Ele não assistia muita televisão. Não tinha muita paciência
para assistir programas, jornais ou mesmo filmes. Gastava seu tempo em frente à
TV zapeando pelos canais, sem se fixar em nada. Por isso, conhecia quase todos
os programas mas não conhecia nenhum muito bem. Os programas de auditório lhe
pareciam ridículos e, se existe algo que ele não faria na vida, seria
participar de um programa desses. Aquelas pessoas imbecilizadas rindo dos comentários
sem graça dos apresentadores.
Um dia um amigo vizinho de bairro lhe perguntou se ele
toparia lhe acompanhar a um programa de auditório. Inicialmente ele relutou mas
depois a ideia lhe pareceu fantástica. Aparecer na TV, participar da
experiência de algo que seria visto talvez por milhões de pessoas, aquela
vibração toda... Ele topou sem reservas. Seu amigo cuidou dos aspectos
burocráticos e, naquela manhã ensolarada, lá estavam os dois juntos com a
pequena multidão recebendo as instruções e o lanchinho antes de começarem as
gravações.
O programa começou, ele se sentou mais ou menos no meio da
plateia que lhe lembrava, assim meio distante, a disposição de um cinema, se é
que ele já havia estado em um cinema antes. O programa lhe pareceu interessante
e a apresentadora chata era apoiada por diferentes colaboradores em quadros
distintos. Um dos colaboradores apresentava um quadro com curiosidades do mundo
do entretenimento e, naquele dia, trouxera uma reportagem de pessoas comuns – e
desconhecidas – sósias de famosos. A reportagem promovia o encontro entre ambos
e o ponto alto da reportagem era uma cidadã daquele país sósia de uma das
maiores estrelas de Hollywood, a Anne Hairgrow. A repórter havia conseguido uma
entrevista com a atriz e, ao colocar as duas mulheres frente a frente, era
impressionante a semelhança entre elas; a desconhecida mal conseguia conter sua
emoção e não disse nada, mesmo porque não entendia bulhufas do que as outras duas
conversavam. De forma inusitada, a
repórter incentivara um abraço entre ambas; a atriz abraçou a desconhecida de
forma cálida e afetuosa e recebeu em contrapartida um abraço frouxo e um tanto
esquivo da anônima.
No final da reportagem, um desafio foi proposto aos
presentes e aos colaboradores da apresentadora chata: descobrir o motivo pelo
qual a desconhecida não entendera nada da conversa. Várias possibilidades foram
levantadas, mas a mais plausível era porque ela não conseguiria rebater uma
bola no chão com as mãos a uma certa velocidade determinada pelo ritmo de uma
música romântica que iria ser tocada. Trouxeram uma bola de plástico pequena,
colocaram a música para tocar, e o primeiro a tentar cumprir o desafio foi o
repórter que apresentara o quadro. Sem chance: ele era incapaz de se adequar ao
ritmo da música. Conseguiram outra bola, uma enorme, e nada! Os participantes
foram convidados a encarar o desafio e fizeram uma fila para ver se conseguiriam.
Ninguém conseguia. Foi quando ele, inquieto na sua poltrona, se levantou,
invadiu o palco e disse o óbvio: “gente, basta colocar uma mesa dessa altura,
subir em cima e rebater a bola a partir daí que se consegue fazê-lo no ritmo da
música!” Utilizando o seu alto poder de improvisação, os assistentes de palco conseguiram
uma mesinha, convidaram um dos participantes do programa que, coincidência,
vinha a ser um vizinho seu da rua de trás, que subiu na mesinha, não sem antes
responder ao seu cumprimento de “aê, truta!”, seguido de 23 toques diferentes
de mão.
O desafio do quadro havia sido cumprido graças à sua intervenção
mas, antes de refazerem o cenário, a apresentadora lhe chamou discretamente e
lhe disse que ele não deveria ter se manifestado sem ser chamado e que seu
cumprimento ao outro participante solicitado fora totalmente desnecessário e
tumultuara o programa. Bastante desconfortável, ele retornou à sua poltrona e
continuou a acompanhar o programa. Mas o fato é que o episódio com a
apresentadora lhe deixara profundamente chateado e tudo aquilo perdera seu
encanto. Acometido por uma sonolência incontrolável por causa da chatice que se
tornara o programa, ele resolveu puxar um travesseiro e se acomodou ali mesmo
na poltrona. Já estava quase engatando um sonho quando foi desperto, de maneira
brusca, pela apresentadora que, com todas as câmeras voltadas para ele, o
repreendia duramente por dormir durante o programa, algo extremamente
deselegante.
Aquilo foi demais para ele. Do mais íntimo de suas entranhas
foi surgindo uma gastura, um calor revolvendo seus órgãos internos, uma raiva
incontida que foi crescendo rapidamente, subjugando-o até que explodiu pelo
peito e a dor resultante saltou para fora em frases desconexas e impropérios. E
ele esbravejou, xingou, descarregou todas as injustiças sofridas por seus
ancestrais, sua raça, seus amigos, seus inimigos, todas vítimas daquele sistema
falido, corrupto, perverso, insano, vil, que triturava as pessoas, que fazia o
que queria delas, que zombava dos indefesos, que espoliava as velhinhas, que
surrava os mais fracos! Gritou até ficar quase rouco. Não escapou ninguém, nem
mesmo o dono da padaria que no dia anterior havia lhe devolvido 15 centavos de
troco a 1 real que ele havia dado para pagar os 2 pãezinhos que custaram 81
centavos e que se fosse justo e desprendido o dono da padaria arredondaria para
80 centavos que estava mais próximo não para 85 num claro desrespeito à sua
inteligência e dignidade não era pelos 4 centavos era porque aquele dono da
padaria era mais um agente daquele sistema corrupto e diabólico que faz questão
de oprimir os mais fracos os mais gentis os mais distraídos aquele filho da
puta avarento!
E como sua raiva não terminava nunca e ninguém ousava
pará-lo, estupefatos que estavam de sua inesperada reação, resolveu ligar o
piloto automático, sair de si mesmo e se sentar numa poltrona próxima para se
deliciar também com o espetáculo. Foi quando ele se deu conta do patético da
situação. Correu rapidinho para dentro de si e encerrou o espetáculo tão logo
pode controlar a torrente que emanava de sua garganta. Parou ofegante, suado e
meio zonzo. Envergonhado, começou a se afastar, trôpego, rumo à porta de saída.
Uma jovem senhoura
foi a única a reagir e ensaiou uma reprimenda com o dedo em riste quando ele
passava por ela: “Seu maluco de...” Mas ele ainda tinha bala na agulha e a
interrompeu bruscamente: “Epa, epa, epa! Pega esse dedo nojento e enfia bem no
meio do seu nariz, sua puxa-saco!” E arrematou: “Pensou que eu iria dizer outro
lugar, né? Não dá porque ele está cheio de merda!” A assistência explodiu numa
gargalhada.
Em passos rápidos ele alcançou a porta lateral e se meteu em
um corredor escuro, rumo à saída, ainda a tempo de ouvir a apresentadora chata
chorando inconsolavelmente em uma sala no piso superior, ao fundo do estúdio de
gravação, provavelmente a sala do diretor do programa, se é que existe isso.
Lá fora, uma garoa fria e irritante caía. Ele se encolheu,
escondeu as mãos nos bolsos da calça e sumiu no escuro da noite meneando a
cabeça: “bando de malucos!”