terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Música boa, ruim e preconceito

Diálogo com o Felipe enquanto íamos de carro na sua aula de piano e a música tocava no carro:
- Meu Deus, que piano é esse, pai? Não se parece com Chopin. Parece música de morte.
- É música moderna, Felipe – simplifiquei.
- Moderna? Mais nem rico gosta disso (sic). Isso não é moderno! Chopin que é moderno (kkkk). Até Brahms, que eu não gosto, é melhor que isso.
Alguns minutos depois:
- Isso parece música de terror, de Harry Potter.
Mais tarde, quando o pianista estava num improviso, ele disse:
- Não achei bonito, mas ele toca rápido, igual Chopin. Ou Beethoven.
Daqui alguns anos, quando sua exposição a esse tipo de música for maior e ele tiver ampliado seus horizontes pianísticos, caso continue no seu interesse em tocar o instrumento, irá mudar sua forma de ver essa música.
Isso nos leva à questão importante, e que se aplica a mim também (eu procuro sempre ter em mente isso): a gente geralmente não gosta do que não conhece. A rigor, não existe música ruim: existe música que eu não gosto.
Aliás, nas últimas semanas tive uma experiência bem interessante (que sempre aconteceu): escrevi 6 arranjos orquestrais de músicas pop. Todas músicas de artistas que eu não ouço, como Paula Fernandes, alguns que eu ouço ocasionalmente, como Coldplay.
Para se fazer um arranjo, é preciso ouvir várias vezes a mesma música para captar as ideias principais. Nesse exercício, acabamos reconhecendo a beleza de muitas ideias que por vezes rejeitamos e não utilizamos por causa da barreira estética. No final das contas, partir daquelas ideias e acrescentar meu “DNA musical” a elas foi um exercício muito legal e me permitiu, mais uma vez, perceber que o mundo está cheio de ideias boas e maravilhosas, basta não sermos preconceituosos para reconhece-las, dialogarmos com elas e expandirmos nossos horizontes.

A música que tocava no carro: https://www.youtube.com/watch?v=rmsgasTxOKc&feature=share

Redes de cooperação humana

Quando vamos avaliar as redes de cooperação humanas, tudo depende do parâmetro e do ponto de vista que adotamos. Julgamos o Egito dos faraós em termos de produção, nutrição, ou talvez de harmonia social? Focalizamos a aristocracia, os camponeses simples ou os porcos e crocodilos? A história não é uma narrativa única, mas milhares de narrativas alternativas. Sempre que escolhemos contar uma delas, escolhemos também silenciar outras. (Yuval Noah Arari)

Contrato da modernidade

A modernidade é um contrato. Todos nós aderimos a ele no dia em que nascemos, e ele regula nossa vida até o dia em que morremos. Pouquíssimos entre nós são capazes de rescindir ou transcendê-lo. Esse contrato configura nossa comida, nossos empregos e nossos sonhos; ele decide onde moramos, quem amamos e como morremos.
À primeira vista, a modernidade parece ser um contrato extremamente complicado, por isso poucos tentam compreender no que exatamente se inscreveram. É como se você tivesse baixado algum software e fosse solicitado a assinar um contrato com dezenas de páginas de juridiquês; você dá uma olhada nele, rola imediatamente para a última página, tica em “concordo” e esquece o assunto. Mas a modernidade, de fato, é um contrato surpreendentemente simples. O contrato inteiro pode ser resumido numa única frase: humanos concordam em abrir mão de significado em troca de poder.
Até os tempos modernos, a maioria das culturas acreditava que os humanos desempenham um papel em algum grande plano cósmico. O plano foi concebido pelos deuses onipotentes, ou pelas eternas leis da natureza, e o gênero humano não podia mudá-lo. O plano cósmico dava significado à vida humana, mas também restringia o poder humano. Os humanos assemelhavam-se muito a atores num palco. O roteiro emprestava significado a cada palavra, cada lágrima e cada gesto — porém restringia e limitava seu desempenho. Hamlet não é capaz de assassinar Claúdio no primeiro ato ou de deixar a Dinamarca e ir para um eremitério na Índia. Shakespeare não o permitiria. Da mesma forma, os humanos não podem viver para sempre, não podem escapar a todas as doenças e não podem agir como quiserem. Não está no roteiro.
Em troca de abrir mão do poder, os humanos pré-modernos acreditavam que suas vidas ganhavam significado. Realmente importava se eles se portavam com bravura no campo de batalha, se apoiavam o rei legítimo, se consumiam alimentos proibidos no desjejum ou se tinham um caso com a vizinha. Isso suscitava alguns inconvenientes, mas dava aos humanos proteção psicológica contra desastres. Se algo terrível acontecia — como guerra, peste ou seca —, as pessoas se consolavam dizendo: “Todos nós desempenhamos um papel em algum grande drama cósmico, concebido pelos deuses, ou pelas leis da natureza. Não estamos a par do roteiro, no entanto podemos estar seguros de que tudo acontece com algum propósito. Mesmo as terríveis guerra, peste e seca fazem parte do esquema maior. Além disso, podemos contar com o dramaturgo de que sua história terá um final feliz.
Assim, até a guerra, a peste e a seca vão resultar no que é melhor — se não aqui e agora, então no pós-vida”. A cultura moderna rejeita a crença num grande plano cósmico. Não somos atores em qualquer drama maior do que a vida. A vida não tem roteiro, nem dramaturgo, nem diretor, nem produtor — tampouco significado. Até onde chega nosso melhor entendimento científico, o Universo é um processo cego e sem propósito, repleto de som e de fúria, mas sem significado algum. Ao longo de nossa estada infinitesimalmente breve no minúsculo cisco que é nosso planeta, nós nos pavoneamos e agitamos durante uma hora no palco e, depois, nada mais se ouve.
Como não há roteiro, e como os humanos não desempenham nenhum papel em nenhum grande drama, coisas terríveis podem nos assolar, e poder algum virá para nos salvar ou para dar significado a nosso sofrimento. Não haverá um final feliz, ou um final ruim, ou nenhum final. As coisas simplesmente acontecem, uma após a outra. O mundo moderno não acredita em propósitos, apenas em causas. Se existe um mote para a modernidade, ele é: “Coisas ruins acontecem”.
Por outro lado, se coisas ruins simplesmente acontecem, sem nenhuma ligação com um roteiro ou um propósito, então tampouco os humanos estão limitados a algum papel predeterminado. Podemos fazer qualquer coisa que queiramos, contanto que encontremos um meio de fazê-la. Não somos constrangidos por nada, a não sr por nossa própria ignorância. Pragas e secas 200não têm significado cósmico — mas nós podemos erradicá-las. Guerras não são um mal necessário no caminho para um futuro melhor — mas nós podemos fazer a paz. Nenhum paraíso nos aguarda após a morte — mas podemos criar um paraíso aqui na Terra e viver nele para sempre, desde que consigamos superar algumas dificuldades técnicas. Se investirmos dinheiro em pesquisas, as descobertas científicas irão acelerar o progresso tecnológico. Novas tecnologias vão alimentar o crescimento econômico, e uma economia em crescimento pode destinar ainda mais dinheiro à pesquisa. Cada década que passar poderemos usufruir de mais alimento, de veículos mais rápidos e de medicamentos mais eficazes. Um dia nosso conhecimento será tão vasto e nossa tecnologia tão avançada que conseguiremos destilar o elixir da juventude eterna, o elixir da felicidade verdadeira e qualquer outra droga que possamos vir a desejar — e nenhum deus irá nos deter.
Portanto, o trato da modernidade oferece ao homem uma enorme tentação, aliada a uma ameaça colossal. A onipotência está diante de nós, quase ao nosso alcance, mas debaixo de nós se escancara o abismo do nada total. No nível prático, a vida moderna consiste numa constante busca do poder num universo destituído de significado. A cultura moderna é a mais poderosa da história e está incessantemente pesquisando, inventando, descobrindo e crescendo. Ao mesmo tempo, é assolada por mais angústia existencial do quequalquer cultura anterior.
(Yuval Noah Harari)

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Tia

Marlene estava cansada. Exausta. Queria sumir. Andar, andar e andar. Sem parar. Sem olhar para trás. Sem destino. O fardo lhe era muito pesado.
Mas, como sempre, estava restrita àquelas paredes, àqueles contornos assumidos tanto tempo antes. Àquela prisão.
Naquela sucessão de dias, aquele era mais um dia interminável. Estava sentada cuidando de uma atividade manual qualquer, tão absorta, que não se deu conta de que sua tia viera para uma visita surpresa. Estava de passagem mesmo. Bateu na porta algumas vezes depois que a campainha respondeu com um silêncio quando pressionada e, depois de algumas tentativas, desistiu. Não queria ser incômoda. Ou talvez não houvesse ninguém em casa mesmo. E desceu as escadas para ganhar a rua novamente.
Foi quando Marlene teve um estalo e correu para a janela a tempo de ver a tia entrando em um táxi.
- Tia! Tiaaaa!!!
Mas o táxi já partira deixando uma poeira de cascalho. Como que tomada de um frenesi, subiu no par de tamancos esquecido em algum canto da cozinha, pegou seu celular inseparável e, sem se importar no vestido curto e puído, desceu as escadas como um raio, saltando os degraus. Quando chegou embaixo, o táxi já ia longe.
Mas, sem saber o porquê, saiu como uma louca, longos cabelos desgrenhados ao vento, perseguindo o táxi:
- Tia! Tiaaaa!!!
O táxi subiu ladeiras, desceu ruas, cruzou avenidas, passou por bairros inteiros, parou em semáforos, quando Marlene tinha a impressão de que conseguiria alcançá-lo, partiu mais lépido que antes, até chegar a uma escola do outro lado da cidade, quase no ocaso, de onde crianças saíam para encontrar seus pais sorridentes.
A tia desceu e não pode conter o espanto ao ver se aproximar, curvada, com meio palmo de língua para fora, quase que totalmente sem ar, Marlene:
- Tia, eu tava em casa!
Explicadas as circunstâncias do desencontro, ela disse:
- Tia, posso passar uns dias na sua casa? Acho que vou explodir.
- Claro...
Tomaram outro táxi, dessa vez em direção à casa da tia.
Foi então que Marlene viu o recado do seu filho no whatsapp:
- Mãe, o que aconteceu? Você saiu correndo do nada! Você me assustou.
Ela se limitou a responder:
- Filho, avisa seu pai que vou passar uns dias na casa da tia.
Quase instantaneamente depois de entrarem no apartamento, fizeram amor.

Estão juntas há dois anos.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Nome da minha memória visual: Dory.

Flavia Santos está assistindo uma série e eu lhe disse:
- Conheço essa atriz!
Mas não me lembrava de onde. Ela pesquisou no Google e viu que ela tinha trabalhado no Breaking Bad.
- isso mesmo! lembra que era a ********? (spoiler bloqueado kkkk)
Ela se lembrou.
Ainda fiz uma piadinha:
- Jamais me esqueço de um rosto feminino!
Alguns minutos mais tarde, em uma nova cena, eu lhe disse:
- Peraí, essa atriz eu também conheço!
- Ué, mas é aquela que você acabou de falar!
- Qual?
- a do Breaking Bad!
- Putz, é mesmo!