Os porquíveros
Setembro de 2014. O mundo não havia acabado em 2012, para
desespero de alguns, a vida na Terra continuava aquela mesmice chata de sempre,
judeus e palestinos se matando, ricos explorando pobres, gente brigando em vez
de se amar, enfim, até que, numa tarde típica de setembro, o inacreditável
acontece: cai uma capsula do céu. Em São Francisco. Mais especificamente em
Castro. Talvez tão impressionante tanto quanto a queda inesperada é o fato de
cair em uma região metropolitana dos EUA. Por que não no quintal da minha casa,
na cabeça daquele vizinho chato e imoral ou no meio do deserto do Saara? Bem, a
Providência sabe o que faz.
Imediatamente a Nasa entra no circuito e descobre ser uma
cápsula alienígena. Meses de estudos e descobrem que a cápsula é um
engenhosíssimo aparato movido a energia estelar que contém informações de um
minúsculo planeta da constelação de Alfa Centauro, planeta tão minúsculo que
nossos mais potentes telescópios não foram capazes de detectá-lo. O aparato
poderia ser ligado depois de pressionado 10 segundos e 24 centésimos e exibia
um monte de informações em código binário. Anos de pesquisa com
seus melhores cérebros e a Nasa consegue decifrar o conteúdo da cápsula que, em
resumo, contém informações sobre o planeta e sobre sua cultura. Daí, o mais
impressionante: o planeta é habitado por seres vivos inteligentes, humanoides e
possui um ecossistema muito parecido com o da Terra. Tanto que os terráqueos
resolvem batizá-lo de Nova Gaia. Por fim, descobrem que os novagaianos, muito
mais avançados cientificamente que nós, estão convidando os terráqueos, por
meio de um representante, para conhecer seu planeta. Simplificando, os
novagaianos passaram uma série de instruções que resultavam no envio de uma
mensagem intergaláctica que, uma vez recebida por eles em questão de horas,
implicaria no envio à Terra de um veículo intergalático que, por questões que a
ciência deles ainda não resolvera, comportaria apenas um passageiro.
Como tudo nessa história é fabuloso, eles resolvem mandar um
cientista da Nasa, brasileiro! Brasileiro? Pois é, o Joãozinho. A argumentação
é que, por ser um povo muito sociável, que teoricamente se adapta em qualquer situação,
o perfil do brasileiro era o mais indicado. Na realidade, apesar de brilhante,
o cientista não passava de um trollador, do tipo que perde o amigo mas não
perde a piada. E a Nasa já meio de saco cheio dele – inclusive já havia quem se
demitira da Nasa, cientistas até mais brilhantes que ele, por conta do seu
perfil trollador, enfim, um cara inconsequente – resolvera se livrar dele: Já
que os norte-americanos estavam receosos da aventura interplanetária não dar
muito certo, se fosse para queimar alguém, que fosse o inconveniente
brasileiro. A lá se foi nosso Joãozinho.
Por ter uma tecnologia muitíssimo mais avançada que a nossa,
em algumas horas nosso representante planetário já estava em solo novagaiano
cuja atmosfera, inclusive, era absolutamente similar à da Terra. Durante as
primeiras horas o submeteram a uma máquina que leu todas as informações
químicas, elétricas e sei mais o que do seu organismo, de forma que aprenderam
muita coisa sobre a Terra , até mesmo o seu idioma nativo, imaginem!, o
português. Por outro lado, desenvolveram rapidamente um programa que, conectado
ao seu cérebro por meio de alguns eletrodos, fê-lo aprender rapidamente sobre a
língua e cultura do lugar. Acho que já vi esse filme antes...
O intercâmbio durava algumas semanas terráqueas antes de ele
voltar para casa e lá se foi nosso herói a imergir na realidade novagaiana. A
primeira coisa que lhe chamou a atenção e que, na realidade o chocou bastante,
é que, apesar de humanoides, eles se reproduziam de forma assexuada. Não havia
cópula e não havia separação de masculino e feminino. Os seres nasciam de um
processo muito parecido ao humano, algo semelhante com a placenta, mas
independente do ato sexual; os seres daquele planeta eram capazes de provocar
isso apenas na sua idade adulta. A geração de um semelhante se dava pela
combinação de hormônios e o desejo de se reproduzir, estado de consciência que
se adquiria somente na fase adulta da vida. E havia limites para a reprodução
que dependiam de aspectos que vamos chamar de psicológicos e que variavam de
indivíduo para indivíduo. Portanto, havia a tradicional família também, formada
pelo(a) progenitor(a), que era um ser capaz de cuidar sozinho(a) da sua cria.
Inclusive, eram mamíferos parecidos com os nossos, com glândulas mamárias e
tudo o mais. Na idade adulta eram seres andróginos, bastante sociáveis, mas que
não desenvolviam atração mútua. Havia, sim, o instinto materno/paterno em
relação às suas crias. Portanto, tinham também sua família celular tradicional.
E havia mais semelhanças e diferenças que, para encurtar a
história, vamos nos fixar nas mais importantes: todos eles tinham a pele meio
rosada: não havia a nossa riqueza genética. Da mesma forma que os terráqueos, o
conhecimento deles havia se desenvolvido ao longo das eras e, portanto, eles
tinham sistemas muito parecidos com os nossos: as mitologias, as crenças e o
conhecimento científico. Impressionante também o conceito de Deus existente lá,
idêntico ao terráqueo. Isso levou nosso Joãozinho, um cristão temente a Deus –
diga-se de passagem – a firmar mais ainda sua fé na existência de um deus
pessoal. Afinal, nesse vasto universo, os seres humanos haviam conhecido outra
civilização alienígena que continha basicamente os mesmos fundamentos de
crença. Coisa linda de se ver. Tinha que existir um Deus inteligente por trás
disso tudo e, obviamente, só poderia ser o mesmo Deus venerado na Terra. Seria
improvável que não fosse assim.
E, continuando nas semelhanças, eles também eram
profundamente religiosos, tinham seus cultos, suas religiões, a maioria delas
monoteístas. Para finalizar o paralelo, coincidência num sentido e estranheza
absurda em outro, se eles não tinham a sexualidade como conhecemos, eles
possuíam uma pulsão muito parecida à nossa sexual, mas em relação à
alimentação: se, para nós, tudo gira em torno do sexo, para eles, tudo girava em
torno da comida. E não era sem razão porque a comida tinha uma relação direta
com a capacidade de reprodução deles. Eles eram essencialmente carnívoros – e
na Nova Gaia os animais eram os mesmos da Terra, algo impressionante! O prazer
supremo daquele planeta era uma picanha maturada. No entanto, havia um animal que
era a exceção, uma abominação: o porco. Entendamos o motivo.
Comer carne tinha a ver com a capacidade reprodutiva deles
porque uma proteína somente encontrada nos animais era a que desencadeava a
capacidade de reprodução deles. Eles até tinham, no livro sagrado deles, o
relato da criação dos humanoides novagaianos: depois de criar o mundo, no 24º
dia Deus escolhera um animal, extraíra seu fígado e, dele, havia feito o
novagaiano. Depois, Deus descansara no 25º dia. Portanto, a essência da
existência deles, a capacidade de sua reprodução consistia em consumir a
proteína carnívora. Sem isso, eles não se reproduziriam em novos seres, a
célula mater da família deles se desintegraria, enfim, toda aquela história que
já conhecemos. A carne do porco tinha um problema: possuía outra proteína, ao
longo do seu desenvolvimento científico eles haviam percebido isso, que tornava
os novagaianos estéreis. A implicação religiosa disso era dramática: não
reproduz, é um abominável, coloca em risco a célula mater da família. Se Deus
havia feito o novagaiano para se reproduzir por meio da ingestão de proteína
carnívora, por que comer carne de porco, que causava o efeito contrário?
Afinal, o primeiro ser humanoide daquele planeta, criado por Deus a partir do
fígado de um animal, se chamava Carnívoro e não Porquívero!
A questão era mais complexa: para a maioria das pessoas
daquele planeta – e isso deve ter relação com a possibilidade de se reproduzir –
era asqueroso comer carne de porco. Naquele planeta, quando preparada,
invariavelmente a carne ficava com uma coloração próxima à da pele deles e isso
causava uma repulsa muito grande nos novagaianos. O pior é que havia quem
gostava daquilo! Eca! Havia uma polarização muito grande. A maioria das pessoas
acreditava que o gosto pela carne de porco era resultado de hábitos alimentares
degenerados adquiridos ao longo da vida. Outros acreditavam que as pessoas já
nasciam com uma tendência a gostar de carne de porco. O fato é que a questão
era muito polêmica e a polarização se dava mais no âmbito religioso: se Deus havia criado
os novagianos para se reproduzirem e constituírem família a partir da ingestão
de proteína animal, obviamente era pecado comer aquela carne asquerosa, a
suína, que ainda deixa os novagianos estéreis. Joãozinho tinha bastante dificuldade
em entender o raciocínio, mesmo porque, como bom brasileiro, ele não dispensava
uma suculenta bistequinha de porco. No entanto, uma coisa bastante curiosa era
o fato de que algumas pessoas não gostavam de comer carne e se tornavam
vegetarianas. Bem, até aí tudo bem: como vegetais não pareciam asquerosos para
a maior parte dos novagaianos e a maioria deles até incluía os vegetais na sua
dieta. Mas, o fato é que tais novagianos, por não consumirem a proteína da
carne, resultavam estéreis também. E aí, eles não eram uma ameaça à célula
mater novagaiana? Claro que não! Havia muitas crianças novagaianas órfãs, por
diversos motivos, e um vegetariano poderia adotar algumas dessas crianças e
tudo bem. E os “porquíveros”, também não poderiam? Claro que não! Tais degenerados
comedores de carne de porco eram um perigo à célula mater novagaina, seriam uma
má influência às crianças novagaianas. Joãozinho chacoalhava a cabeça para
pegar no tranco e jurava não entender nada...
Além do mais, havia a questão da aparência física: a
ingestão da proteína suína gerava um efeito “colateral”: as sobrancelhas dos
comedores de carne suína se juntavam com o tempo e se tornavam “monocelhas”.
Horrível. Era fácil identificar os comedores de carne suína por isso. Na realidade,
por uma questão genética ainda não compreendida, alguns comedores de carne
suína não desenvolviam esse efeito colateral. E havia novagaianos que, apesar
de não consumirem carne suína eram “premiados” como “monocelhas”. E, pra
piorar, ainda não estava claro se a “monocelha” era resultado da ingestão da
carne suína (parecia que sim) ou uma pré-disposição genética. O fato é que
novagaianos dotados de “monocelhas” eram estigmatizados, muitas vezes alvo de
violência por parte de pessoas que odiavam esse tipo de novagaiano: “morra,
comedor de carne de porco safado!!!”. Uma coisa triste de se ver e que cortava
o coração de Joãozinho, o trollador. Sem falar nos novagaianos que morriam de
vontade de provar uma bistequinha de porco assada, mas não tinham coragem de
sair do forno. Esses eram os mais aguerridos.
A coisa chegou a tal ponto que, naquele planeta, os religiosos
mais dogmáticos condenavam os comedores de carne de porco, por macularem a sagrada
comida, instituída por Deus para eles se reproduzirem, comendo carne de porco. Ocorre
que, naquele planeta, nem todos eram religiosos mais tradicionais, muitos sequer
religiosos. E Joãozinho, um amante de uma bistequinha de porco, ainda que isso
parecesse uma abominação para a maior parte dos novagaianos, não entendia
porque os que apreciavam essa delícia da culinária eram obrigados a se privar
disso justamente porque os religiosos achavam que era pecado! Se tais
novagaianos “porquíveros” não pensavam assim, ainda que estivessem violando a
crença mais profunda dos novagaianos crentes, por que eles deveriam se abster
de comer a carne de porco? Não era todo mundo livre naquele planeta? Não diziam
que cada um era livre para viver de acordo com sua consciência? Outra coisa que
deixou Joãozinho intrigado foi o seguinte: se Deus criou mesmo os novagaianos,
e lhe parecia razoável, como bom cristão, uma vez que Deus deve ser tão
infinito que não está limitado a um sistema religioso de um planeta nesse
universo tão imenso, por que não simplificou as coisas? Não seria mais fácil ter
impedido que aparecem porcos naquele planeta? Ou será que porco é tudo isso de
ruim que falam por lá? E os vegetarianos estéreis? Que confusão...
Bem, havia uma série de questões implicadas nessa polêmica
toda. Como o planeta também possuía um sistema de leis sofisticado, eles
estavam às voltas com a criação de uma lei que permitisse aos comedores de
carne bovina adotar crianças. Como assim???, pensou Joãozinho. Bem, a verdade é
que, exceto esse aspecto curiosíssimo das singularidades de Nova Gaia, o
restante do planeta lhe pareceu uma delícia. Entretanto, ele nem em sonhos
comentou com alguém que era um fanático por bisteca de porco. Já pensou se
descobrem? Ele preferiu não arriscar.
A verdade é que foram algumas semanas terráqueas muito
enriquecedoras para ele e, quando estava prestes a embarcar de volta à Terra,
ele já estava com saudades, apesar do pensamento recorrente que lhe assaltava
sempre que ele pensava na carne de porco: “que pessoal mais estranho...” De
volta à terra, nas horas em que passou no veículo intergaláctico, enquanto
repassava um poucos suas experiências em Nova Gaia e pensava no que lhe
esperava na Terra, uma ideia cruzou seu cérebro: assim que chegasse em casa,
iria procurar seu vizinho, o Serginho, aquela bichinha, que ele tantas vezes
havia hostilizado, e lhe daria um longo e afetuoso abraço.