sábado, 15 de setembro de 2018

Livros na infância


- Pai, o filme Hugo Cabret é para crianças?, pergunta o Felipe quando o deixo na escola, com o livro “A invenção do Hugo Cabret” aberta nas últimas páginas, onde estava sua leitura.
- Hum... Não sei...
- É que o filme parecia complexo para crianças (ele assistiu faz um tempo), mas eu achei o livro tão simples...
- É que você já está se acostumando a ler coisas mais complexas.
Mais tarde ele comentou com a mãe que a história era muito linda.

Lembrei-me dos meus 9 anos. Eu já era um leitor convicto, mas até por conta do acesso aos livros, não lia com tanta frequência. Meus pais não tinham dinheiro para comprar livros. Então eu passava o tempo em casa lendo as partituras musicais do meu pai (nessa idade eu já solfejava com bastante facilidade) e lia o que caía nas minhas mãos (por exemplo, enciclopédias: aos 11 anos li uma enciclopédia de psicologia de 5 volumes kkkkk: era o que tinha à mão).

Hoje os tempos são outros, temos condições de comprar livros para ele e, mesmo sem ficarmos “pregando” para ele que ler é bom, esse hábito surgiu naturalmente. Com certeza por ver os pais e o irmão sempre com um livro aberto.

Uma das minhas pequenas decepções da vida é que somente há alguns anos caiu minha ficha de que eu poderia ter relacionado todos os livros que já li. Eu, um amante dos levantamentos estatísticos. Eu já tinha dito para o Felipe fazer isso. Essa semana eu lhe pedi para me dizer os livros que ele já leu que vou começar a anotar. Ele gostou da ideia e me trouxe, do seu quarto, os livros já lidos. Ficaram de fora, segundo ele, os livros com menos de 20 páginas e os gibis.

Só teremos um país melhor se nossos filhos forem leitores como o Felipe. Não tem milagre. Não tem atalho. A lástima é que adultos não leitores não têm ideia de como a falta de leitura é prejudicial e não ficam motivados e tentar fazer de seus filhos leitores. O Brasil só será uma grande nação quando cada adulto vivo tiver lido algumas dezenas de livros. Do contrário, teremos uma nação de zumbis intelectuais, que raciocinam em termos muito simplificados, que não são capazes de compreender a complexidade do mundo contemporâneo, que se deixam enganar por memes rasos dada sua inexistente capacidade de consumir informação de forma crítica.



quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Carta aberta a um amigo que utilizou Romanos 13:3 para legitimar seu apoio ao Bolsonaro em seu elogio ao torturador Ustra


Amiga, ainda me lembro da dona Guiomar, que foi minha diretora de escola e do Amigo também, dando um sermão em mim e mais 3 colegas da 7ª série pelas críticas ácidas que fazíamos ao regime em nossos trabalhos escolares, por sermos politizados. Ela dizia que, embora estivéssemos na abertura, aquele tipo de manifestação política poderia trazer problemas para a escola e, quiçá, para nossas famílias. Lembro-me da dona Maria da Graça, minha professora de Geografia (não sei se foi professora do Amigo) contando pessoalmente a mim, um de seus alunos preferidos, casos de professores perseguidos pelo regime somente pelo fato de não concordarem; lembro-me claramente (embora não me lembre dos detalhes) de ela contar sobre um amigo pessoal que havia desaparecido por causa de suas opiniões políticas. A ideia dela era, de alguma forma, provocar medo para que eu não fizesse críticas severas, usando o humor (sempre usei a ironia para esculachar os poderosos de qualquer sistema de poder), porque isso poderia ser perigoso demais.

Não sei se o Amigo tinha consciência dessas coisas ou era alienado. A maioria das crianças eram alienadas. Eu tinha esse perfil mais politizado, mais consciente, porque era um devorador de livros, interessava-me por política. Não vivi os horrores da ditadura, mas pude, com meu nível de consciência adolescente da época, perceber o quanto um sistema ditatorial que se mantém no poder por meio da violência, de esquerda ou de direita, não importa, pode ser mau. Jovens de hoje não sabem o que foi a ditadura. Nem eu sabia direito porque não era adulto na época. Mas os livros, o conhecimento, a História, a não alienação estão aí como ferramentas. Basta querer usá-los.

Bolsonaro só consegue apoio de pessoas como o Amigo justamente por conta dessa absoluta alienação ou porque tais pessoas estão tão mergulhadas em suas gaiolas ideológicas que não conseguem ver a questão de forma objetiva. Isso é muito triste. O brasileiro evangélico médio não se notabiliza pelo conhecimento, pela conscientização política. Nada disso. Essa semana conversava com outro amigo evangélico sobre política – ele queria saber em quem vou votar – e era nítido que, na cabeça dele, ser de direita é do bem, ser de esquerda é do mal. Por que essa visão binária e maniqueísta do mundo? É certo que o cristianismo fundamentalista propõe uma visão extremamente maniqueísta do mundo. Será que esse exercício de ver um mundo de forma tão maniqueísta limita nossa capacidade de enxergar a realidade com toda sua complexidade? E perguntei para meu amigo algo como “já lhe ocorreu que pensamentos de direita e esquerda não são nem do bem, nem do mal, mas apenas interpretações diferentes do mundo?”

Então, como esse cristão médio com dificuldade para enxergar que o mundo não é maniqueísta como ele pensa ser se depara com o discurso do Bolsonaro que malandramente diz que não existiu ditadura, que tinha que torturar mesmo, que tinha que matar mesmo aquelas eram “pessoas do mal”, esse cristão faz o absurdo de pegar um versículo bíblico para justificar sua ignorância política. Dessa forma ele legitima “biblicamente” sua ignorância, afinal, quem vai discutir com a Bíblia? Não importa se a aplicação do versículo bíblico é desastrosa. Por que você acha que tem tanto movimento dito cristão falando os maiores absurdos por aí, explorando tanta gente simples? Porque faz exatamente o que o Amigo fez: pega um versículo bíblico e, com a hermenêutica mais tosca possível, aplica a uma situação qualquer. Quem vai discutir com um “sábio” recitando versículos bíblicos? Tecnicamente é a falácia da autoridade.

Tem mais: eu me lembrei também Hannah Arendt e seu livro “A banalidade do mal”. Sugiro que você leia. Mas não precisa ler, basta assistir algum documentário sobre: a leitura do livro é um pouco pesada. Ela demonstra como alemães “do bem”, normais, cumpridores dos seus deveres, “patriotas”, CRISTÃOS DEVOTOS, fizeram o mesmo exercício do Amigo: partindo da ideia de que eram do mal judeus e quaisquer pessoas contra do regime de terror nazista, qualquer violência perpetrada contra eles era válida e justificável. VEJA BEM, ISSO É IMPORTANTE: o regime nazista subverteu a ordem das coisas. O certo e o errado não eram mais matar ou não matar, torturar ou não torturar. O certo era “ser a favor do regime”, o errado era “ser contra o regime”. Quando a mente do alemão médio foi manipulada dessa forma, ele não viu nenhum problema em exterminar judeus OU QUAISQUER OUTROS CONTRA O REGIME. O que o Amigo fez ontem foi exatamente isso. E, como provavelmente fizeram muitos cristãos alemães, encontrou um versículo bíblico para justificar sua, desculpe o termo pesado, “perversão moral”, porque não há sistema moral que concorde que é correto matar ou torturar quem pensa de forma diferente.

Eu até entendo o Amigo, porque a História está repleta de exemplos como o dele. Nós, seres humanos, somos assim. Pelo nosso exagerado apreço a uma ideologia qualquer abrimos mão da moralidade mais básica como a ideia universal e indiscutível que é inaceitável, sob qualquer pretexto, torturar ou matar outras pessoas. Para o Amigo, não: se eles fizessem tudo “certinho”, ou seja, se não fossem contra o regime, não seriam torturados, não temeriam as autoridades. Como não fizeram as coisas “certas”, estão reclamando do quê????

Foi nesse sentido que eu lamentei e me entristeço profundamente por ver amigos meus com sua mente tão corrompida. Não espero que vocês entendam meu blábláblá. Dificilmente vocês o entenderão. Vocês estão tão afundados nessa forma de pensar que provavelmente serão incapazes de entender o que estou dizendo.

Se eu estivesse nesse sistema religioso, sentiria vergonha de vocês. Da mesma forma, quando jovem, apesar de acreditar nos fundamentos do cristianismo, tinha vergonha da Assembléia de Deus e jamais convidei algum amigo não evangélico meu para ir à minha igreja, simplesmente porque não teria o que dizer quando eles me perguntassem coisas que eu mesmo não concordava. E, quando fui sair desse sistema e um pastor assembleiano veio tentar me demover da ideia, eu lhe disse: “caro pastor, faz muito tempo que não sou mais assembleiano; eu apenas congrego no Scarpelli porque tenho uma relação emocional muito profunda com aquelas pessoas, minhas raízes estão lá, elas são praticamente minha família; mas eu não me reconheço nesse sistema, eu não entendo isso como o cristianismo que eu acredito”, e fui embora. Passei um período sabático sem criticar abertamente o sistema em respeito aos meus amigos. Mas agora, mais de 10 anos depois, já me sinto à vontade. Não para sentir vergonha, porque isso já não sinto mais por não fazer parte desse sistema. Mas para dizer o quanto isso me entristece. O quanto o sistema religioso fundamentalista e obscurantista pode levar pessoas tão boas quanto vocês a defenderem ideias tão condenáveis e, pior, utilizando argumentos bíblicos.

Desculpa se te choquei. Mas alguns de vocês, em especial meu grande amigo Amigo, um dos meus mais importantes amigos, um dos poucos que eu considero como se fossem irmãos, e ainda sinto isso, me chocaram. Não sentisse isso, eu não estaria aqui comentando, enchendo o saco dele. Porque não me importaria.

Um grande beijo.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

O dia em que Luzia morreu


Há alguns dias em que um idiota que postula o cargo máximo da nação aconselhou seus eleitores a ignorarem a História, acontece essa tragédia, a morte de Luzia e tantos outros tesouros inestimáveis, não apenas do Brasil, mas da humanidade, parte do acerto do museu quanto de outros museus que estavam sob nossa tutela, na confiança.

Para um amante das artes, do saber, do conhecimento, da cultura, das ciências, embora eu não seja pesquisador, é um luto doloroso. Pior ainda por ser esse museu um dos que eu gostaria de visitar. Sinto-me devastado. Essa perda é muito emblemática.

Para além da perda inestimável, essa tragédia é o retrato do Brasil, uma não-nação que não valoriza sua história, suas riquezas. Não poderia ser mais emblemático acontece em um momento onde todos nossos valores estão esgarçados, onde estamos cada vez mais nos afundando em um obscurantismo que dá medo.

Retrato esse que queima ainda mais a imagem do país e que gera em mim o desejo de que houvesse uma intervenção, sim, mas não militar, essa ansiada por gente que está no fundo do poço do obscurantismo e da violência, mas uma intervenção alienígena que nos declarasse incapazes e tomasse as rédeas dessa não-nação. Mas isso não acontecerá. A História está nas nossas mãos. Então é tempo de luto e reflexão. Aqueles que ainda não despencaram no abismo do obscurantismo e que ainda prezam o saber, a cultura, a história, precisam se mobilizar e salvar esse país de mais um degrau na derrocada rumo ao desastre.

Não sei como, mas é preciso encontrar o caminho...