domingo, 31 de janeiro de 2021

Apito amigo

Fabio é meu primo rico. Nem tão rico assim. Mas, pra quem é muito pobre, qualquer um que esteja acima da linha da pobreza é rico. Ele estudou o colégio, hoje ensino médio, em uma escola pública, é verdade, mas em uma região de gente mais endinheirada. Era uma escola bastante tradicional, concorrida e que, dentre outras características, se destacava nos esportes. Seu colégio sempre batia cartão nos jogos interescolares.

A classe que lhe foi assignada no 1º colegial era uma combinação bem interessante e, do ponto de vista dos esportes, bastante feliz. Ele não tinha grandes habilidades esportivas, mas seus colegas de classe eram insuperáveis. Por isso mesmo, logo no primeiro ano, o time de futebol da sala ganhou o campeonato de futebol de campo da escola. Que, a propósito, tinha em suas dependências, um belo campo de futebol.

É verdade, ganharam, mas era uma classe muito problemática e arruaceira. Matavam aula, pulavam o muro da escola nas horas vagas e aprontavam presepadas na vizinhança, por exemplo. Qualquer confusão na escola e poderiam apostar: a sala do Fabio estava de alguma forma envolvida. Isso foi no 1º ano, no 2º e no 3º. Era uma turma muito coesa, apesar de haver alguns alunos na sala que não faziam parte das piores traquinagens. Com o tempo, tais arruaceiros se tornaram “personas non grata” na escola.

Mas o fato é que aquela turma era invencível no futebol. No segundo ano faturou o campeonato também. Isso só aumentou a rivalidade com os demais e o sentimento geral, no colégio, de que aquilo não estava certo: como pode uma turma de arruaceiros levar o caneco 2 anos seguidos o torneio mais tradicional da escola, praticamente um patrimônio de sua rica história?

No 3º ano botar a mão no caneco eram praticamente favas contadas. Mas o clima de animosidade na escola estava cada vez pior: tem que haver um jeito de parar esses marginais! E, como são essas coisas do destino, em uma das semifinais do torneio, estava a sala do meu primo Fabio e um time formado por um misto de alunos da escola, a maioria deles monitores.

Monitores, naquele tempo, eram alunos mais aplicados, mais “inteligentes”, que aprendiam melhor a matéria e depois davam aula de reforço para seus colegas em dificuldade. Nem precisa dizer que eram os queridinhos dos professores e uma espécie de heróis na escola: está em dificuldade na matéria? Procure um monitor em um horário alternativo. E os caras eram muito gente boa. Não tinha como não gostar deles.

E lá estava, numa das semifinais, o time de arruaceiros contra o time de monitores, que também jogavam uma bola redonda demais. Foi todo um evento. Meu primo Fabio estava tão empolgado com a ideia que cedi ao seu convite e fui lá assistir o “histórico” jogo. Afinal, o clima na escola era pura tensão: de um lado a classe dos arruaceiros e vários simpatizantes, alguns fanáticos até, torcendo pelo time, do outro lado o restante da escola, sangue nos olhos, uma sede insaciável de “justiça”, de acabar a raça com aquela quadrilha de marginais safados que, como é possível, tinha destruído a gloriosa tradicional futebolística da escola, com figuras tão detestáveis no time, com sua malandragem insuportável que, de alguma forma, os tornava invencíveis no campo. Mas dessa vez era diferente: o selecionado de monitores era bala e tinha o apoio mais que empolgado da maioria absoluta do colégio. E você sabe como é jogo de futebol: metade da vitória está nas arquibancadas.

Cheguei ao campo, as arquibancadas, que não eram tão grande já estavam lotadas, gente saindo pelo ladrão, uns pendurados nos ombros dos outros, aquele clima de tensão eletrizando no ar. O jogo começa.

Bem, não existe jogo de futebol sem juízes e bandeirinhas, não é mesmo? Dada a tensão do jogo, chamaram um treinador de futebol de outra escola para apitá-lo e professores do mesmo colégio fizeram papel de bandeirinha. Geralmente juízes são pessoas mais discretas, mas naquele dia tudo foi diferente. Parecia que o juiz queria roubar a cena. 

Foi uma das arbitragens mais controversas da história do torneio daquela história. Eu estava lá, eu me lembro bem. Até mesmo eu, que não sou especialista em futebol, fiquei chocado. O juiz massacrou o time de arruaceiros da classe do meu amigo. Qualquer esbarrão, mesmo acidental, contra um jogador dos monitores... falta! Qualquer olhada atravessada contra o juiz... cartão amarelo! Reversão de cobrança de lateral foi mato naquele dia. E o público da escola estava histérico. A gritaria era generalizada. Eu nunca estive em um espetáculo do Coliseu da Roma antiga, mas estava me sentindo naquele lugar. Na arena, uma disputa de sangue com um lado apanhando bonito do juiz, era o que meu bom senso me dizia. Nas arquibancadas, o público vibrando, torcendo, urrando a cada estocada contra o time de arruaceiros, o grito entalado nos anos anteriores agora liberado com toda força. Para essas pessoas, finalmente se fazia justiça, os arruaceiros estavam aprendendo uma grande lição, a gloriosa tradição futebolística do colégio sendo restaurada pela firme e justa mão daquele árbitro que ganhava a estatura de um super-homem.

Eu chocado. O Fabio exultante.

Ah, não contei? Pois é. Apesar do orgulho de fazer parte de uma classe tão talentosa nos esportes, meu primo foi aos poucos sendo convencido que aquele time era uma vergonha para a escola, manchava sua história, nunca a escola tinha sido tão humilhada com um grupo de marginais como aquele. Então meu primo também queria que a justiça fosse feita e, para ele, a justiça estava sendo feita com louvor. Eu estupefato. Nem tanto com a atitude do juiz e dos bandeirinhas, que já era deplorável, mas com a reação das demais pessoas. A impressão é que estávamos vendo jogos bem diferentes. Eu via um grande circo armado, as pessoas viam o espetáculo da justiça sendo feito por pessoas acima de qualquer julgamento, os adorados monitores, o técnico da outra escola, os professores como bandeirinhas.

O jogo se arrastou em um doloroso zero a zero, apesar da surra que o time de arruaceiros estava tomando do árbitro que, na minha leitura, tinha assumido um lado na disputa. Mas, na metade do 2º tempo... pênalti! Meu, aquilo foi ridículo. Um dos monitores se jogou na área, no melhor estilo de um telequete, e lá foi o juiz com seu apito decretar a derrota do time de arruaceiros. Claro que o jogador do time de monitores caprichou, sepultou a bola no fundo da rede e, dadas as condições de jogo, não tinha como o time de arruaceiro reverter o resultado.

Então, o desejado, o aspirado ardentemente, o maior anseio da maioria da escola se concretizou: o time de marginais não iria para a final. E tudo isso em um jogo histórico, épico, em que a justiça teria sido feita.

Saí de lá bastante decepcionado. Conversei muitas vezes depois com o Fabio sobre aquele que foi um dia trágico para mim, glorioso para ele. 

- Mas Fábio, você não viu que o juiz foi totalmente parcial?

- Que parcial, virou torcedor do time de marginais?

- Não é questão de torcer para o time de marginais, até eu que não sou especialista em futebol vi os absurdos!

- Do que você está falando? Eu vi um juiz correto, que apitou certinho, tudo de acordo com as regras.

- De acordo com as regras? Você não viu que as vezes o juiz conversava com o treinador do time de monitores? Desde quando juiz faz isso?

- Ué, o que tem a ver? Você não entende nada mesmo, né? Isso é comum. De repente o treinador queria falar alguma coisa sobre a grama, a posição do sol, sei lá.

- Cara, não é possível! Aquilo foi um espetáculo patético, uma palhaçada!

- Ah vá... Não é você que estuda na escola! Você não conhece esses caras. Eu estudo com eles, eu conheço. Eles precisavam ser parados mesmo. E foram parados! A justiça foi feita.

- Parados daquele jeito, roubando? Isso é justiça? Você enlouqueceu? E você viu como as pessoas gritavam o nome do juiz a cada falta que ele dava contra o time da sua classe? O cara estava todo pimpão. Aquele juiz deve ser um cara muito vaidoso para se deixar levar pelo orgulho daquele jeito.

- Nada a ver, cara! O juiz foi corretíssimo. Fez tudo direitinho. O resultado foi mais do que justo e, o melhor, o time foi eliminado. O juiz foi o herói do jogo.

- Cara, estou chocado... E aquele pênalti? De onde o juiz tirou aquilo? Do orifício corrugado onde não bate nossa estrela mãe?

- Se liga, cara, o pênalti foi justíssimo. Estou achando engraçado você. Nem conhece os caras e agora está de mimimi. Algumas pessoas que já participaram dos treinos do time da minha classe disseram coisas horríveis. Esses caras são muito escrotos. As pessoas odeiam eles!

- OK, tudo bem que odeiem pelo motivo que for, mas isso não é razão para simplesmente esquecerem as regras do jogo e exibirem aquele espetáculo tão patético. Ridículo, primo.

- Cara, os professores da escola estavam lá, os bandeirinhas eram professores. Então você quer dizer que todo mundo estava conspirando contra o time de marginais? Os marginais são uns coitadinhos injustiçados pelos professores, diretores e você está certo?

- Fabio, enfia uma coisa na sua cabeça: o fato de os professores não dizerem nada não quer dizer que não foi roubado. De repente os professores no fundo também queriam ver a derrota do time e se fingiram de mortos, tacitamente deram seu apoio àquele espetáculo dantesco. Pelo jeito você não conhece a natureza humana mesmo...

- Pronto, agora seu inteligentão, arrogante, vem me ensinar como funciona a natureza humana...

Enfim, até hoje conversamos sobre aquele episódio fatídico e o Fabio segue inflexível com a leitura de um jogo que eu jamais enxerguei.

Não bastasse, na confusão do resultado, entre a loucura das pessoas que estavam comemorando a vitória do time dos monitores, alguém surrupiou a mochila do treinador da outra escola e, depois que a poeira baixou, divulgou anonimamente imagens de uma caderneta que encontrou na mochila, onde o juiz tinha anotações de algumas estratégias acordadas entre o técnico do time de monitores para garantir que a efetividade do time de marginais fosse prejudicada. Até mesmo o pênalti tinha sido previsto como plano B, caso houvesse o risco de o time de monitores não ganhar.

Obviamente que isso virou um escândalo e acabei sabendo. Mas para as pessoas que queriam ver o time fora do campeonato, aquilo não importava, era um “mal” menor, já que o maior benefício tinha sido alcançado: ao menos tiramos o time do campeonato. E mais, tais pessoas ainda conseguiam utilizar uma justificativa que me parecia surreal: “aquela caderneta foi roubada, ela não pode ser considerada para nada!” Não é espantoso? Uma caderneta que exibe os planos de um roubo não deve ser considerada porque essa caderneta só veio a público por meio de um roubo. Dá pra aguentar a moral dessas pessoas? E as explicações e minimizações que o árbitro do jogo deu sobre tais anotações? Um completo disparate. Só alguém muito cara de pau pra dizer aquilo. Mas, o mais triste mesmo foi ver quase todo mundo batendo palma e celebrando que, finalmente, a justiça tinha sido feita e aquele time de marginais tinha sido extirpado da competição.

Numa das conversas com meu primo eu lhe disse que nós, seres humanos, somo assim mesmo, muito contraditórios. Quando queremos muito algo, quando temos muita raiva, quando pensamos com a bile, não com o cérebro, aceitamos todo tipo de absurdo e fazemos toda a ginástica possível para justificar o injustificável, num profundo exercício de auto engano que permita nosso intelecto absorver o absurdo que for. Em esportes, principalmente no futebol, como as emoções contam muito, é até compreensível que isso aconteça. E, no final das contas, um jogo de futebol é apenas um jogo de futebol. O problema mesmo é quando incorporamos essa moral dúbia e depois levamos esse tipo de comportamento para áreas mais “sérias” de nossas vidas, a política, por exemplo. Nesse caso, o estrago pode ser grande.


 




domingo, 3 de janeiro de 2021

O Cabeleira, o Demonão e o Marreco

“Em 23 de maio, os inimigos dos Andradas, apesar da relutância da Câmara de São Paulo, fizeram do povo e da tropa massa de manobra para evitar que Oyehnausen-Gravenburg deixasse o governe e que Martim Francisco tomasse posse”. 

Titília e o Demonão – a história não contada (Paulo Rezzutti)


Certa vez um amigo me enviou um vídeo no Youtube de uma magnífica interpretação do Aleluia, de Handel, por um coro europeu. Depois de apreciar o vídeo, respondi-lhe, concordando com a beleza da interpretação e com um comentário: tinha achado curioso o tenor, em algum trecho da fuga, ter feito uma nota que não é a nota a que eu estava acostumado. E anexei trecho da partitura, que pesquisei na internet, mostrando-lhe o registro com a nota que eu esperava, não a que estava sendo cantada. Depois de ouvir o trecho algumas vezes, meu amigo me respondeu, chocado com minha capacidade de ter percebido uma notinha específica no meio de uma fuga a 4 vozes mais a orquestra. Eu lhe respondi que conheço tão bem aquela partitura que uma nota diferente provavelmente soaria estranha e me chamaria a atenção.


É bastante comum nos impressionarmos com a capacidade das pessoas verem coisas que não vemos. Isso nem é tão impressionante assim: se estamos acostumados a uma questão em particular, somos capazes de identificar padrões ou exceções de forma mais rápida que outras pessoas que não estão acostumadas.


Nos últimos dias, estive conversando com um amigo pelo facebook e, novamente, se deu o embate tradicional: ele acreditando que Sérgio Moro e toda a investida do “Fora Dilma” fez parte de um ato patriótico contra a corrupção, uma tentativa de moralizar o país e eu, novamente, batendo na mesma tecla que sempre bati desde que começou a histeria coletiva “fora PT”, de que não estávamos vivendo um momento histórico de moralização do país, apenas mais um repeteco de um filme que acontece toda hora na nossa história, que corresponde a um suposto salvador da pátria que, com apoio dos poderosos, usa o povo como massa de manobra para atingir seus objetivos políticos.


No caso do episódio narrado no início desse texto, trecho do livro que estou lendo no momento e que me inspirou a escrever esses parágrafos, os inimigos dos Andradas eram nem mais nem menos que os chamados “capitalistas paulistas”, ou seja, o baronato paulista, o poder econômico que sempre mandou e desmandou. No caso do episódio Moro, a grande mídia, capitaneada pela Globo, fez o mesmo, dando suporte a Moro e usando a população como massa de manobra. Eu via aquilo tudo e me dava uma mescla de preguiça e desespero por ver como os brasileiros embarcaram tão dócil e ingenuamente naquela manipulação toda. Para mim aquilo não passava de déjà-vu.


Mas eu fui escorraçado por amigos, colegas, conhecidos, inimigos, tido como alguém pretensioso que acha que sabe tudo. Ao que eu sempre dizia: “gente, não se trata disso, não acho que sei tudo! Estudem a história do Brasil, estudem o poder dos meios de comunicação, vejam como os poderosos de cada época sempre utilizaram o povo como massa de manobra! O padrão é clássico! É mais um super-herói! Vocês só caem nessa conversa porque não estão enxergando o todo, são incapazes de detectar os padrões!”.


Enfim, até hoje, quando falo sobre isso, as pessoas ficam irritadas comigo, porque isso pressupõe de que elas caíram em um conto do vigário. E olha que eu nem falei dos prejuízos que tudo isso trouxe para o país. Tais prejuízos são simplesmente ignorados por conta da dissonância cognitiva que, no caso recente, tem sua manifestação mais acabada na lapidar frase “pelo menos tiramos o PT”.


Por isso é tão importante estudar História. Não apenas para conhecer o passado, mas para não repetirmos os erros dele.