quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Compadre Gavião e Compadre Urubu

(da série Contos da dona Ilza)

Diz que o Compadre Gavião estava com muita fome e resolveu sair em busca de algo para comer. Voou, voou, até que encontrou o Compadre Urubu. O Compadre Urubu vê o Compadre Gavião naquela aflição toda e lhe pergunta:
- Onde você vai, Compadre Gavião, tão afobado?
- Eu vou ali achar alguma coisa pra comer! Vamos comigo, compadre?
- Nãão, compadre, responde gravemente o Urubu, eu só como quando está morto, assim, sem pressa. Não gosto de sair atrás das coisas, não.
- Mas vamos comigo, me acompanhe!, insiste o Gavião.
- Não, eu só como quando está assim, deitado, no chão, quando já está morto. Eu não gosto de sair procurando a comida assim, desesperado!
- Mas vamos comigo, compadre, você vai comer já já!
- Tá bom!
É tanta a insistência do Gavião que o Urubu cede.
O Gavião, voando bem à frente, se perde em suas preocupações: “É já que eu vou encontrar alguma coisa pra comer com o Compadre Urubu.”
Logo mais à frente há uma árvore ressequida, toda escangalhada, cheia de pontas, e o Gavião, voando naquela euforia, não se dá conta e, numa fração de segundos... ploft!, estatela-se contra uma ponta de pau e fica travado. Desesperado, começa a bater as asas freneticamente.
Nisso vem chegando o Compadre Urubu lá de trás, na maior tranquilidade...
Quando o Gavião olha de lado e vê que o Urubu vem chegando, suplica:
- Compadre Urubu, pelo amor de Deus, me tire daqui! Tire eu daqui, compadre, que eu não vi esse toco! Eu me enganchei aqui!
O Urubu calmamente lhe responde:
- Não, compadre, você se esqueceu? Eu só como os mortos...
- Nããão, compadre!!! Pelo amor de Deus!!!!! Não vai fazer isso comigo, não!
- Mas compadre, eu só como quando está morto mesmo...

domingo, 9 de novembro de 2014

O programa

Ele não assistia muita televisão. Não tinha muita paciência para assistir programas, jornais ou mesmo filmes. Gastava seu tempo em frente à TV zapeando pelos canais, sem se fixar em nada. Por isso, conhecia quase todos os programas mas não conhecia nenhum muito bem. Os programas de auditório lhe pareciam ridículos e, se existe algo que ele não faria na vida, seria participar de um programa desses. Aquelas pessoas imbecilizadas rindo dos comentários sem graça dos apresentadores.

Um dia um amigo vizinho de bairro lhe perguntou se ele toparia lhe acompanhar a um programa de auditório. Inicialmente ele relutou mas depois a ideia lhe pareceu fantástica. Aparecer na TV, participar da experiência de algo que seria visto talvez por milhões de pessoas, aquela vibração toda... Ele topou sem reservas. Seu amigo cuidou dos aspectos burocráticos e, naquela manhã ensolarada, lá estavam os dois juntos com a pequena multidão recebendo as instruções e o lanchinho antes de começarem as gravações.

O programa começou, ele se sentou mais ou menos no meio da plateia que lhe lembrava, assim meio distante, a disposição de um cinema, se é que ele já havia estado em um cinema antes. O programa lhe pareceu interessante e a apresentadora chata era apoiada por diferentes colaboradores em quadros distintos. Um dos colaboradores apresentava um quadro com curiosidades do mundo do entretenimento e, naquele dia, trouxera uma reportagem de pessoas comuns – e desconhecidas – sósias de famosos. A reportagem promovia o encontro entre ambos e o ponto alto da reportagem era uma cidadã daquele país sósia de uma das maiores estrelas de Hollywood, a Anne Hairgrow. A repórter havia conseguido uma entrevista com a atriz e, ao colocar as duas mulheres frente a frente, era impressionante a semelhança entre elas; a desconhecida mal conseguia conter sua emoção e não disse nada, mesmo porque não entendia bulhufas do que as outras duas conversavam.  De forma inusitada, a repórter incentivara um abraço entre ambas; a atriz abraçou a desconhecida de forma cálida e afetuosa e recebeu em contrapartida um abraço frouxo e um tanto esquivo da anônima.

No final da reportagem, um desafio foi proposto aos presentes e aos colaboradores da apresentadora chata: descobrir o motivo pelo qual a desconhecida não entendera nada da conversa. Várias possibilidades foram levantadas, mas a mais plausível era porque ela não conseguiria rebater uma bola no chão com as mãos a uma certa velocidade determinada pelo ritmo de uma música romântica que iria ser tocada. Trouxeram uma bola de plástico pequena, colocaram a música para tocar, e o primeiro a tentar cumprir o desafio foi o repórter que apresentara o quadro. Sem chance: ele era incapaz de se adequar ao ritmo da música. Conseguiram outra bola, uma enorme, e nada! Os participantes foram convidados a encarar o desafio e fizeram uma fila para ver se conseguiriam. Ninguém conseguia. Foi quando ele, inquieto na sua poltrona, se levantou, invadiu o palco e disse o óbvio: “gente, basta colocar uma mesa dessa altura, subir em cima e rebater a bola a partir daí que se consegue fazê-lo no ritmo da música!” Utilizando o seu alto poder de improvisação, os assistentes de palco conseguiram uma mesinha, convidaram um dos participantes do programa que, coincidência, vinha a ser um vizinho seu da rua de trás, que subiu na mesinha, não sem antes responder ao seu cumprimento de “aê, truta!”, seguido de 23 toques diferentes de mão.

O desafio do quadro havia sido cumprido graças à sua intervenção mas, antes de refazerem o cenário, a apresentadora lhe chamou discretamente e lhe disse que ele não deveria ter se manifestado sem ser chamado e que seu cumprimento ao outro participante solicitado fora totalmente desnecessário e tumultuara o programa. Bastante desconfortável, ele retornou à sua poltrona e continuou a acompanhar o programa. Mas o fato é que o episódio com a apresentadora lhe deixara profundamente chateado e tudo aquilo perdera seu encanto. Acometido por uma sonolência incontrolável por causa da chatice que se tornara o programa, ele resolveu puxar um travesseiro e se acomodou ali mesmo na poltrona. Já estava quase engatando um sonho quando foi desperto, de maneira brusca, pela apresentadora que, com todas as câmeras voltadas para ele, o repreendia duramente por dormir durante o programa, algo extremamente deselegante.

Aquilo foi demais para ele. Do mais íntimo de suas entranhas foi surgindo uma gastura, um calor revolvendo seus órgãos internos, uma raiva incontida que foi crescendo rapidamente, subjugando-o até que explodiu pelo peito e a dor resultante saltou para fora em frases desconexas e impropérios. E ele esbravejou, xingou, descarregou todas as injustiças sofridas por seus ancestrais, sua raça, seus amigos, seus inimigos, todas vítimas daquele sistema falido, corrupto, perverso, insano, vil, que triturava as pessoas, que fazia o que queria delas, que zombava dos indefesos, que espoliava as velhinhas, que surrava os mais fracos! Gritou até ficar quase rouco. Não escapou ninguém, nem mesmo o dono da padaria que no dia anterior havia lhe devolvido 15 centavos de troco a 1 real que ele havia dado para pagar os 2 pãezinhos que custaram 81 centavos e que se fosse justo e desprendido o dono da padaria arredondaria para 80 centavos que estava mais próximo não para 85 num claro desrespeito à sua inteligência e dignidade não era pelos 4 centavos era porque aquele dono da padaria era mais um agente daquele sistema corrupto e diabólico que faz questão de oprimir os mais fracos os mais gentis os mais distraídos aquele filho da puta avarento!

E como sua raiva não terminava nunca e ninguém ousava pará-lo, estupefatos que estavam de sua inesperada reação, resolveu ligar o piloto automático, sair de si mesmo e se sentar numa poltrona próxima para se deliciar também com o espetáculo. Foi quando ele se deu conta do patético da situação. Correu rapidinho para dentro de si e encerrou o espetáculo tão logo pode controlar a torrente que emanava de sua garganta. Parou ofegante, suado e meio zonzo. Envergonhado, começou a se afastar, trôpego, rumo à porta de saída.

Uma jovem senhoura foi a única a reagir e ensaiou uma reprimenda com o dedo em riste quando ele passava por ela: “Seu maluco de...” Mas ele ainda tinha bala na agulha e a interrompeu bruscamente: “Epa, epa, epa! Pega esse dedo nojento e enfia bem no meio do seu nariz, sua puxa-saco!” E arrematou: “Pensou que eu iria dizer outro lugar, né? Não dá porque ele está cheio de merda!” A assistência explodiu numa gargalhada.

Em passos rápidos ele alcançou a porta lateral e se meteu em um corredor escuro, rumo à saída, ainda a tempo de ouvir a apresentadora chata chorando inconsolavelmente em uma sala no piso superior, ao fundo do estúdio de gravação, provavelmente a sala do diretor do programa, se é que existe isso.


Lá fora, uma garoa fria e irritante caía. Ele se encolheu, escondeu as mãos nos bolsos da calça e sumiu no escuro da noite meneando a cabeça: “bando de malucos!”

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O pernilongo

Há pouco, na praça de alimentação, enquanto lia minha revista sentado à mesa e aguardava a senha avisar-me que a salada caesar estava disponível, vi um pernilongo, ignorando solenemente o risco capital que corria, pousar na mesa junto a mim e ficar, aparentemente, exercitando suas patinhas (desconheço os hábitos dos pernilongos quando não estão a se deliciar com a seiva humana). Sua desatenção ao perigo que estava exposto era tanta que ele parecia desafiar-me: mate-me, mate-me! Um movimento súbito com a revista e ele estaria liquidado. Entretanto, dominado por um incontrolável sentimento de ternura, por um derrame de compaixão por aquele tão minúsculo e frágil ser, feito um spharion, o máximo que consegui de reação, depois de uma breve reflexão sobre a inutilidade do meu projeto assassino, foi enxota-lo suavemente com minhas folhas de celulose plastificada, como quem lhe dava mais uma chance de se aventurar e arriscar mais um banquete com o sumo de alguma pele desprevenida, antes de final e irremediavelmente ser despachado para o reino dos desencarnados, em um futuro próximo.