domingo, 3 de janeiro de 2021

O Cabeleira, o Demonão e o Marreco

“Em 23 de maio, os inimigos dos Andradas, apesar da relutância da Câmara de São Paulo, fizeram do povo e da tropa massa de manobra para evitar que Oyehnausen-Gravenburg deixasse o governe e que Martim Francisco tomasse posse”. 

Titília e o Demonão – a história não contada (Paulo Rezzutti)


Certa vez um amigo me enviou um vídeo no Youtube de uma magnífica interpretação do Aleluia, de Handel, por um coro europeu. Depois de apreciar o vídeo, respondi-lhe, concordando com a beleza da interpretação e com um comentário: tinha achado curioso o tenor, em algum trecho da fuga, ter feito uma nota que não é a nota a que eu estava acostumado. E anexei trecho da partitura, que pesquisei na internet, mostrando-lhe o registro com a nota que eu esperava, não a que estava sendo cantada. Depois de ouvir o trecho algumas vezes, meu amigo me respondeu, chocado com minha capacidade de ter percebido uma notinha específica no meio de uma fuga a 4 vozes mais a orquestra. Eu lhe respondi que conheço tão bem aquela partitura que uma nota diferente provavelmente soaria estranha e me chamaria a atenção.


É bastante comum nos impressionarmos com a capacidade das pessoas verem coisas que não vemos. Isso nem é tão impressionante assim: se estamos acostumados a uma questão em particular, somos capazes de identificar padrões ou exceções de forma mais rápida que outras pessoas que não estão acostumadas.


Nos últimos dias, estive conversando com um amigo pelo facebook e, novamente, se deu o embate tradicional: ele acreditando que Sérgio Moro e toda a investida do “Fora Dilma” fez parte de um ato patriótico contra a corrupção, uma tentativa de moralizar o país e eu, novamente, batendo na mesma tecla que sempre bati desde que começou a histeria coletiva “fora PT”, de que não estávamos vivendo um momento histórico de moralização do país, apenas mais um repeteco de um filme que acontece toda hora na nossa história, que corresponde a um suposto salvador da pátria que, com apoio dos poderosos, usa o povo como massa de manobra para atingir seus objetivos políticos.


No caso do episódio narrado no início desse texto, trecho do livro que estou lendo no momento e que me inspirou a escrever esses parágrafos, os inimigos dos Andradas eram nem mais nem menos que os chamados “capitalistas paulistas”, ou seja, o baronato paulista, o poder econômico que sempre mandou e desmandou. No caso do episódio Moro, a grande mídia, capitaneada pela Globo, fez o mesmo, dando suporte a Moro e usando a população como massa de manobra. Eu via aquilo tudo e me dava uma mescla de preguiça e desespero por ver como os brasileiros embarcaram tão dócil e ingenuamente naquela manipulação toda. Para mim aquilo não passava de déjà-vu.


Mas eu fui escorraçado por amigos, colegas, conhecidos, inimigos, tido como alguém pretensioso que acha que sabe tudo. Ao que eu sempre dizia: “gente, não se trata disso, não acho que sei tudo! Estudem a história do Brasil, estudem o poder dos meios de comunicação, vejam como os poderosos de cada época sempre utilizaram o povo como massa de manobra! O padrão é clássico! É mais um super-herói! Vocês só caem nessa conversa porque não estão enxergando o todo, são incapazes de detectar os padrões!”.


Enfim, até hoje, quando falo sobre isso, as pessoas ficam irritadas comigo, porque isso pressupõe de que elas caíram em um conto do vigário. E olha que eu nem falei dos prejuízos que tudo isso trouxe para o país. Tais prejuízos são simplesmente ignorados por conta da dissonância cognitiva que, no caso recente, tem sua manifestação mais acabada na lapidar frase “pelo menos tiramos o PT”.


Por isso é tão importante estudar História. Não apenas para conhecer o passado, mas para não repetirmos os erros dele. 


 




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