sábado, 22 de junho de 2019

Grito de Alerta - Gonzaguinha

A Flávia está ouvindo Gonzaguinha. De repente começa a tocar uma música. Ao longo da minha vida, se escutei essa música umas 5 vezes foi muito.

Mas eu sabia a música inteira. Cantei junto.

Voltei mais de 35 anos no tempo, quando era garoto e não ouvia música no rádio porque música ”do mundo” era pecado.

Mas já haviam inventado as partituras musicais e eu tinha uma espetacular coleção de música brasileira impecavelmente arranjada para violão. Foi onde aprendi a tocar violão de forma autodidata.

As músicas eram maravilhosas.

Uma delas era "Grito de alerta”, que depois de solfejar e descobrir eu mesmo a melodia, cantava e tocava violão.

E tantas músicas maravilhosas do nosso cancioneiro aprendi assim. Até os 20 anos, todo meu conhecimento de música popular era quase que inteiramente decorrente da leitura de partituras.

Tanto que, em boa parte das músicas, a letra que eu conhecia eram as notas musicais solfejadas.

sexta-feira, 21 de junho de 2019

A marcha e a mídia

Nunca fui à marcha, nunca gostei, e estava me lembrando do passado, no início dos anos 2000, quando adolescentes do Cifra, um coro jovem que eu regia, iam todos os anos, entusiasmados. Eles ficavam muito felizes e eu, olhando de longe, o único reparo que fazia – de indignação –era o fato de a grande mídia ignorar solenemente o evento. Era uma inequívoca demonstração do desprezo pelos evangélicos.

Nunca gostei da marcha, sempre a considerei desnecessária pelo fato de acreditar que a fé pode - e deve - ser afirmada de outras maneiras. Mas... se as pessoas estavam indo para as ruas, o mínimo que a imprensa deveria fazer era noticiar. Ao contrário, boicotava sistematicamente.

Hoje pela manhã, assisti com um sorriso irônico no rosto a TV Globo fazendo uma cobertura para lá de empolgada do evento.

É... finalmente a "bispa" Sônia venceu: "O Brasil é do Senhor Jesuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuussssssssssssss!!!!!!!!!!!!!!!!!!"

Mas eu ainda fico aqui, cofiando minha barba e, como sempre, olhando tudo isso de forma bem desconfiada. Isso inclui a visita de um presidente da república de extrema-direita, esquizofrênico, que investe pesado em um discurso moralista religioso para arregimentar soldados para sua "guerra cultural" particular.

A conclusão que eu chego é que, quando mais a marcha se aproxima do poder, quanto mais ela atrai todo o tipo de gente oportunista como Bolsonaro e Doria, quanto mais ela é encampada por lideranças evangélicas duvidosas, midiáticas no pior sentido, quanto mais ela cresce e vai se tornando a expressão de uma desejada hegemonia evangélica, menos de Jesus ela é.

Se nos anos 2000 eu já ficava meio desconfiado se Jesus tinha realmente a ver com aquilo, agora então... difícil, hein?

Eu não vi Jesus nas fotos. Eu vi uma multidão de gente – a maioria gente sincera, penso – liderada por uma quadrilha de malfeitores que sabe utilizar bem o aparato midiático e de poder para manter essas pessoas como um grande “rebanho” feliz, mas marcado pela posse mental e roubado, em grande parte, da sua consciência política na medida em que repetem chavões vazios.



segunda-feira, 17 de junho de 2019

Aqui não é favela

Noticiário da TV.
Vargem Grande Paulista.
Peguei o noticiário pela metade, mas parece que os assaltos no bairro, talvez em uma rua específica, estão muito altos. Moradores reféns da violência.
A prefeitura, no típico desrespeito ao cidadão que é o padrão de resposta das autoridades, em vez de ativar a inteligência policial, aumentar as rondas policiais, ou sabe-se lá que outras medidas, resolve dar a “solução” mais porca possível: colocou grandes pedras nos dois extremos da rua.
Além de não resolver o problema porque os bandidos conseguem continuar acessando a rua de motocicleta, os veículos dos moradores não podem chegar até suas casas.
Repórter entrevista um cidadão justamente indignado que faz um apelo ao prefeito. Enfim, chama-o à responsabilidade, à razão, protesta com muito fundamento pelo fato de que a medida porca e desastrosa da prefeitura limita o direito de ir e vir dos moradores da rua. E conclui sua fala:
- Aqui não é favela!
Oi?

domingo, 16 de junho de 2019

Lionel Shriver e a forma

Anos atrás, quando estava na crista da onda, li o livro “Precisamos falar sobre Kevin”. Foi uma das experiências literárias mais agradáveis dos últimos tempos. Além da maneira como a escritora formata a narrativa – cada capítulo é uma carta que a protagonista escreve ao marido rememorando cada detalhe de suas vidas ao longo do tempo, numa tentativa de compreender o que havia acontecido em suas vidas – a prosa da escritora é sempre muito afiada, com um humor muito sagaz, fino e uma crítica mordaz à cultura norte-americana. Confesso que, independente da trama que ela construiu de uma maneira que beirou a perfeição (cujo filme, apesar do imenso sucesso, é um pálido reflexo da força do romance), ler o livro foi delicioso pelo seu aspecto, digamos, formal.

Há muitos anos li uma frase, infelizmente perdida, que acredito ter sido escrita por Eça de Queiroz, onde ele dizia que o verdadeiro amante da literatura a ama pela forma, não pelo conteúdo. Aquela frase, provavelmente parafraseada aqui, causou-me identificação e felicidade imediatas. Superados os meus verdes anos, onde eu lia qualquer coisa que caía nas minhas mãos, hoje minhas escolhas literárias são um pouco mais seletivas (com algumas exceções que concedo aqui e acolá em consideração a quem me indicou), hoje prefiro leituras que, do ponto de vista da forma, da narrativa, da escrita, me encha os olhos, me faça prender o fôlego, palpitar, não pelo desenrolar envolvente dos mistérios e desdobramentos de um “thriller”, mas pela a elegância das palavras, das frases, do o senso de humor que se esconde por trás das sentenças, da polissemia. Por esse motivo, livros herméticos para a maioria das pessoas, como Grandes Sertão-Veredas (Guimarães Rosa) e Ulisses (James Joyce), para citar dos exemplos supremos, representaram para mim ao mesmo tempo desafio e um imenso prazer ao enfrentá-los.

Voltando a Lionel Shriver, nunca li análises a respeito de sua obra, mas o segundo livro dela que estou lendo, Tempo é Dinheiro, por sugestão da Alessandra Correia, independente de onde me leve a história, sinto-me diante novamente de um texto muito rico, desafiador, delicioso de se ler. Nem de longe é um desafio como Guimarães Rosa ou James Joyce, mas possui, para mim, aquela elegância, sutileza, sagacidade e mordacidade que me encantaram em Precisamos falar sobre Kevin.

Taí uma escritora para ser saboreada pelos amantes da literatura.

sábado, 15 de junho de 2019

O brasileiro morista é um caso perdido

Quando começou o show midiático da LavaJato e dos movimentos do impeachment, a minha aflição era muito grande. Eu ficava desesperado ao ver hordas de brasileiros imbecilizados diante da flagrante – para mim – manipulação da realidade. Conhecendo o Brasil que eu conheço, era impossível que aquela unanimidade avassaladora da grande mídia e da República de Curitiba não fosse algo orquestrado. NÃO TINHA COMO! Eu dizia que não precisava ser muito esperto para perceber isso; bastava ter senso crítico mais apurado.

Cheguei a chamar os brasileiros de burros, no que fui duramente criticado por alguns familiares e alguns amigos. Mas, na minha análise, só um nível de burrice muito grande justificaria aquele comportamento tão bovino da grande massa.

Cansei de dizer para meus amigos que o tempo mostraria que eles estavam enganados e vítimas de uma grande manipulação midiática, como sói acontecer no país desde que temos mídia organizada.

Agora com esses vazamentos, está mais do que provado que minha leitura estava correta e que a maioria dos brasileiros caiu no conto do vigário.

O que deveriam fazer esses brasileiros? Reconhecer e tentarem ser mais espertos, mais críticos, mais céticos da próxima vez.

Mas o que estou vendo acontecer é algo totalmente incompreensível para mim: uma grande parte dos brasileiros entrou em um estado catatônico de negação e está fazendo todo tipo de ginástica para negar as evidências que os vazamentos demonstram. Sem falar que simplesmente ignoram quaisquer princípios éticos para manterem a defesa do indefensável e, cacete!, se julgarem moralmente superiores a quem nunca caiu nesse conto porque eles, sim, estariam lutando contra a corrupção e imoralidade e quem é crítico e não aceita ser manipulado estaria defendendo criminosos.

Olha, vou falar uma coisa, viu? Definitivamente, uma parcela dos brasileiros não tem solução. Se não conseguirem aprender dessa vez, meu diagnóstico de alguns anos atrás quando os chamei de burros está mais do que confirmado.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Sobre fé e falta dela

Ontem recebi em casa um motoqueiro que entregava um livro da TAG, clube que a Flávia participa.
Meu nome, Obadias de Deus, inspirou uma conversa com ele. Quis saber se eu era evangélico.
Respondi que sim, de tradição evangélica.
Tradição? Mas você não frequenta a igreja?
Não mais.
Ele quis saber o motivo.
Fiz uma pequena digressão explicando que, apesar de ser de uma família tradicionalmente evangélica, de pastores inclusive, sempre tive um perfil mais reflexivo, contestador que provocaram em mim, ao longo do tempo, um descolamento das crenças dogmáticas religiosas. Em algum momento eu já não via mais muito sentido frequentar uma igreja. Então deixei de frequentar.
Ele então me contou sua experiência. Disse que também frequentava a igreja evangélica, mas que se afastou. Fez um pequeno resumo da sua história, basicamente filho de um presidiário, o que na época da sua infância era um estigma muito grande. Hoje não é mais, disse ele. Enfim, perdeu o pai e a mãe quando ainda era garoto. E anos mais tarde, perdeu também o irmão mais velho. Foi criado pelos tios.
Seu relato sugeriu que ele perdeu os pais e o irmão para o crime. Uma história muito triste.
Em certo momento ele disse que se questionava que pecado ele teria cometido para merecer isso. Eu lhe disse que não se tratava de pecado nenhum. Que a vida castiga muitos de nós, alguns bem mais que outros, o caso dele, infelizmente.
Ele disse que apesar de ver um monte de problemas na igreja, ainda acreditava em Deus. Eu lhe disse que o importante é que cada um viva bem resolvido com sua fé. Ou com a falta dela.
Ele disse também que acredita que, se não fosse o convívio religioso, teria se perdido também. Eu lhe disse então que essa é uma das características mais importantes e positivas de uma fé religiosa e do cristianismo em particular: o senso de comunidade, onde as pessoas cuidam uma das outras e, de alguma forma, se salvam da destruição.
Ele disse então que lamentava muito pelos seus pais que tiveram o fim que tiveram, que eles pagaram pelo que fizeram. Ele chegou a dizer que o que fazemos, pagamos aqui mesmo. Eu não discordei e acrescentei que o que acontece conosco muitas vezes é resultado das escolhas que fazemos.
O papo estava bom e ele resolveu interromper porque havia outras entregas a fazer. Não deu tempo de eu concluir meu raciocínio que era: mas mesmo que nossas tragédias pareçam ser apenas resultados de nossas más escolhas, muitas vezes apanhamos tanto da vida que não nos resta outra alternativa a não ser fazermos muita merda. Talvez numa sugestão para que ele fosse um pouco mais condescendente com seus pais, afinal, mesmo aquelas pessoas que fazem muita merda na vida, muitas vezes estão errando tentando fazer a coisa certa. Mas infelizmente não deu tempo.
Ele me deu um abraço, subiu na sua moto e foi para sua próxima entrega.

Em mim, além do sentimento de solidariedade com aquela história triste, ficou ressoando o seguinte:

É sempre um grande desafio aceitarmos as tragédias da vida
Se a fé nos ajuda a superar essas tragédias e nos tornarmos pessoas melhores, mais humanas, melhor resolvidas, ela é boa
Se a fé atrapalha ou nos faz insensíveis às dores do outro, seja pelo motivo que for, se nos faz sentir melhores que o outro, ela é má
O mesmo se aplica à falta de fé
Não vejo mérito algum em ter ou não ter fé
Se há algum mérito nisso tudo é o que fazemos de bom da nossa fé ou da falta dela
Isso sim, é o que importa.

sábado, 8 de junho de 2019

Bauhaus-Brasilis

Estava vendo um programa aqui com a Flavia, enquanto almoçava, sobre os 100 anos da Bauhaus (Casa de Construção), escola de artes, design e arquitetura de vanguarda na Alemanha. Daí comentei com a Flávia: - A Alemanha, na primeira metade do Século XX, influenciou fortemente o pensamento ocidental nas artes, , na música, na filosofia, na cultura em geral... É impressionante como um povo tão ilustrado tenha caído na roubada do nazismo. Vendo por essa perspectiva, eu até que desculpo os brasileiros e sua viagem lisérgica bolsonariana... Se nem os alemães escaparam de uma alucinação coletiva, o que dizer de um povo que se caracteriza pela baixa instrução, pelo desapego à leitura, ao conhecimento, pela crendice? Se pensarmos bem, considerando nosso perfil, até que não estamos fazendo muita merda, hein? kkkkkkkk

sexta-feira, 7 de junho de 2019

Lua, o mito, o monstro e o Ciro

Lula provavelmente passará para a História como o maior estadista que esse país já teve. A sua mística gigantesca é o que explica de um lado a devoção cega e de outro o ódio mortal que lhe são direcionados. É difícil enxergar Lula sem ser afetado profundamente por sua mística. O que, de certa forma, é uma pena.

Em que pese seu destempero e seus problemas, o que eu gosto em Ciro Gomes é que ele consegue enxergar Lula como um ser humano e suas contradições, quase sem se deixar influenciar, para o bem e para o mal, pelo magnetismo de sua mística.

sábado, 1 de junho de 2019

Lei da selva

Confesso que gosto de observar o comportamento das pessoas no trânsito. É no espaço público, especificamente no trânsito, que as pessoas realmente mostram quem são. Porque a posse de um automóvel tem o impressionante poder de nos desnudar. Basta estarmos na direção de um veículo e, para uma grande parcela de nós, é como se nos tornássemos todos-poderosos e tivéssemos salvo-conduto para submeter todas as demais pessoas aos nossos caprichos.

Existe uma regra básica no trânsito que diz que o maior dá preferência e protege o menor. Logo, um caminhão se preocuparia em proteger um carro de passeio e todos os demais veículos menores e pedestres; um veículo de passeio seria responsável por proteger motos, bicicletas e pedestres; e assim por diante. Mas, além desse fato inacreditável de que as pessoas se sentem poderosas e o pior delas se externa quando estão ao volante, ainda existe a questão da “justiça com as próprias mãos”. Fico pensando se o motorista de caminhão que tenta sobreviver com um salário de fome não se sente vingado quando quase atropela um bacana metido a besta em seu importado...

Essa semana eu interagi com 2 episódios no trânsito e soube de um terceiro que ilustram bem esses comportamentos. Vou narrá-los do mais recente para o mais antigo.

O PASSAMENTO

Há alguns dias, na escola em que meu caçula estuda, um pai de aluna estacionou seu carro na fila em frente ao colégio na hora da saída. Não gosto de ir naquele horário porque é complicado. Espero a poeira baixar e depois pego o Felipe que fica na escola conversando com seus colegas ou lendo seu livro. Dizem que o pai estacionou antes da faixa amarela, em frente a uma casa vizinha da escola. A dona da casa chegou instantes depois e buzinou solicitando que ele liberasse a entrada do portão. Contam que ele irritado, começou a xingar a mulher. O enteado dela, de 18 anos, vendo sua madrasta sendo xingada, não pensou duas vezes: armado de um pedaço de tábua, começou a surrar o veículo, pobrezinho, que não tinha nada a ver com a história. Mas sabe como é, né? Xinga meu pai de coxinha, minha mãe de empadinha, mas não encosta a mão no meu carro!!! O “cidadão de bem”, ferido no seu orgulho, fez o que todo “cidadão de bem” desarmado de uma arma de fogo mas armado de seu possante faria: jogou o carro em cima do rapaz, de ré, quase atropelando-o. Saiu, deu a volta no quarteirão, passou de novo pelo mesmo local e parou na esquina, mais adiante. Desceu do carro e, falando ao celular, esperou que sua filha saísse. O rapazote, cujo sangue ainda não tinha se deslocado dos olhos e voltado para o juízo de onde nunca deveria ter saído, continuou exercendo seu “direito” de não pensar duas vezes e avançou pra cima do cidadão bocudo. O cidadão, mais encorpado, grudou na mão desarmada do rapaz, deixando a outra livre para voar para onde quisesse.

E a mão armada com pedaço de tábua voou, claro. Resolver essas querelas com violência e xingamentos é coisa de gente pouco evoluída. Então seria bem triste (mas engraçado) se a tábua encontrasse descanso nas fuças do estúpido cidadão. Mas não... nessas horas, às vezes, aparece uma boa alma disposta a se sacrificar pelo bem da humanidade. Foi o que aconteceu nesse caso. O porteiro, meu amigo Anderson, assistindo o desenrolar dos fatos de forma privilegiada (juntamente com os demais pais assustados), ao perceber que os finalmentes não seriam nada amigáveis, tentou puxar o pai para dentro da escola, justamente no momento em que a tábua fazia sua derradeira (saberemos logo a seguir) e precisa viagem com aterrissagem nas fuças. E, de fato, a tábua se espatifou nas fuças... do Anderson e partiu daquela para melhor! Mas vejam que injustiça: nas fuças erradas! E acabou sobrando também para o infeliz dos óculos do Anderson que foram arremessados vários metros, mas como é sangue ruim, saíram ilesos do acidente (quem os vê com sua aparente fragilidade nem acredita que escapariam incólume de tamanha violência).

Feito um gêiser, o sangue lavou a cara do Anderson. Final da história: a polícia só apareceu 2 h depois, o garoto vizinho pediu mil desculpas ao Anderson porque a ideia era abater o cidadão, não ele, não sei que fim levou o cidadão marrudo e pouco me interessa, e a polícia disse ao Anderson que deveria ir à delegacia prestar queixa, o que ele evidentemente não fez porque iria perder, no mínimo, mais umas 2 horas. Aliás, a forma totalmente vazia de consideração com que somos tratados pela autoridade policial quando nos envolvemos em episódios de violência parece-me algo inaceitável, mas vou ficando por aqui mesmo.

Depois fiquei sabendo que a família ao lado da escola se mudou no dia seguinte ao entrevero, o que me deixou “semi” consternado. Mas daí me explicaram que eles eram inquilinos na casa e vizinhos problemáticos. Logo, a mudança repentina deles gerou um certo alívio na escola. Que coisa...

A TRAVESSIA

Um dia antes do passamento do pedaço de tábua, voltando sabe-se lá de onde, resolvi deixar o carro no lava-rápido porque estava nojento. Descia a Caminho do Pilar, perto de casa, passando em frente à Filinto de Almeida que desemboca na Caminho do Pilar. Havia bastante movimento e, metros à frente, depois da Filinto de Almeida, há uma faixa de pedestres. Notei que havia uma garota parada na faixa. Obviamente que é muito difícil os incivilizados motoristas darem passagem a pedestres naquela faixa. Eu então tratei de diminuir bastante minha velocidade e já estava prestes para dar sinal com o farol para a garota atravessar a rua e, de quebra, sinalizar para o motorista no sentido contrário fazer a civilizada gentileza de esperar a garota parar. No que eu diminuí a velocidade, digamos que de 30 para 15 Km/h, um carro que vinha saindo da Filinto de Almeida entrou na minha lateral. Eu acho que a pessoa que dirigia viu que eu vinha descendo, numa fração de segundos calculou o tempo que eu gastaria passando, olhou para o lado contrário, viu que dava tempo, entrou com tudo. Só que eu diminuí repentinamente a velocidade e quando a pessoa voltou a olhar para meu carro era tarde demais. Ploft! Essa é minha teoria.

Parei. Fiz um sinal com as mãos enquanto olhava pelo retrovisor... WTF? O trânsito parou nos dois sentidos. Nessa altura dos acontecimentos, Inês já estava prestes a ser enterrada, fui cuidar do que era realmente importante. Olhei para a garota e lhe disse: “pode atravessar!” Ela titubeou por uns instantes, um motoqueiro aproveitou o titubeio e passou como um raio entre os carros e a garota, superado o perigo do motoqueiro, ela resolveu atravessar. Foi o tempo para o trânsito dar uma desatravancada. O veículo que se viu obrigado a parar antes da faixa, não por conta da garota mas porque o carro “abalroou” o meu (esse termo sempre me pareceu horrível) tinha ficado uns  instantes atravessado na rua, se aproximou de mim no sentido contrário, o cidadão que o dirigia abaixou o vidro e torpedeou:
- Porra, mano, você fez esse furduncio todo só por causa dessa mina?
Confesso que fui pego de surpresa, não consegui raciocinar bem na hora e só me ocorreu dizer o seguinte:
- Cara, o trânsito está parado! Deixa a mina atravessar na faixa!
A garota que ainda terminava de atravessar em frente meu carro me olhou com um certo olhar de agradecimento e seguiu sua vida. O maluco motorista acelerou e sumiu, xingando-me.
Superado o idiota do sentido contrário, pensei com meus botões: agora só falta essa louca me xingar também! Já tinha visto que era uma mulher que dirigia o outro veículo. Estacionei mais adiante, ela estacionou próximo, era um carro japonês novo...
Veio uma japinha toda arrumada e perfumada (o crédito do perfume deve ser dado à minha imaginação), toda preocupada:
- Desculpa, moço... Amassou seu carro? Eu estava com pressa!
Olhei e percebi que ela tinha se chocado contra a roda do veículo (havia sinal do choque no pneu) e sobrou apenas um discreto risco na lataria.
- Ah... deu uma riscadinha aqui, mas não é nada!
- Ai... desculpe.
- Sem problemas! Vai em paz!
Ela me estendeu a mão, demos um aperto de mão e ela voltou toda encolhida no seu salto para o veículo, com minha bênção, em direção à superação do seu atraso.

A SELVA

No dia anterior voltava do trabalho da Flávia pela Thales dos Santos Freire, que a propósito dá na Caminho do Pilar, no sentido contrário. Eu a tinha deixado no trabalho como faço quase todos os dias. Naquele horário da manhã, no trecho próximo ao cruzamento com a Pereira Barreto, o trânsito é muito pesado. Quando está muito complicado, eu entro à direita e depois, lá embaixo, volto à esquerda, e retomo à Thales dos Santos Freire no seu último semáforo antes da Pereira Barreto.

Estava uma completa muvuca no semáforo, tanto que eu era o segundo na fila e quando o semáforo abriu pela última vez antes de eu poder entrar, somente o carro que estava na minha frente passou (o cara era lerdinho mesmo). Esperei minha vez. Enfim, quase sempre vigora a lei da selva. O semáforo abriu, os carros fechando o cruzamento ainda estavam parados até que começaram a andar. Tinha um bem na minha frente. Deixei passar. O outro aproveitou a deixa e fez “trenzinho” atrás. Deixei esse também. O terceiro também já foi indo como quem não queria nada. Aí nãããooo!!! Pessoal é folgado demais! Não deixei passar.  Forcei um pouco a entrada e bloqueei a passagem do carro. A pessoa ficou extremamente irritada. Ou então sua mão grudou de repente na buzina. Sei lá. E meu carro tem um problema: se alguém buzina de forma estúpida numa situação dessas, de repente ele fica bastante lento. É meu carro, não sou eu. Por favor...

Enfim, entrei na rua e o outro carro grudou atrás do meu. Beleza. Lá na frente, já perto do semáforo, mudei para a direita porque ia manter a direita mais adiante mesmo e o semáforo estava fechado. O carro emparelhou comigo, uma SUV, e a pessoa começou a abaixar o vidro. Pensei: eu mereço, viu? Mas resolvi não brigar. Assim que o vidro baixou completamente, eu cumprimentei, sorridente:
- Bom diaaaaaaaaa!
Era uma distinta senhora, elegantemente vestida:
- Pra que isso? Essa hora da manhã???
- Isso o quê?
- Pra que me fechar daquele jeito? Quase que bati o carro!
Mentira, estávamos bem devagar.
- Ué, você não viu que o semáforo já tinha fechado pra você?
- Não senhor! Você passou no vermelho!
- Eeeuuuuuuuu?
- Sim, senhor!
Bem, ficamos naquela alguns segundos até que eu disse: “ok, ok, passei no vermelho, não vamos brigar por isso!” Eu não iria discutir mais com aquela mulher.
Daí ela começou a me dar lição de moral!
- Você pensa que só você está atrasado? Blá blá blá!!!
Juro que eu fiquei de bobeira. Na hora eu pensei em dizer: não, eu moro aqui do lado e estou totalmente sem pressa. Mas não disse. E me arrependi depois, porque seria legal ver a cara da cidadã mais enfurecida ainda. Bem, pensando bem, foi melhor assim...
Juro também que, na hora, por um segundo, quase acreditei que a mulher tinha achado que eu tinha passado no vermelho mesmo.
No mesmo dia, mais tarde, quando fui buscar a Flavia, não peguei a rua lateral e fui pela Thales do Santos Freire, somente para verificar o ponto de observação do semáforo, para ver se a mulher tinha avançado tanto no cruzamento a ponto de não ver que o semáforo já tinha fechado para ela.
Infelizmente não era o caso: ela tinha total condição de ver o semáforo fechando. Ou a mulher surtou ou era muito cara de pau mesmo.
Eu, hein?