiro vagão, afinal vou fazer a baldeação na estação
Consolação. O metrô está apenas lotado, o que me parece uma ótima ideia. Portanto,
ainda que sinta algumas pessoas me encostando, isso é bem leve ou ocasionalmente
por conta da inércia. Abro o livro e continuo a leitura. Vez por outra sinto
uma cotovelada nas costas. Penso ser resultado da inércia. Do meu lado esquerdo
há uma garota que me parece bastante bonita também. Vez por outra seu braço
roça no meu e fica encostado. Gosto da sensação. Mas, sempre que isso acontece,
depois de desfrutar alguns segundos do toque, afasto delicadamente meu braço,
para ela não achar que estou me aproveitando. Continuo minha leitura.
Na estação Trianon-Masp ela sai, o que me obriga a me mover
para lhe dar passagem. Quando me movo girando o corpo, percebo uma moça alta
atrás de mim que me fuzila com o olhar. Daí suponho que as cotoveladas talvez
não fossem acidentais: talvez, por estar lendo e meio desligado dos balanços do
trem, eu tenha encostado nela algumas vezes e sua reação tenha sido me dar uma
cotovelada por me considerar folgado ou imaginar que eu estava me aproveitando.
Sei lá.
Finalmente chego na estação Consolação. Sempre que desço lá,
observo se a luz da esteira está verde. Se não estiver, mudo minha rota para a
esquerda e vou pelo piso normal. Não gosto muito de caminhar pela esteira
parada. Distraído, me esqueço disso e, quando me dou conta, não dá mais para
escapar: entro na esteira estacionária. Na minha frente vai uma garota de calça
jeans desbotada e sapato preto de salto alto. Sacolejante. Mulher de calça
jeans desbotada e salto alto me parece muito chique. Fora da esteira, na parte
do piso, um rapaz caminha lendo sua revista de tecnologia. Normalmente eu leria
também, mas como estou lendo um livro de papel e não um e-book que dá para
aumentar a letra e ler em movimento sem ter que compensar o balanço natural da
caminhada, desisto da leitura. Acompanho o sacolejo à minha frente. Duas esteiras
paradas e uma catraca depois, já no túnel,
caminho um pouco mais rápido que a moça à minha frente e, no rabo de
olho, dou uma olhadela rápida. Não que ela seja feia, e é um pouco nariguda, mas
eu preferia a visão do sacolejo.
Quase chegando na plataforma da estação Paulista, fico atrás
de um senhor que anda calmamente: chinelo de dedo, bermuda, camisa estampada e chapéu.
Baixinho, constituição óssea avantajada, lhe dá um aspecto atarracado. Tem o
tronco desproporcional, o que implica em pernas um pouco mais curtas. Mas nem
tanto, como acontece com anões, por exemplo. Mas ele anda com passos bem curtos
e arrastando os chinelos. Me pergunto se ele anda assim por conta da sua
constituição física ou por conta de sua personalidade. Não me parece que ele
tenha pernas tão curtas que não lhe permitam dar passos um pouco maiores. Mas de
qualquer forma me pareceu uma figura meio insólita na multidão.
Desço para a plataforma sentido Luz, sentido que sempre me
parece anormal, já que na maioria absoluta das vezes, quando embarco por ali, o
faço no sentido oposto e, ufa!, o trem está menos lotado. Ainda estou com a
mochila pendurada na frente. Um rapaz olha com muita atenção a TV no teto do
vagão do lado oposto ao meu, o que me chama a atenção. Curioso, vou ver o que
tanto lhe prende e fico surpreso ao ver que, do lado em que estou, está
passando um comercial besta. Fico pensando se o que estou vendo é o mesmo que
ele assiste. Distraído nesse exercício, desequilibro-me quando o trem dá
partida e dou um encontrão, com a mochila, em uma senhora à minha frente. Imediatamente
ela se vira, um misto de surpresa e começo de indignação, mas quando dá de cara
com minha imediata expressão de pesar pelo incidente, a tensão do seu rosto
desaparece e dá lugar a um sorriso compreensivo que interpreto como uma
aceitação do pedido de desculpas que meu olhar sugere.
Uma estação depois desembarco na República e, como ocorre
das poucas vezes que desembarquei ali, minha primeira reação é seguir a
multidão que se desloca para a escadaria que dá acesso ao pavimento inferior,
para a baldeação, quando caio em mim a tempo: opa, não é por aqui! Desvio do
fluxo e vou em direção à escada rolante que dá acesso ao pavimento superior e
depois à saída.
Absorto em pensamentos, passo pelas escadarias, vou pela
Sete de Abril e, quando me dou conta, já estou apresentando o RG na recepção do
edifício.