Gloria – Francis Poulenc
Eu iniciei minha caminhada pela música de concerto (música
clássica) pelos russos. Quando eu tinha por volta dos 10 a 12 anos, eu ouvia os
russos incansavelmente, e as peças que mais me marcavam eram Uma Noite no Monte
Calvo, de Mussorgsky e Danças Polovtzianas da Ópera o Príncipe Igor, de
Borodin. Essa última na versão com coro, conseguia me deixar praticamente em
transe. Mais tarde expandi meus horizontes e descobri a França. Os franceses
foram minha segunda paixão musical.
O cristianismo proporcionou um incalculável legado às artes
em geral. Na música não foi diferente. Há incontáveis obras escritas a partir
da motivação religiosa e, nesse particular, há uma categoria delas dedicadas
exclusivamente à missa católica. Há uma quantidade imensa de obras-primas
baseadas na sua estrutura principal: Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei.
No caso dos franceses, há uma composição específica que é bastante peculiar:
Gloria, de Francis Poulenc. Em vez de musicar toda a missa, ele musicou somente
essa seção. Ele escreveu a peça para coro e orquestra. Considerando a categoria
“coro”, apesar de tantas obras-primas compostas pelos franceses, essa é minha
obra coral preferida.
Poulenc também é um músico especial para mim por dois
motivos. Primeiro, como sou músico – ainda que não me dedique a isso
profissionalmente – encontro algumas semelhanças entre minha formação e a de
Poulenc. Poulenc só estudou harmonia; os demais fundamentos eram explorados
intuitivamente: contraponto e orquestração. Eu também só estudei harmonia. E
mesmo antes de estuda-la, eu já considerava essa semelhança porque a harmonia
foi sempre o que me atraiu mais. E essa peça, Gloria, do ponto de vista
harmônico me excita demasiado. É muito rica. Além do mais, a escolha de compassos
irregulares na peça também me agrada demais porque isso a deixa muito mais
interessante para mim. O segundo motivo diz respeito à sua homossexualidade.
Por meio da música, desde garoto aprendi a admirar a sensibilidade dos
homossexuais. O meu grande herói orquestral sempre foi Tchaikovsky. Suas
melodias e orquestrações tocavam minha alma de uma forma que nenhum outro
compositor conseguia. Vez por outra eu topava com alguma coisa assim, de algum
compositor, e de repente tropeçava com algum texto falando sobre sua
homossexualidade. Samuel Barber, norte-americano e Francis Poulenc são exemplos
de compositores que ouvi, alguma peça em particular me tocou de forma como
outra jamais havia conseguido, e depois descobri que o cara era gay. No caso de
Poulenc, a peça em questão é essa.
Antes de colocar algo específico sobre a peça, há uma
coincidência também: minha primeira paixão foram os russos, incluídos os russos
de um grupo de compositores nacionalistas que foram chamados de “Grupo dos
Cinco” (Mussorgsky, César Cui, Rímski-Korsakov, Balakirev e Borodin), dos quais
o que eu mais apreciei sempre foi Korsakov (Tchaikovsky e Korsakov foram meus
heróis musicais russos da adolescência, seguidos de perto por Stravinsky). Já
Poulenc fazia parte do chamado “Les Six”, claramente inspirado no grupo russo,
formado por Georges Auric, Louis Durey, Arthur Honegger, Darius Milhaud,
Francis Poulenc e Germaine Tailleferre, dos quais eu só conheço de verdade
Poulenc; a galeria de gênios franceses que os precedeu é tão importante que
deve ter obscurecido esses músicos que nasceram na virada do século XIX para o
XX.
Especificamente sobre a peça, não é de fácil assimilação
para um ouvinte pouco familiarizado com o estilo. Ele utiliza coro, orquestra e
solista. Utiliza uma sofisticada harmonização que remete claramente a
Stravinsky, alterna bastante a dinâmica da música, algo que me agrada
demasiado, e utiliza melodias que me trazem por vezes a sensação de que, com
elas, poderia flutuar em um espaço livre da gravidade.
A peça é dividida em 6 partes:
·
I. Gloria in excelsis deo – uma introdução
orquestral inicia a peça e prepara o coro para a crescente entrada do coro numa
melodia vigorosa. Gosto de como a frase do coro termina, em um acorde
dissonante
·
II. Laudamus te – essa parte é alegre,
brincalhona, um pouco longe do espírito sóbrio e pesado de uma missa. Poulenc
chegou a dizer que partes da obra foi inspirada em uma partida de futebol
jogada por monges beneditinos que ele tinha assistido. Não duvido que tenha
sido essa. Aliás, há um trecho em que a peça atinge o clímax e, depois de uma
grande tensão, é interrompida e retomada com uma melodia muito melancólica para
depois retomar ao tema inicial, alegre. Esse trecho teria sido um pênalti
seguido de um gol tomado, revés sofrido pelo time que ele estava torcendo? Sacrilégio!
J
·
III. Domine deus – o solo de soprano nesse
trecho é pungente; a harmonização e o coro dando o pano de fundo já quase me
levaram às lágrimas em algumas das minhas incontáveis (mais de cem, talvez)
escutas ao longo dos anos.
·
IV. Domine fili unigenite – a introdução
orquestral desse movimento me parece genial; o diálogo que a orquestra
estabelece com o coro, nas duas melodias – a do coro e da orquestra – é
sensacional.
·
V. Domine deus, agnus dei – para mim o movimento
mais enigmático da peça, a solista volta a atuar; é o movimento mais longo e
que me soa harmonicamente mais sofisticado; gosto demais da tensão proposta
entre o coro e a solista, as constantes modulações e mudanças de intensidade;
são muito estimulantes
·
VI. Qui sedes, ad dextram Patris – último
movimento, sua entrada soa para mim como um “grand finale”. E não poderia ser
diferente: é o final grandioso da peça. Ele intercala uma seção alegre, para
depois desembocar em um Amém iniciado pela soprano solo que vai aos dialogando
com orquestra e coro num crescendo lento e majestoso até terminar em um amém
calmo e dissonante, no melhor estilo de Poulenc
A gravação que eu tenho dessa peça, um CD que comprei há
muitos anos, é uma das melhores referências que eu tenho da obra e não poderia
ser diferente, já que é interpretada pelo King's College Choir, Cambridge.
Para um ouvinte de primeira viagem, sua apreciação exige
algumas escutas repetidas até que seja possível sacar todas as nuances da peça
e realmente desfrutar do que ela tem a oferecer. Recomendo.
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