terça-feira, 28 de outubro de 2014

Oração de um paulista crente que votou certo no segundo turno da eleição presidencial

Essa noite, preocupado com o futuro incerto do nosso país por causa da grande burrada que foi o resultado da eleição do domingo, perdi o sono. Resolvi levantar para interceder pela nossa nação mas, quando dobrei os joelhos, apesar do buraco sem fundo que estamos nos metendo, só me vieram palavras de agradecimento a Deus:

Obrigado, Senhor, pelas tuas bênçãos, teu favor ilimitado que esclareceram tanto minha mente e fizeram de mim alguém com tanto discernimento. Obrigado, Senhor, por abrir meus olhos para enxergar o que a maioria dos brasileiros não vê. Obrigado, Senhor, por me dar inteligência e empreendedorismo para vencer na vida. Obrigado, Senhor, por não me fazer preguiçoso e, mesmo saindo de uma família humilde do ABC paulista, ter sido sempre trabalhador e não precisar mendigar nenhum programa social para vencer na vida. E eu venci, Aleluia! Obrigado, Senhor, por ter me feito nascer no ABC, terra com tantas oportunidades de emprego que eu, tinhoso como sou, sempre soube aproveitar. Obrigado, Senhor, por ter me feito responsável, cumpridor dos meus deveres, cidadão de bem, que estudei numa das tantas faculdades que existem por aqui. Obrigado, Senhor, por eu ter utilizado todo esse conhecimento e sabedoria conseguidos à custa de muito estudo e trabalho honesto para saber o que é melhor para mim e para aquele miserável nordestino preguiçoso e analfabeto.

Aliás, obrigado, Senhor, por não me fazer indolente com os nordestinos que só querem viver à custa do bolsa miséria. Obrigado, Senhor, por ver que os paulistas, assim como eu, rejeitam essas esmolas do governo corrupto do PT. Obrigado, Senhor, por saber que São Paulo não precisa disso, que essas bolotas de porco sejam despejadas nesses nordestinos burros e bovinos. Obrigado, Senhor, por colocar pessoas sábias como o Diogo Mainardi para denunciar essa calamidade. Só não entendo, Senhor, porque São Paulo é um dos maiores beneficiários do bolsa esmola! Isso só pode ser fraude e a corrupção típicas do PT desmoralizando o programa: nordestinos safados que devem estar utilizando dois endereços diferentes, um naquela terrinha ridícula e outra aqui nesse local de tantas bênçãos, para ganhar o benefício em dobro. Aliás, um governo que, para ganhar uma eleição tenha que recorrer à fraude, eu li por aí, só pode dar esse tipo de incentivo mesmo. Obrigado, Senhor, por não ter permitido que eu nascesse naquela terrinha miserável de gente feia e fedida que nem banho toma, afinal, nem água lá tem! Obrigado, Senhor, por ter dado sabedoria e inteligência aos meus pais que, quando se casaram, saíram daquele lugar de gente deplorável e vieram aqui para essa terra de oportunidades, onde construíram uma família linda e de quem me orgulho bastante. Só lamento que essa gente preguiçosa nordestina, que vive às custas das esmolas dadas pelos analfabetos, corruptos e comunistas do PT, quando quiser subir na vida, venha pedir emprego aqui nessa terra maravilhosa governada com tanta competência pelos acadêmicos, ilustrados e distintos políticos do PSDB. Que apodreçam no nordeste, porque São Paulo é lugar de gente ordeira, trabalhadora.

Senhor, quando chegar no teu reino, além de querer conhecer pessoalmente Abraão, Isaque e Jacó, quero fazer duas perguntas que me incomodam bastante: a primeira, para onde vão as canetas quando desaparecem, a segunda, porque São Paulo é uma terra tão próspera, tão cheia de gente de bem, trabalhadora, que leva esse miserável país nas costas, que paga o bolsa esmola desses desocupados do nordeste, enquanto o nordeste é um lugar tão desagradável, pobre, cheio de gente inferior e analfabeta. Apesar de eu ser extremamente culto, inteligente, ler tantos livros, conhecer tudo de História, principalmente a do Brasil, ter um discernimento acima da média, como é comum nos paulistas bem sucedidos como eu, e se não bastasse, estar cercado de amigos igualmente notáveis como eu, muitos deles praticamente cientistas políticos, outros economistas informais de extraordinário saber, e como dizia, apesar disso, eu não entender porque essa discrepância toda entre nordeste e sudeste. Que carma esse miserável povo do nordeste tem, Senhor? Qual foi o pecado deles? E eu, por que Senhor, tenho que ficar sustentando esse bando de vagabundos? Eu sei, Senhor, que os seus desígnios são profundos, incompreensíveis, e o entendimento total desse mistério só terei quando estiver nas Bodas do Cordeiro ou quando chegar no Paraíso, se eu morrer antes do Arrebatamento.

Também entendo, Senhor, que a vitória do PT foi sua vontade permissiva, porque tua boa, agradável e perfeita vontade seria o PSDB ganhar porque assim ele acabaria com essa palhaçada dessa bolsa miséria o colocaria os vagabundos do nordeste para trabalhar. Nós, teus servos, falhamos quando não oramos e jejuamos suficiente. Seu servo Marco Feliciano até nos conclamou para tirarmos esse partido diabólico do poder mas nós somos desunidos: falhamos! Perdão, Senhor.

Mesmo assim, Senhor, tua benignidade é tão grande e a despeito de nossas falhas, tu nos abençoa sempre, até mesmo por meio de uma jesuscidência! Justamente agora, nas vésperas da eleição presidencial é que comprei meu Hyundai HB20 branco zero quilômetro. Foi em boa hora para poder postar uma foto no facebook com minha bênção e esfregar no nariz dos meus primos vadios nordestinos qual a diferença entre quem depende do bolsa esmola e quem trabalha de fato. Obrigado, Senhor! Momento melhor não havia. Ah, e ademais para mostrar aos meus vizinhos, invejosos e não invejosos, que eu também posso comprar um carrão, que eu sou servo de Deus, que fui colocado por cabeça, e não cauda! Eu te peço, Senhor, que nunca me falte emprego para eu poder pagar as 60 parcelas do financiamento e desde já eu repreendo toda cilada do inimigo, declaro que o diabo está derrotado e o devorador não tem poder sobre minhas finanças! Eu sei em quem tenho crido e tu és fiel, dia após dia, por isso não me faltará dinheiro para continuar pagando o seguro, o IPVA, as revisões e a gasolina aditivada, porque declaro que só vou colocar combustível decente na minha bênção.

Senhor, obrigado, obrigado, obrigado, eu te louvo, eu te adoro, acima de tudo eu te amo, por me fazer um paulista inteligente e não um nordestino burro.


Em nome de Jesus, Amém.


(Se você chegou até aqui e se sentiu ofendido ou achou o texto muito estranho, deixa-me explicar: esse é um texto irônico. Textos irônicos por vezes são difíceis de serem compreendidos. A ideia do texto é mostrar como esse tipo de pensamento, que infelizmente surgiu bastante nas eleições presidenciais de 2014, é ridículo. Procurei colocar cores fortes mas ainda assim algumas pessoas me disseram que há de fato pessoas que pensam exatamente assim, o que mostra o quanto isso é triste. Eu me inspirei em uma parábola de Jesus, a do fariseu e do publicano, em que o fariseu se julgava melhor que o publicano. É essa postura condenável que vemos em muitos cristãos, paulistas em particular, que se julgam melhores que nordestinos que votaram em uma alternativa política diferente das deles. Duplamente lamentável por se dizerem cristãos, já que tais atitudes demonstram que não entenderam direito a mensagem do cristianismo. Finalizando, paulistas arrogantes e xenófobos que se julgam melhores e mais inteligentes que nordestinos, não passam de infelizes tolos e patéticos)

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Gloria – Francis Poulenc

Gloria – Francis Poulenc


Eu iniciei minha caminhada pela música de concerto (música clássica) pelos russos. Quando eu tinha por volta dos 10 a 12 anos, eu ouvia os russos incansavelmente, e as peças que mais me marcavam eram Uma Noite no Monte Calvo, de Mussorgsky e Danças Polovtzianas da Ópera o Príncipe Igor, de Borodin. Essa última na versão com coro, conseguia me deixar praticamente em transe. Mais tarde expandi meus horizontes e descobri a França. Os franceses foram minha segunda paixão musical.

O cristianismo proporcionou um incalculável legado às artes em geral. Na música não foi diferente. Há incontáveis obras escritas a partir da motivação religiosa e, nesse particular, há uma categoria delas dedicadas exclusivamente à missa católica. Há uma quantidade imensa de obras-primas baseadas na sua estrutura principal: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei. No caso dos franceses, há uma composição específica que é bastante peculiar: Gloria, de Francis Poulenc. Em vez de musicar toda a missa, ele musicou somente essa seção. Ele escreveu a peça para coro e orquestra. Considerando a categoria “coro”, apesar de tantas obras-primas compostas pelos franceses, essa é minha obra coral preferida.

Poulenc também é um músico especial para mim por dois motivos. Primeiro, como sou músico – ainda que não me dedique a isso profissionalmente – encontro algumas semelhanças entre minha formação e a de Poulenc. Poulenc só estudou harmonia; os demais fundamentos eram explorados intuitivamente: contraponto e orquestração. Eu também só estudei harmonia. E mesmo antes de estuda-la, eu já considerava essa semelhança porque a harmonia foi sempre o que me atraiu mais. E essa peça, Gloria, do ponto de vista harmônico me excita demasiado. É muito rica. Além do mais, a escolha de compassos irregulares na peça também me agrada demais porque isso a deixa muito mais interessante para mim. O segundo motivo diz respeito à sua homossexualidade. Por meio da música, desde garoto aprendi a admirar a sensibilidade dos homossexuais. O meu grande herói orquestral sempre foi Tchaikovsky. Suas melodias e orquestrações tocavam minha alma de uma forma que nenhum outro compositor conseguia. Vez por outra eu topava com alguma coisa assim, de algum compositor, e de repente tropeçava com algum texto falando sobre sua homossexualidade. Samuel Barber, norte-americano e Francis Poulenc são exemplos de compositores que ouvi, alguma peça em particular me tocou de forma como outra jamais havia conseguido, e depois descobri que o cara era gay. No caso de Poulenc, a peça em questão é essa.

Antes de colocar algo específico sobre a peça, há uma coincidência também: minha primeira paixão foram os russos, incluídos os russos de um grupo de compositores nacionalistas que foram chamados de “Grupo dos Cinco” (Mussorgsky, César Cui, Rímski-Korsakov, Balakirev e Borodin), dos quais o que eu mais apreciei sempre foi Korsakov (Tchaikovsky e Korsakov foram meus heróis musicais russos da adolescência, seguidos de perto por Stravinsky). Já Poulenc fazia parte do chamado “Les Six”, claramente inspirado no grupo russo, formado por Georges Auric, Louis Durey, Arthur Honegger, Darius Milhaud, Francis Poulenc e Germaine Tailleferre, dos quais eu só conheço de verdade Poulenc; a galeria de gênios franceses que os precedeu é tão importante que deve ter obscurecido esses músicos que nasceram na virada do século XIX para o XX.

Especificamente sobre a peça, não é de fácil assimilação para um ouvinte pouco familiarizado com o estilo. Ele utiliza coro, orquestra e solista. Utiliza uma sofisticada harmonização que remete claramente a Stravinsky, alterna bastante a dinâmica da música, algo que me agrada demasiado, e utiliza melodias que me trazem por vezes a sensação de que, com elas, poderia flutuar em um espaço livre da gravidade.

A peça é dividida em 6 partes:

·         I. Gloria in excelsis deo – uma introdução orquestral inicia a peça e prepara o coro para a crescente entrada do coro numa melodia vigorosa. Gosto de como a frase do coro termina, em um acorde dissonante
·         II. Laudamus te – essa parte é alegre, brincalhona, um pouco longe do espírito sóbrio e pesado de uma missa. Poulenc chegou a dizer que partes da obra foi inspirada em uma partida de futebol jogada por monges beneditinos que ele tinha assistido. Não duvido que tenha sido essa. Aliás, há um trecho em que a peça atinge o clímax e, depois de uma grande tensão, é interrompida e retomada com uma melodia muito melancólica para depois retomar ao tema inicial, alegre. Esse trecho teria sido um pênalti seguido de um gol tomado, revés sofrido pelo time que ele estava torcendo? Sacrilégio! J
·         III. Domine deus – o solo de soprano nesse trecho é pungente; a harmonização e o coro dando o pano de fundo já quase me levaram às lágrimas em algumas das minhas incontáveis (mais de cem, talvez) escutas ao longo dos anos.
·         IV. Domine fili unigenite – a introdução orquestral desse movimento me parece genial; o diálogo que a orquestra estabelece com o coro, nas duas melodias – a do coro e da orquestra – é sensacional.
·         V. Domine deus, agnus dei – para mim o movimento mais enigmático da peça, a solista volta a atuar; é o movimento mais longo e que me soa harmonicamente mais sofisticado; gosto demais da tensão proposta entre o coro e a solista, as constantes modulações e mudanças de intensidade; são muito estimulantes
·         VI. Qui sedes, ad dextram Patris – último movimento, sua entrada soa para mim como um “grand finale”. E não poderia ser diferente: é o final grandioso da peça. Ele intercala uma seção alegre, para depois desembocar em um Amém iniciado pela soprano solo que vai aos dialogando com orquestra e coro num crescendo lento e majestoso até terminar em um amém calmo e dissonante, no melhor estilo de Poulenc

A gravação que eu tenho dessa peça, um CD que comprei há muitos anos, é uma das melhores referências que eu tenho da obra e não poderia ser diferente, já que é interpretada pelo King's College Choir, Cambridge.

Para um ouvinte de primeira viagem, sua apreciação exige algumas escutas repetidas até que seja possível sacar todas as nuances da peça e realmente desfrutar do que ela tem a oferecer. Recomendo.