terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

Contrato da modernidade

A modernidade é um contrato. Todos nós aderimos a ele no dia em que nascemos, e ele regula nossa vida até o dia em que morremos. Pouquíssimos entre nós são capazes de rescindir ou transcendê-lo. Esse contrato configura nossa comida, nossos empregos e nossos sonhos; ele decide onde moramos, quem amamos e como morremos.
À primeira vista, a modernidade parece ser um contrato extremamente complicado, por isso poucos tentam compreender no que exatamente se inscreveram. É como se você tivesse baixado algum software e fosse solicitado a assinar um contrato com dezenas de páginas de juridiquês; você dá uma olhada nele, rola imediatamente para a última página, tica em “concordo” e esquece o assunto. Mas a modernidade, de fato, é um contrato surpreendentemente simples. O contrato inteiro pode ser resumido numa única frase: humanos concordam em abrir mão de significado em troca de poder.
Até os tempos modernos, a maioria das culturas acreditava que os humanos desempenham um papel em algum grande plano cósmico. O plano foi concebido pelos deuses onipotentes, ou pelas eternas leis da natureza, e o gênero humano não podia mudá-lo. O plano cósmico dava significado à vida humana, mas também restringia o poder humano. Os humanos assemelhavam-se muito a atores num palco. O roteiro emprestava significado a cada palavra, cada lágrima e cada gesto — porém restringia e limitava seu desempenho. Hamlet não é capaz de assassinar Claúdio no primeiro ato ou de deixar a Dinamarca e ir para um eremitério na Índia. Shakespeare não o permitiria. Da mesma forma, os humanos não podem viver para sempre, não podem escapar a todas as doenças e não podem agir como quiserem. Não está no roteiro.
Em troca de abrir mão do poder, os humanos pré-modernos acreditavam que suas vidas ganhavam significado. Realmente importava se eles se portavam com bravura no campo de batalha, se apoiavam o rei legítimo, se consumiam alimentos proibidos no desjejum ou se tinham um caso com a vizinha. Isso suscitava alguns inconvenientes, mas dava aos humanos proteção psicológica contra desastres. Se algo terrível acontecia — como guerra, peste ou seca —, as pessoas se consolavam dizendo: “Todos nós desempenhamos um papel em algum grande drama cósmico, concebido pelos deuses, ou pelas leis da natureza. Não estamos a par do roteiro, no entanto podemos estar seguros de que tudo acontece com algum propósito. Mesmo as terríveis guerra, peste e seca fazem parte do esquema maior. Além disso, podemos contar com o dramaturgo de que sua história terá um final feliz.
Assim, até a guerra, a peste e a seca vão resultar no que é melhor — se não aqui e agora, então no pós-vida”. A cultura moderna rejeita a crença num grande plano cósmico. Não somos atores em qualquer drama maior do que a vida. A vida não tem roteiro, nem dramaturgo, nem diretor, nem produtor — tampouco significado. Até onde chega nosso melhor entendimento científico, o Universo é um processo cego e sem propósito, repleto de som e de fúria, mas sem significado algum. Ao longo de nossa estada infinitesimalmente breve no minúsculo cisco que é nosso planeta, nós nos pavoneamos e agitamos durante uma hora no palco e, depois, nada mais se ouve.
Como não há roteiro, e como os humanos não desempenham nenhum papel em nenhum grande drama, coisas terríveis podem nos assolar, e poder algum virá para nos salvar ou para dar significado a nosso sofrimento. Não haverá um final feliz, ou um final ruim, ou nenhum final. As coisas simplesmente acontecem, uma após a outra. O mundo moderno não acredita em propósitos, apenas em causas. Se existe um mote para a modernidade, ele é: “Coisas ruins acontecem”.
Por outro lado, se coisas ruins simplesmente acontecem, sem nenhuma ligação com um roteiro ou um propósito, então tampouco os humanos estão limitados a algum papel predeterminado. Podemos fazer qualquer coisa que queiramos, contanto que encontremos um meio de fazê-la. Não somos constrangidos por nada, a não sr por nossa própria ignorância. Pragas e secas 200não têm significado cósmico — mas nós podemos erradicá-las. Guerras não são um mal necessário no caminho para um futuro melhor — mas nós podemos fazer a paz. Nenhum paraíso nos aguarda após a morte — mas podemos criar um paraíso aqui na Terra e viver nele para sempre, desde que consigamos superar algumas dificuldades técnicas. Se investirmos dinheiro em pesquisas, as descobertas científicas irão acelerar o progresso tecnológico. Novas tecnologias vão alimentar o crescimento econômico, e uma economia em crescimento pode destinar ainda mais dinheiro à pesquisa. Cada década que passar poderemos usufruir de mais alimento, de veículos mais rápidos e de medicamentos mais eficazes. Um dia nosso conhecimento será tão vasto e nossa tecnologia tão avançada que conseguiremos destilar o elixir da juventude eterna, o elixir da felicidade verdadeira e qualquer outra droga que possamos vir a desejar — e nenhum deus irá nos deter.
Portanto, o trato da modernidade oferece ao homem uma enorme tentação, aliada a uma ameaça colossal. A onipotência está diante de nós, quase ao nosso alcance, mas debaixo de nós se escancara o abismo do nada total. No nível prático, a vida moderna consiste numa constante busca do poder num universo destituído de significado. A cultura moderna é a mais poderosa da história e está incessantemente pesquisando, inventando, descobrindo e crescendo. Ao mesmo tempo, é assolada por mais angústia existencial do quequalquer cultura anterior.
(Yuval Noah Harari)

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