terça-feira, 21 de agosto de 2012

Fogueira Santa




Todo mundo tem suas fogueiras. São momentos em que tocamos fogo em conceitos, ideias, atitudes, com o objetivo de rompermos com algo que acreditamos nos fazer mal. As fogueiras geralmente são metafóricas, reflexo das fogueiras verdadeiras. As de verdade, pelo que podemos ver na História, geralmente estão associadas a obscurantismo e intolerância. Eu já tive minha fogueira de verdade. Não poderia dizer que foi resultado de intolerância, porque não teria sentido eu ser intolerante comigo mesmo, mas que foi um ato de obscurantismo, isso foi.

Embora talvez meus familiares não concordem muito, pelo fato de eu ser uma pessoa bastante emotiva, sempre fui o mais cético de todos, ou, numa outra leitura, o de menos fé. Algo que me admira bastante nos meus irmãos de fé, em particular meus familiares, são as certezas. Há algum tempo, conversando com um parente, minhas pirações se contrapunham à tranqüilidade de sua fé. Enquanto os cristãos que eu conheço e admiro demonstram uma fé quase desprovida de dúvidas, eu sou uma pessoa quase que atormentada pelas dúvidas. Uma das poucas certezas que eu tenho é que um dia eu morrerei.

Como sempre participei de uma igreja pentecostal, sempre tive meus problemas com o modus faciendi desse tipo de fé. Costumo dizer que sou o mais presbiteriano dos pentecostais. Na minha adolescência, enquanto todos meus familiares eram batizados com o Espírito Santo, incluídos meus irmãos mais novos, eu não. Reconheço que isso não se dava por conta dessa minha falta de fé, ou ceticismo. Lembro-me das reuniões que tínhamos em nossa igreja em que havia um grande mover do Espírito Santo. Eram reuniões muito emotivas, catárticas. No clímax dos cultos, as pessoas pulavam, choravam, passavam mal. No meio daquela muvuca toda, eu me sentia pressionado a fazer o mesmo, afinal, as pessoas iriam concluir que, se eu não estava contagiado pela manifestação do Espírito Santo, algo errado estaria se passando comigo. Então eu me punha a pular, a orar sinceramente, a pedir a manifestação do Espírito Santo em minha vida. E de fato, algo acontecia, mas que eu sempre atribuía à minha manipulação de minhas próprias emoções, uma vez que, enquanto eu estava me acabando naquelas manifestações catárticas, ficava de olho nas pessoas à minha volta para ver se já era hora de parar. Em resumo, uma farsa. Não uma farsa total porque eu estava à procura de uma experiência genuína, mas, enquanto isso não acontecia de fato, eu entrava na onda das outras pessoas ao manipular minhas emoções. Eu nunca duvidava da experiência das outras pessoas, mas, enquanto as outras pessoas tinham uma relação muito imediata com suas crenças, eu tinha mania de complicar tudo ao querer abstrair tudo aquilo, em compreender por a+b. Enfim, um grande obstáculo. Quanto ao batismo com Espírito Santo[1], dentre outras questões que não assimilava bem, eu achava ridícula aquela idéia de falar para as pessoas repetirem “glória! glória! glória!” indefinidamente para, então, falarem em outras línguas. Sem dúvida, era muito ridículo.

Foi quando, num domingo, um pregador vaticinou: “Enquanto você não se livrar de todos os impedimentos, não receberá o batismo com o Espírito Santo!” A lista de “impedimentos” não era muito grande, mas incluía dois itens que muito me interessaram: livros e música “mundanos”. Eureca, era isso! Eu sempre fui amante dos livros e, apesar de ler quase a totalidade dos meus livros a partir de empréstimos de bibliotecas, eu tinha uma meia dúzia deles. Quanto à “música mundana” [2], ao contrário dos livros que meus pais nunca fizeram objeção, eles não aprovavam a audição. Era isso que eu precisava fazer: libertar-me dessas coisas. Naquele domingo, depois do culto, cheguei em casa decidido. Fiz uma pilha com meus livros e minhas partituras de música “mundana” e toquei fogo em tudo.

Recebi o batismo com Espírito Santo por conta disso? É evidente que não. Algum tempo depois me arrependi amargamente por causa daquele ato insano. Perdi algumas preciosidades, como uma coleção que eu havia comprado anos antes, com muito esforço – com dinheiro dado pelos meus pais –, chamada Toque Violão e Guitarra, que era uma coleção de fascículos que ao final deveriam ser encadernados e dois livretos de partitura de música popular brasileira e universal. Os livretos de música tinham harmonizações impecáveis e foram os pilares dos meus conhecimentos harmônicos, obtidos através do meu estudo dessas partituras para tentar dominar o violão, portanto, de um inestimável valor emocional e histórico, por que não? Até tentei encontrar em sebos, bancas de revistas e na editora, edições atrasadas dessa publicação, mas nunca consegui. Uma pena. Uma fogueira estúpida sepultou parte importante de minha história. No tocante aos livros, não me lembro dos quais foram perdidos, com exceção do livro Cimarrom, de Edna Ferber, comprado no Círculo do Livro.



Outra fogueira, dessa vez metafórica, foi resultado de uma viagem. Eu me correspondia com uma garota de Brasília, Macy, que acabou se tornando minha melhor amiga até hoje. Aos 19 anos, depois de quatro anos de correspondência, fui a Brasília conhecê-la. Dentre outros lugares que ela me levou para conhecer, fui ao Vale do Amanhecer, um local esotérico. Fiz mais de uma dezena de fotografias daquele passeio: as esculturas, os locais de culto, as pessoas em transe, fazendo passes, enfim, um rico material assustador para um evangélico mais radical. Nessa época eu estava desempregado e, embora já tivesse passado da época do Tiro de Guerra, não conseguia encontrar emprego.

As pessoas que me visitavam em casa costumavam ver as fotos da viagem. Uma delas, uma irmã da igreja, ao ver as fotos do Vale do Amanhecer, me disse: “Menino, o que é isso? Joga essas fotos fora! Por isso você não encontra emprego!” Eu nunca dei muita importância a esse tipo de raciocínio, mas, naquele momento de desespero, pensei: “que mal faz eu jogar essas fotos fora? De repente eu consigo emprego mesmo!” Joguei as fotos fora (mas, por via das dúvidas, guardei os negativos). Uma semana depois eu estava empregado.

Nunca mais me interessei em revelar as fotos de novo, mas tenho os negativos até hoje. Sabe de uma coisa? Será que ainda não consegui meus objetivos profissionais por causa daqueles negativos? Será que devo jogá-los fora? Ou será que, se eu revelar as fotos novamente, corro o risco de sofrer uma desgraça na minha vida profissional e me ver na Rua da Miséria? Será? Eu, hein? Vade retro!



[1] Na doutrina pentecostal, o batismo com Espírito Santo é um revestimento de poder que se evidencia pelo falar em línguas estranhas, um fenômeno conhecido como glossolalia. Os céticos, cristãos ou ateus, não acreditam na natureza sobrenatural desse fenômeno e há até os que dizem isso não passar de epilepsia. Não vou entrar no mérito já que considero isso uma perda de tempo.
[2] Música que não fosse religiosa ou de concerto (sic).