quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Fé na evolução?

“É preciso muito mais fé para acreditar na ‘teoria’ da evolução que no ‘relato’ da criação” (antigo provérbio chinês)

“Nunca vi macaco virar gente.
E barro virar gente, já viu?” (poema ancestral catalão)

O sujeito está largado no sofá assistindo algum canal Discovery, fascinado com o relato da reconstrução de um crime sem solução há 20 anos. Os investigadores, muito diligentemente, juntam os menores indícios possíveis, provas de DNA e conseguem reconstituir como teria sido a cena do crime. Mais um criminoso que havia se safado durante décadas atrás das grades. Muda de canal e se depara com outro programa em que está se fazendo um relato de como teria surgido a vida na terra. Meneia a cabeça, tsc, tsc, tsc, e muda de canal, pensando: como esses caras podem afirmar tamanhos absurdos se nunca estiveram lá? É preciso ter muita fé para acreditar nisso.

Em um pequeno vilarejo no sul de Minas Gerais, alguns cestos de lixo amanhecem revirados. Surgem duas teorias: (a) uma matilha de cães, que costuma vagar pela cidade, estava particularmente esfomeada naquela noite e saiu revirando os lixos à procura de alimento ou (b) um urso esfomeado saiu procurando comida nos cestos de lixo. Qual seria a alternativa mais razoável? Considerando o estado que se encontrariam os cestos, indícios de que um animal o teria revirado, seria muito mais simples supor que os cachorros tiveram um surto de fome e saíram revirando os lixos, afinal, qual a probabilidade de um urso aparecer do nada no sul de Minas revirando lixos? Para isso ocorrer teria que haver tantas variáveis envolvidas que tal possibilidade seria descartada como absurda. Mas eis que surge uma nova informação: “Cuidado!!! Nessa última noite um urso fugiu do circo que está de passagem pela cidade!” Bem, aí a coisa muda totalmente de figura, ainda que não descartada a possibilidade da matilha de cachorros, a ação do urso começa a ficar muito mais plausível. Mas ninguém viu. O que seria necessário para se descobrir o mistério? Indícios. Por exemplo, pegadas do urso, cercas avariadas compatíveis com um animal de grande porte, etc. Existe uma ferramenta lógica utilizada pela ciência chamada Navalha de Occam: “Quando duas ou mais explicações para um fenômeno dispõe do mesmo número de evidências aquela que envolva um menor número de entidades e pressupostos e for a mais simples tem maiores chances de ser a correta.” Aliás, o pensamento científico se baseia em alguns pressupostos muito importantes e essa ferramenta é um deles. Faz todo sentido.

Mas a história está longe de terminar. O pároco do lugarejo, uma pessoa muito respeitada, um sábio, entra em cena lembrando o pessoal que, segundo o capítulo e versículo tal do seu livro sagrado, e as interpretações canônicas do texto, há anjos que reviram cestos de lixo sempre que se dão determinadas condições supostamente existentes no episódio. Pronto, esquece, a teoria dos ursos tem que ser descartada:  quem defende a hipótese dos ursos deve ter muita fé, afinal faz muito mais sentido supor que foram os anjos que fizeram aquilo. OK, o exemplo foi bem grotesco, mas às vezes precisamos exagerar um pouco os exemplos para as contradições ficarem mais evidentes.

Obviamente, é impossível não se lembrar de Galileu Galilei que foi condenado pela igreja católica porque sua teoria de que a terra não era o centro do universo não passava de uma heresia teológica.

Voltando ao nosso “antigo provérbio chinês”, a noção que se tem hoje do surgimento da vida na terra e sua evolução é fortemente amparada por todas as descobertas científicas, não apenas na biologia, mas também nos demais ramos da ciência como a cosmologia, arqueologia, geologia, palenteologia... A exemplo dos investigadores criminais, os cientistas estão há séculos coletando indícios e tentando montar o quebra-cabeças que desvenda os mistérios da nossa existência aqui. Ainda que, conforme disse Einstein, nosso conhecimento científico perto da realidade seja primitivo e infantil, todos os indícios desse quebra-cabeça convergem para esse quadro do que se convencionou chamar de “evolução”. Certamente, no passado, quando os indícios praticamente não haviam sido descobertos, era preciso muito mais fé para acreditar em um processo evolutivo do que acreditar em que Deus teria feito o homem do barro e o lançado prontinho, zero bala, no jardim do éden. Mas, com as descobertas, muitas delas desconcertantes, obtidas por meio da ciência, agora parece muito mais razoável acreditar em processos evolutivos que o surgimento inesperado do ser humano feito a partir do barro por Deus.

Ciência é um tema árido e a maioria das pessoas não são atraídas por ela, é um esforço de alguns séculos apenas. Já a identificação com processos religiosos é algo que nos acompanha desde tempos imemoriais. Então, é natural que a maioria de nós nos sinta confortável no mundo dos postulados religiosos, afinal, nosso condicionamento para enxergar o mundo e compreendê-lo sob a perspectiva religiosa é de milênios, enquanto que o despertar científico é coisa de alguns séculos. Ainda estamos engatinhando na era científica. Demorará muito tempo (milênios?) para que consideremos normal explicações objetivas da realidade e não interpretações religiosas.

Por ser um tema árido, nós não temos o hábito de nos inteirarmos de como se dão esses processos científicos, de como essas “investigações” nos diversos ramos da ciência se complementam e explicam muita coisa da nossa realidade, até mesmo nossa insipiente compreensão de como viemos parar aqui. O curioso é que, no mundo das partículas, por exemplo, tudo é “teórico”. Postula-se uma ideia, tenta-se prova-la por meio de experimentos, se o resultado é positivo, a hipótese é provada. E assim a ciência segue desvendando os mistérios das partículas, ainda que não o compreendendo bem. Mas o que já é compreendido permite uma infinidade de aplicações que chegam até nós por meio da tecnologia. Ninguém está “vendo”, mas todos nós nos beneficiamos disso. Daí, o religioso criacionista aceita todo esse conhecimento científico sem questionar, sem descrer, mesmo que ele não leia nada a respeito em faça ideia de como se chegaram a tais resultados, afinal, ele está fazendo uso da tecnologia (como descrer disso?). No entanto, no caso da teoria da evolução, ainda que os procedimentos sejam rigorosamente os mesmos e as conclusões obtidas também permitam esse acúmulo de conhecimento, ainda que sempre provisório, o religioso criacionista não acredita e, se não bastasse, diz que o cientista tem mais fé do que ele.


Por fim, um esclarecimento bastante útil a respeito do “poema ancestral catalão”: a ciência não afirma que o homem veio do macaco. Esse é um engano que pode ser eliminado se interessando pelo assunto.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Waze, simulacro da experiência religiosa

Não sei se porque tinha tomado uma taça de vinho antes de buscar o Vitor na sua prova do vestibular Unicamp e já estava meio brisado, mas me ocorreu uma ideia interessante ao voltar da faculdade e observar o caminho sugerido pelo Waze até o posto de gasolina.

Eu sempre utilizo o Waze mesmo nas rotas conhecidas. A questão é que quase sempre há opções e escolher as opções de rota disponíveis implica em lidar com dilemas, já que uma rota escolhida pode ter algum problema e pode bater arrependimento de não se ter escolhido outra. Daí eu simplesmente delego a escolha da rota ao Waze. Se houver problema, pode ser que a outra rota estivesse pior, já que o algoritmo do Waze escolhe, em tese, a melhor rota: a tendência é acreditar que o Waze escolheu o que é melhor para minha rota. E mesmo que não seja a melhor rota, sempre há a possibilidade de colocar a culpa no Waze, já que a escolha não foi minha. Também há um benefício adicional: não preciso ficar pensando no caminho a escolher, o Waze o faz por mim.

O paralelo com a atitude religiosa me pareceu muito evidente (acho que vou tomar mais vinho, gostei da brisa). Em um sentido específico, a religião não é exatamente isso, delegar (ou achar que se está delegando) a uma divindade nossas escolhas? Se achamos que a divindade escolheu e não nós, se algo não sai exatamente como gostaríamos, sempre há a possibilidade de conforto do “Deus tem seus mistérios”, “foi a vontade de Deus”. Então, pensando bem, é uma maneira muito fácil de lidar com a vida, quando acreditamos que estamos sendo tutelados por uma divindade: nada dará errado, afinal, Deus está no comando. E se der muito errado, sempre há a possibilidade de colocar a culpa no diabo, aquele desgraçado!

Adoremos o deus Waze. Aleluia!

sábado, 14 de janeiro de 2017

O inseto

O inseto já estava sobrevoando havia um tempo e me incomodava. Tentei enxotá-lo pela janela do escritório, sem sucesso. Foi quando assoprei e ele aterrissou de costas na bancada do escritório. Fui até o banheiro, peguei um pedaço de papel higiênico e tentei pegá-lo cuidadosamente. Não tive muito sucesso e, quando consegui, percebi que o lastimara. Então, tomei a decisão definitiva e radical: envolvi-o cuidadosamente em várias camadas do pedaço de papel e apertei o montículo com muita pressão, de uma única vez. Com isso dei-lhe uma morte rápida e digna, lamentando o desfecho dramático. Depositei respeitosamente seus restos mortais na lixeira do banheiro em uma atitude de quase prece. Amém.
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segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Ler é preciso (edição 2016)

2016 foi um ano muito intenso em vários aspectos e isso refletiu negativamente em algumas das minhas atividades mais caras, uma delas a leitura. Além de gostar muito de ler, gostaria de ter muitas vidas para poder ler todos os livros da minha lista, apenas pelo prazer de manter contato com o pensamento de outras pessoas. Por isso mesmo li menos do que gostaria no ano que se foi. Dessa  vez, eu, um amante das estatísticas, acrescentei um detalhe a mais nos meus registros, que é a quantidade de páginas de cada livro, ideia copiada do Thiago Mendanha. É uma informação que não agrega muita coisa mas satisfaz essa minha estranha tara por estatísticas:

  1. Chatô, o Rei do Brasil (Fernando Morais) - 616 páginas
  2. As transformações na música popular brasileira - um processo de branqueamento? (Patricia Crepaldi) - 148 páginas
  3. Contos Fluminenses (Machado de Assis) - 167 páginas
  4. Histórias da meia-noite (Machado de Assis) - 111 páginas
  5. Da necessidade de um pensamento complexo (Edgar Morin) - 27 páginas
  6. Sapiens Uma Breve Historia da Humanidade (Yuval Noah Harari) - 464 páginas
  7. Presos que menstruam (Nana Queiroz) - 294 páginas
  8. Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios (Marçal Aquino) - 232 páginas
  9. Entre rinhas de cachorro e porcos abatidos (Ana Paula Maia) - 160 páginas
  10. Como água para chocolate (Laura Esquivel - espanhol) - 205 páginas
  11. Primeiro amor (Samuel Beckett) - 32 páginas
  12. Condessa sangrenta (Alejandra Pizarnik) - 60 páginas
  13. Como conversar com um fascista (Márcia Tiburi) - 196 páginas
  14. O irmão alemão (Chico Buarque) - 237 páginas
  15. Música de invenção - volume 2 (Augusto de Campos) - 144 páginas


3.093 páginas, ou seja, 8,47 páginas  por dia, olha que beleza, seja  pra que isso sirva!

Por fim, comecei o ano lendo um  novo livro iniciado no último dia 31 de dezembro, por sugestão da Rina Pri: Breve Historia de Quase Tudo (Bill Bryson) é mais um daqueles livros sobre um dos temas que mais me  apaixona, muitas perguntas e algumas respostas sempre provisórias sobre esse deslumbrante mundo em que vivemos e o mistério da vida.edi