sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Um conto do Dia da Consciência negra



 (Baseado em fatos reais)


Mazi Mwan migrara da África para o Brasil. Na condição de refugiado. Um garoto esperto, super esforçado. Com ajuda de organizações não governamentais, conseguiu entrar na universidade por meio das cotas. Tudo bem que ele era visto com desconfiança dentro da universidade: lá vai o desgraçado que roubou a vaga do meu primo que ficou na classificação 4.230. Mas ele sabia do seu potencial.

Estava já no 3º ano e era aluno destaque da sua turma. Porque fora por meio das cotas que ele tivera a oportunidade de chegar à universidade, algo que os bem nascidos do país que o acolhera conseguiam muito facilmente somente por serem bem nascidos. O importante era que estava lá. Não importava se apontavam o dedo para ele.

Em um dos projetos escolares, visitaram uma importante empresa da cidade e lá fizeram um laboratório. Um representante da empresa perguntou ao professor que os orientava se havia algum aluno que ele indicasse para uma nova posição de trainee que estava surgindo na empresa, porque eles haviam gostado bastante daquela equipe. 

O professor, naturalmente, indicou seu melhor aluno, Mazi Mwan. Que ficou muito feliz, um sonho se realizaria. Ele era exemplo de superação: chegara da África como refugiado, com o auxílio de ONGs que lhe apoiaram em todo o processo de aculturação no país e preparo para a universidade, conseguira o ingresso na prestigiada universidade e agora estava prestes a ingressar no mercado de trabalho por um projeto trainee em uma conceituada empresa.

Mas algo estranho aconteceu: a empresa nunca o chamou. Intrigado, o professor entrou em contato com a empresa para saber se eles haviam desistido de abrir a posição de trainee. A informação que recebeu da empresa é que outro professor também havia sugerido outro aluno e eles preferiram o outro por se encaixar mais no perfil da empresa. Quem foi o outro aluno? – perguntou o professor. 

A revelação do nome do outro aluno lhe deixou mais confuso ainda. O aluno tinha um desemprenho bem inferior ao de Mazi Mwan e a empresa sequer tinha se dado ao trabalho de incluir Mazi Mwan no processo seletivo, adotando de cara a indicação do outro professor.

A única explicação que o professor encontrou para a preferência da empresa é que o outro aluno, de desempenho bem inferior ao de Mazi Mwan, era loiro e tinha olhos claros. Será que era isso que a empresa quis dizer quando afirmou que o outro se encaixava mais no perfil da empresa?

Quanto a Mazi Mwan, teve que lidar com sua profunda frustração. Mais uma, na vida de quem nasceu com “a cor errada”.

Por essas e por outras que o Dia da Consciência Negra é tão importante.


sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Enlouquecemos todos?

 


Depois de um dia intenso em que eu estava tentando domar uma squamata phytonidae, fui fazer umas palavras cruzadas para descansar a mente. Descanso minha mente carregando tijolo. Mas você sabe né? O diabo mudou-se dos detalhes para o Facebook. E lá vem a notificação de um grupo que me colocaram algum dia. O assunto é filosofia.

Interagi de forma bastante irônica com uma das pessoas na publicação e sua incapacidade e das demais pessoas perceberem minha ironia escrachada me deixou pensativo: será que enlouquecemos todos?

Uma coisa é fato: a quantidade de pessoas dizendo sandices nas redes sociais, as coisas mais absurdas, sem o menor sentido, as convicções surreais, a inacreditável absolutização das opiniões, pior, opiniões totalmente piradas, enfim, esse sanatório geral em que se tornou o Brasil dos tempos bolsonaristas, é algo que garante o estupor meu de cada dia. Com uma frequência assustadora vejo amigos que até pouco tempo me pareciam, se não pessoas com um pensamento mais equilibrado ou mesmo uma forma de se expressar elegante, cristalina, ao menos pessoas que pensavam medianamente, tinham uma percepção da realidade distorcida por uma série de crenças superadas, mas não chegava a ser nada patológico.

Tenho a impressão de que, em meio a tanta gente histérica e surtada, estamos perdendo a capacidade de separar o que é real do que não é: uma ironia, por exemplo. Ironia nunca foi algo trivial, mas o exagero é algo facilmente detectável, porque se apresenta como uma deformação monstruosa da realidade. Mas, de repente, vivemos em um ambiente em que as deformidades de pensamento se tornaram tão explícitas, as pessoas se orgulham tanto de seus monstros pessoais, que simplesmente perdemos a referência: não sabemos mais se uma pessoa está sendo irônica ou é louca mesmo.

Isso me parece muito preocupante.

Voltando ao Facebook, a publicação me chamou a atenção, corri os olhos nos comentários e um deles me chamou atenção em particular. Daí, pensando em fazer uma “piada irônica e amigável” com a pessoa que tinha feito o comentário, respondi-lhe incorporando o fanático religioso, mas a pessoa não entendeu. Eu pensei, inicialmente, que minha ironia seria suficiente. Mas não. Resolvi aumentar as doses de ironia, mas mesmo assim a pessoa não sacou. No fim, joguei a toalha, antes que me denunciassem ao Facebook por mau comportamento.

Abaixo a conversa com alguns comentários meus entre parênteses:

ATEU: Sou ateu por convicção e opção.

EU: Filho de Belial, quando você chegar no inferno de fogo e enxofre, onde o Deus amoroso te lançará tão certo quanto o ar que eu respiro, quero ver onde você meterá sua convicção e opção. Arrependa-se antes que seja tarde. Porque Deus é amor mas também é justiça.

ATEU: Obadias de Deus, o seu sectarismo transcende ao ópio e a insanidade. Procure um psiquiatra já!

(Um cara entrou na conversa, quem eu chamarei de ATEU2)

ATEU2: Obadias de Deus Ahahahah pensei até que era uma piada mano, e esse nome ainda p cima kkkkkkkk. Na real não há nenhuma justiça em condenar alguém ao sofrimento eterno só pq ele não acredita em algo que não vê. E ainda diz que deuch é “amoroso” kkkkkkkkkkkkk 🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣🤣

EU: ATEU2 piada??? Nunca falei tão sério, seu jebuseu incircunciso! 🍐 que vou orar pra Deus te tacar um câncer, seu ímpio de dura cerviz, filho de uma Raabe Madalena! 😡😡😡😡😡

ATEU2: Obadias de Deus, quanto amor de cristo estás emanando, meu caro! Posso sentir daqui os eflúvios benfazejos. Até minha querida mãe que nem ao menos sabe dessa celeuma, foi implicada... Mostra bem a laia dos que se dizem “os eleitos de deus” Tenho muito nojo de vcs e um pouco de pena também

ATEU2: PS: sou circuncidado sim, mas não devido à palhaçada judaica e sim a higiene – se quiser envio foto comprobatória

ATEU: Vc não passa de um mentecapto, vesânico, ANENCÉFALO, ACÉFALO, CACÓFAGO.

EU: ATEU, está me chamando de cacófato gago? Só fico gago diante do poder de Deus.

(Ok, essa piadinha foi bem ruim, mas foi a única que me ocorreu na hora)

EU: ATEU2 sua querida mãe não foi implicada. Eu falo da filiação espiritual. Se você estudar a Bíblia, além de ser salvo, vai entender o que eu quis dizer, amém? Quanto a ter nojo de mim, não tenha. Pensa bem: enquanto eu estiver nas bodas do cordeiro, em ruas de ouro, com Abraão, Isaque e Jacó, as 70 virgens (não, 🍐, as 70 virgens são no céu islâmico, me confundi), as 5 virgens prudentes, onde você estará? No inferno fedendo a enxofre. Pelo que consigo imaginar, o nojento será você, não?

EU: Vocês ateus são uma piada. Se Deus não existe, quem acende o bumbum dos vagalumes? Hein?

(Essa do vagalume me ocorreu porque eu tinha acabado de preencher a palavra VAGALUME no desafio de palavras cruzadas que estava fazendo: adoro jogos de palavras, duplo sentido, metáforas; e foi uma tentativa de mandar algo bem surreal pra ver se meus interlocutores perceberiam, finalmente, que eu estava sendo irônico)

(Aparentemente uma mulher viu a suposta surra que um suposto fanático religioso estava tomando de 2 ateus e fez uma pergunta; tive a impressão de que ela ficou com pena de mim e tentou dar uma aliviada. Por isso a chamarei de BOA SAMARITANA)

BOA SAMARITANA: ATEU Cê é filósofo?

ATEU: Significado de CACÓFAGO: É um adjetivo. "AQUELE QUE COME COISAS REPUGNANTES, EXCREMENTOS".

(De fato, não conhecia o termo. Aprendemos sempre. Aprendi mais uma)

ATEU: BOA SAMARITANA, qual é a essencialidade da pergunta? Filósofo todos nós somos, lógico: cada um com sua superficialidade...

EU: ATEU, essa eu não conhecia. De verdade. Cacófago. Obrigado por me ensinar essa. Fico lhe devendo essa. Agora vou utilizar essa maravilhosa palavra, nada eufônica, para acabar com a raça dos ateus e suas miseráveis ideias cacofônicas. A Bíblia diz que Jesus chorou. As pessoas acreditam que foi pela morte de Lázaro. Mas o Espírito Santo de Deus me revelou que não foi por isso. O motivo foi outro. Só não está nas Sagradas Escrituras porque ia pegar mal pro meu savior. Mas a verdade é que tinha um ateu cacófago do lado emitindo cacofonias ao dizer que Lázaro já não tinha mais jeito, já estava morto há dias. Jesus já irritado com aquele filho de Belial, sumamente irritado, acabou se emocionando e chorou, porque, apesar de ser Deus, também é filho do Homem. E homem que é homem, chora. Daí ele disse pro ateu: "Ô meu, para! Não enche o saco! Deixa eu fazer meu trampo, cacete! Pra quem pôs os bovinos pra cagar em forma de pasta e os caprinos pra cagar em forma de bolinhas, ressuscitar um presunto é brincadeira de criança, é trivial! Aparte-te de mim, ó tu comedor de bosta! Vai ter com as pastas e as bolinhas, cacófago!" Com um braço deu um jab no ateu e com outro tirou a pedra no túmulo, arrancou o defunto lazarento pra fora e... Bem, não vou dar spoiler. Quer saber o final da história? Vai ler a Bíblia. Quem sabe você aprende alguma coisa. Que la luciérnaga de Dios, lucena para os íntimos, te ilumine com seu bumbum fosforescente.

(“Luciérnaga de Dios” – “luciérnaga” é vagalume em espanhol – e lucena foi um feliz trocadilho que me ocorreu com o sobrenome Lucena de um amigo que, quando mandei a frase que me ocorreu, “Se Deus não existe, quem acende o bumbum dos vagalumes? Hein?”, ele me devolveu outra igualmente deliciosa, “Quem pôs os bovinos pra cagar em forma de pasta, e os caprinos em forma de bolinhas?” A pergunta dele foi tão deliciosa que tive que incluir no meu diálogo com os créditos devidamente cifrados. E por falar em cifra e jogo de palavras, “Obrigado por me ensinar essa. Fico lhe devendo essa. Agora vou utilizar essa maravilhosa palavra” foi proposital, pra forçar o vício de linguagem “eco”, uma cacofonia, já que eu iria falar justamente sobre isso 😊; ok, explicar piada é péssimo, mas já que estou comentando...)

EU: BOA SAMARITANA, concordo com o ATEU: todos somos filósofos, posto que todos somos pensantes. Eu apenas acrescentaria um detalhe: um bom filósofo entende ironia.


Enfim, espero que dessa vez eles saquem a ironia. O que me impressionou mesmo foi a incapacidade de eles perceberem o quanto eu estava sendo irônico. E é isso exatamente o que me causou a reflexão: ou as pessoas têm uma profunda incapacidade de entenderem ironia, ou – o que me parece mais provável – o espaço público e virtual está recentemente tão infestado de loucos, alucinados, fanáticos, que a gente acaba perdendo a capacidade de identificar uma irona, por mais exagerada e absurda que seja, contaminados que estamos por essa explosão de zumbis fanáticos nessa distopia apocalíptica bolsonarista walkingdeadiana que tem sido o Brasil dos últimos tempos.

Tempos tristes, apesar das piadas, memes, ironias e gargalhadas.


segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Múltiplas personalidades



 A personagem Ondine Duquette da série Netflx Ratched me levou a uma viagem no tempo. 1986. Acabara de completar 17 anos. Conferi a data na minha CTPS. Eu trabalhava na Mercantil São Caetano, uma concessionária da João Apolinário e Cia.

Abre Parênteses

Nunca tive curiosidade em saber quem é essa figura João Apolinário que aparece na minha CTPS. Acabei de pesquisar e... incrível, João Appolinário é nascido em São Caetano do Sul e é presidente, proprietário e fundador da Polishop. É conhecido como o "homem da tevê" ou o "rei da TV do Brasil" por ser o maior anunciante da televisão brasileira. (Wikipédia). Não fazia a menor ideia.

Fecha Parênteses

Então

Eu era office-boy e comigo trabalhava outro garoto também office-boy. Vivia em um bairro mais pobre de São Caetano, que tinha uns cortiços, se não me falha a memória, Vila São José.

Mas o que me chamava atenção nele é que se tratava de um garoto extremamente inteligente. Falava francês. Aprendera sozinho, lendo livros. Sempre tive admiração por pessoas intelectualmente mais arrojadas. Era o caso desse garoto. Conversávamos bastante.

Ele também frequentava uma casa de umbanda. Opa! Isso é coisa do diabo. Era meu papel, como cristão, salvá-lo do inferno. Mas antes de salvá-lo, fiz todas as perguntas possíveis a respeito do que ocorria na umbanda, como ele fora parar naquela antessala do inferno.

Ele me contou tudo. Confesso que era fascinante. O mais fascinante eram os guias que ele recebia. Ele me dissera que fora parar na umbanda porque recebia esses espíritos e lhe disseram que ele deveria desenvolver sua mediunidade. Claro que não, dizia eu, esses espíritos na realidade são demônios. E comecei a levar a Bíblia para ele ler comigo, mostrando-lhe pelas escrituras sagradas, como era certo e verdadeiro o que eu dizia.

Ele não gostava de ler a Bíblia. Passava mal. Dizia que eram os espíritos que ficavam incomodados. Tá vendo? Por que incomodados? São demônios. Não suportam a palavra de Deus!

Passávamos todo o tempo do almoço conversando. E confesso que eu gostava. Porque, depois de um certo tempo falando com ele, do nada ele era possuído por um espírito qualquer e conversava comigo. Lembro-me que um dos espíritos era de um garotinho que havia morrido quando garotinho. Por isso espírito garotinho. Elementar, meu caro Watson. Ele falava como uma criancinha, enchia as bochechas emburrado, fazia biquinho. Era engraçado. Sempre que ele voltava do transe, sem noção do que tinha acontecido, me perguntava o que ele tinha feito e, quando eu lhe explicava, identificava o espírito.

Então eu gostava de provocá-lo apenas para desencadear o transe e a possessão de algum desses espíritos. Muito antes dos shows deprimentes e trapaceiros da IURD na TV, veja que coisa!

Com o tempo ele me disse que seus guias, esse era o termo, haviam lhe dito em uma sessão na casa de umbanda que ele deveria se afastar de mim porque eu era alguém perigoso, uma péssima influência para ele. Pensa na sensação de poder. O diabo está com medo de mim! Eu estava com a bola toda.

Ele me disse que havia um espírito muito forte, Exu, que era do mal. Que ele não gostava de receber. Um dia, estávamos escovando os dentes no banheiro masculino coletivo da concessionária e, do nada, ele começou a soltar grunhidos e caiu no chão convulsionando. Mas eu já tinha me preparado para isso pois estava em constante oração. Tentei contê-lo com a mão esquerda enquanto com minha mão direita, firme, sobre sua cabeça, fiquei alguns instantes expulsando o demônio que lhe havia possuído, em nome de Jesus, com muita autoridade na voz, a meia voz, claro, torcendo para ninguém entrar no banheiro e se deparar com aquela cena dantesca. Depois de alguns instantes ele recobrou a consciência e confirmou minha suspeita: havia sido Exu. Ele estava muito irritado comigo.

Eu lhe disse que ele deveria frequentar uma igreja evangélica para se livrar daqueles demônios que o atormentavam, que ele poderia ter uma vida feliz. Com o tempo ele pareceu realmente querer a libertação da qual eu falava. Marquei um dia para levá-lo à igreja. Fui de carro com um irmão, um sábado à tardezinha, para levá-lo ao culto. Fomos até o endereço que ele passou na Vila São José. Ele não estava. Esperamos. Ele nunca apareceu. Desistimos, decepcionados. O diabo é xujo.

Depois disso nossa amizade esfriou. Alguns meses mais tarde eu seria demitido.

Vendo o surto de Ondine Duquette na série, transformando-se em uma criança, mais uma vez retomo esse episódio do passado e refaço a leitura que já fiz diversas vezes:

Um garoto muito inteligente, aprendera a falar francês sozinho, em um bairro pobre, uma vida familiar bastante tumultuada, provavelmente deveria ter sofrido alguns tipos de violência que ele nunca me contou. Poderia ter desenvolvido múltiplas personalidades, um processo de autodefesa da psique para evitar o sofrimento que fragmenta a personalidade da vítima em várias sub personalidades? Não é difícil.

Seu sofrimento e incompreensão de sua parte em função das ausências e comportamentos que ele não conseguiria compreender, quando em contato com alguém da umbanda, naturalmente encaminharam para o diálogo você é alguém especial, tem medinunidade e precisa desenvolvê-la? Não é difícil.

E eu, diante dessa situação toda, tinha certeza que era coisa do diabo? Não tenha dúvida.


sábado, 26 de setembro de 2020

Compondo música com meu filho de 11 anos

- Pai, vamos compor uma música juntos?
- Tá bom, Felipe.
- Pode ser pra orquestra?
- Nossa, é muita coisa. Vamos fazer pra piano.
- Ah... eu queria mais instrumento.
- Então pode ser quarteto de cordas?
- Ah... legal!
Abre o Sibelius e me diz que tom o andamento eu quero:
- Dó maior. O andamento pode ser lento, pra ficar mais fácil pra eu tocar no piano.
Colocadas as informações iniciais e aberta a partitura em branco...
- Felipe, toca 4 notas aleatórias
Ele toca 4 teclas brancas a esmo em diferentes oitavas do piano.
Eu toco novamente as 4 notas dentro de uma única oitava. A combinação me sugere Dó maior.
- Nossa, pai, minha mente já imaginou um monte de coisas!
- Ótimo, toca o que você pensou então.
Ele toca a sequência de notas e acrescenta algumas outras improvisando um curto tema. Ele introduz um Si bemol.
- Percebeu que você improvisou um tema em Fá maior? Muda a armadura de clave pra Fá maior.
Cantarolo a melodia sugerindo uma determinada subdivisão rítmica em 4 por 4.
- Pode ser assim?
Ele sugere outra subdivisão rítmica, em 4 por 4, mas com as notas valendo metade do tempo que eu sugeri. Isso resulta em uma pulsação rítmica bem mais lenta que a que eu sugerira com minha subdivisão.
- Ok, escreve então.
Ele escreve via piano na linha do violino e toca. Impressionante! Soa exatamente com o andamento que ele tinha sugerido. Isso me leva a uma primeira “triste” constatação: como as crianças absorvem as coisas rapidamente, na velocidade da luz! Por conta das aulas de piano, ele tem experimentado vários tipos de andamento e a fixação dos padrões por parte dele é muito rápida.
Na sequência, completa a linha melódica do violino e se põe a escrever as demais vozes. Percebo que ele tem pouca preocupação com a harmonia (pensa de forma horizontal) mas as frases saem organicamente, funcionando bem harmonicamente.
- Felipe, em vez de você clicar com o mouse na figura da nota a cada mudança de figura, pode usar o teclado numérico. Tá vendo esse quadro aqui com as figuras musicais? Não lembra o teclado numérico? Essa é a ideia. Então é mais simples. Veja.
Repito a frase que ele acabou de escrever usando o teclado numérico, não o mouse, como ele estava fazendo.
- Nossa, pai, não sabia que era tão fácil assim! Eu demoro horas pra escrever uma frase!
Reassume o controle e com uma habilidade e coordenação impressionantes, sai tocando a melodia e rapidamente mudando as figuras pelo teclado numérico numa velocidade que eu, com meus anos de prática, jamais conseguiria. Segunda “triste” constatação: estou reduzido a um velho à beira da morte. Ahahahahahah!
- Felipe, as ideias estão bem legais. Sem querer limitar sua criatividade, se você tiver a percepção do caminho harmônico, talvez enriqueça. Deixa eu te mostrar.
Com minha habilidade limitada, cantarolo a melodia do violino que ele acabou de compor e toco a harmonia no piano. Alegre, ele percebe que, de fato, a percepção harmônica ajuda bastante.
Basicamente foi isso. No mais, ajudei-o em 2 ou 3 passagens onde ele se sentiu desconfortável com o resultado (e de fato dava para melhorar) mudando não mais que 5 ou 6 notas de passagem para que elas não distorcessem um pouco a clareza harmônica do todo. Ele quis fazer um final mais moderno, colocou algumas dissonâncias nos 2 últimos compassos, detestou por ter considerado “contemporâneo demais” e reescreveu de forma a ficar mais coerente com o todo. Concordei com sua decisão. Preferi não sugerir nada, apenas orientá-lo eventualmente em alguma dificuldade, mas isso foi muito ocasional.
Eu pouco mais de 2 horas ele tinha escrito sua pequena brincadeira composicional que ele chamou de “Teste Para Quarteto de Cordas”.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Sobre o racismo e a invisibilidade



O trecho abaixo do livro "Americanah" de Chimamanda Ngozi Adichie, que estou lendo, me fez recordar de um episódio idêntico que passei. O livro fala da experiência dos nigerianos nos EUA sob o ponto de vista do racismo.
 
Vamos ao trecho do livro:
 
Quando eles entraram num restaurante com mesas cobertas por toalhas de linho e o recepcionista olhou-os e perguntou a Curt: “Mesa para um?”, Curt rapidamente disse a Ifemelu que o recepcionista não tinha dito aquilo “por isso”. E ela quis perguntar: “Por qual outro motivo seria?”. Quando a mulher com cabelos cor de morango que era dona de uma pousada em Montreal se recusou a demonstrar que tinha registrado a presença de Ifemelu enquanto eles faziam o check-in, numa cegueira determinada, sorrindo e olhando apenas para Curt, ela quis lhe dizer o quanto se sentia negligenciada, mais ainda porque não sabia se a mulher não gostava de negros ou se gostava de Curt. Mas não disse, pois Curt lhe diria que ela estava se ofendendo por nada, ou que estava cansada, ou ambos.
 
(Chimamanda Ngozi Adichie. Americanah (Locais do Kindle 5061-5066). Edição do Kindle)
 
Agora minha experiência:
 
Durante muitos anos viajei a trabalho pela América do Sul, em vários países, por grandes multinacionais. O país que mais visitei foi a Colômbia, especificamente Bogotá. Tantas viagens que por duas vezes na "aduana" me perguntaram que tanto eu fazia naquele país. Por conta disso, meu espanhol era colombiano e impecável. Tanto que as pessoas achavam que eu era colombiano. Quando dizia que não e pedia para acertarem minha nacionalidade, nunca ninguém chutou brasileiro e ficavam impressionados com minha falta de sotaque, já que o portunhol do brasileiro é inconfundível. Meus amigos da ExxonMobil, quando tinham alguma dúvida em ortografia ou gramática espanhola, me consultavam.
 
Numa das minhas viagens a Buenos Aires, onde trabalhei em alguns projetos de outra multinacional, fui com um colega de trabalho que treinei no projeto por 2 semanas. No fim de semana, saímos para fazer turismo. Meu espanhol era perfeito, com sotaque colombiano, claro, e meu colega de trabalho, branco, arranhava um portunhol bem macarrônico. Por isso mesmo, nas interações com os transeuntes, percebi algo diferente daquela vez, já que eu costumava andar sozinho pelas ruas de Buenos Aires:
- Você percebeu que as pessoas não falam comigo, mas com você?
- Claro que não, é impressão sua.
- Será? Observe.
Sempre que parávamos para conversar com alguém na rua, ele se mantinha calado. Eu conversava com o(a) portenho(a) que simplesmente me ignorava e respondia para ele. Daí o diálogo era assim: eu falava com as pessoas que olhavam e respondiam para ele, ignorando totalmente minha presença.
Depois de algumas interações com outras pessoas logo após eu lhe sugerir que observasse o comportamento delas, ele reconheceu que eu tinha razão, impressionado.
 
Uma vez eu perguntei a um taxista se havia racismo na Argentina. Sua resposta foi reveladora:
- Não temos racismo: não temos negros aqui.
 
Mas esse episódio de invisibilidade não foi o pior que eu experimentei em Buenos Aires.
 
Também experimentei um episódio de invisibilidade, há muitos anos, em um banco extremamente chique na Av. Paulista, quando fui resolver um problema de um cliente que estava com a corda no pescoço. Quando cheguei no banco, no décimo alguma coisa andar de algum edifício na Paulista, uma recepção chiquérrima, havíamos apenas eu e a recepcionista na recepção que era bem grande. Eu estava afundado em chiquérrimo sofá de couro, esperando. O cliente passou por mim, ignorou-me e perguntou para a recepcionista:
- Cadê o Sr. Obadias?
Eu percebi que a recepcionista explicou para ele, por mímica, que o Sr. Obadias estava sentado no sofá.
Pausa dramática.
Ele se virou com um sorriso ensaiado e disse algo como:
- Bom dia, Sr. Obadias!
- Esperava alguém alto, loiro e de olhos azuis? - não perdoei, claro!
Extremamente constrangido, ele tentou negar o óbvio.
Resolvi seu problema da forma mais impressionantemente rápida e eficiente que pude somente para deixá-lo humilhado na sua cretinice racista.
Ele, de fato, ficou bem impressionado. Espero que tenha servido de lição e que ele tenha refletido a respeito da sua imbecilidade.


quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Como trollar um bando de machista escroto


Algum lugar do passado.

Avenida Luis Carlos Berrini.

Primeira visita na área de TI de uma empresa, cliente, para tratar de um projeto de integração de dados. Trabalho na parte da manhã com minha visitada dando pontapé no projeto.

Almoço. 

Ela me convida para ir almoçar com seus colegas de TI, “berriners” típicos.

No restaurante, a conversa sobrevoou por vários temas até que aterrissou no caso Eliza Samudio – goleiro Bruno. Com o preconceito e escrotidão típicos do ambiente corporativo (quem conhece sabe do que estou falando), os caras vomitaram seus preconceitos sobre a “puta” Eliza.

Eu me limitei a escutar.

Não sei se minha visitada sacou meu desconforto ou foi apenas um insight do nada mas, de repente, no meio da conversa, ela solta essa:

- O Obadias conhece a Eliza.

Pausa dramática.

Todo mundo olha pra mim com aquela cara de “oi???”.

Eu, que não sou de perder a viagem, na maior cara de pau confirmei: de fato, eu a conhecia, já que ela era minha prima de segundo grau. Sua mãe seria prima de primeiro grau de minha mãe. Justifiquei o parentesco com a ascendência italiana por parte de minha avó materna, o que é verdade, supondo que Samudio seja um sobrenome italiano. Se não é, não faz a menor diferença: colou.

De repente, o clima de “descontraída gozação” em cima da desgraça que se abateu sobre Eliza Samudio se tornou bastante constrangedor. Agora sérios, pediram mais detalhes sobre a jovem, como ela era, enfim, curiosidade mórbida de quem se vê de repente diante de um parente de algum notavelmente morto.

Improvisei histórias e relações fictícias dando a impressão de que estava apenas sendo educado com aquele bando de escroto que estava se divertindo às expensas de macular a memória de minha suposta prima.

No final me pediram desculpas e o assunto, obviamente, morreu, já que a gozação em cima de alguém que não podia se defender havia se tornado tecnicamente um insulto a alguém que estava presente.

Depois do almoço, quando voltávamos para o escritório, perguntei discretamente para a cliente que eu tinha acabado de conhecer: "O que foi aquilo?" Não me lembro de sua resposta, mas me lembro que ela tinha achado muito divertido. Talvez achasse seus colegas muito escrotos e tinha tentado a sorte de colocá-los em uma saia justa. Arriscou e deu certo porque trollagem é comigo mesmo.

Na visita seguinte eu lhe perguntei se ela tinha desmentido a história. Ela disse que não. Rimos muito e deixamos assim mesmo.


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Felipe e a literatura


Hoje o Felipe, 11 anos, que está na avó materna, me mandou um áudio de uma composição que ele acabou de improvisar, baseada no livro de Neil Gaiman e Lorenzo Mattotti que ele leu, João e Maria.

Texto que ele me mandou acompanhando o áudio:

João e Maria Op. 9 III - Floresta dos pesadelos

Nota do autor:
Nessa parte, eu retrato duas crianças perdidas, após serem abandonas, em uma floresta, à noite, com fantasmas e demônios, olhos negros atrás das árvores os observando.
Caminhando com medo.
Um vento forte soprando entre suas pernas, perdidos, sem onde ficar, lacrimejando de tanto medo.

sexta-feira, 19 de junho de 2020

Já tive meu momento Weintraub também


Vi no noticiário que Weintraub quer sair logo do Brasil porque estaria sendo ameaçado. Mas também assumiu que tem medo de ser preso. Acredito muito mais na segunda possibilidade.
Daí me lembrei do meu 1º ano do 2º grau (na época) na então ETE Júlio de Mesquita, em Santo André. Tínhamos uma turminha e, quando tínhamos aula vaga por algum motivo, dávamos um jeitinho de escapulirmos (nem que fosse pulando o muro da escola às escondidas) e dávamos uma volta pelo centro da cidade.
Como eu era o mais baixinho da turma, a ideia era eu provocar alguém na rua. Divertíamo-nos porque a pessoa não reagia à minha provocação por causa da turma de grandalhões comigo. Até o dia em que encontramos um maluco mais maluco que a gente.
Na época a moda “new wave” estava no auge. Passamos por um cara vestido com uma calça toda quadriculada. À frente do grupo, perguntei:
- E aí, quantos quadradinhos tem nessa calça?
- Vem contar!
Não esperávamos tal reação. Meus colegas grandalhões não reagiram, ficaram mudos. Eu, por falta de alternativa, pus o rabinho no meio das pernas e passei de largo.
Depois que nos afastamos do maluco, caímos na risada. Ué, por que os grandalhões não reagiram e compraram a briga?
Enfim, de valentão, de repente, me vi obrigado a colocar o rabo no meio das pernas e sair de fininho.
Esse foi o meu momento Weintraub.
E o seu?

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Máscara



Comprei laranja e mamão enquanto a Flávia comprava verduras e legumes.
Antes de parar na barraca, achei que ela tinha ido para o fim da feira.
Saio de frente da barraca e fico parado na calçada oposta, onde há um vão livre, quase atrás de uma barraca de utensílios domésticos.
Longe das pessoas, fico de olho no movimento, para me dar conta quando a Flávia passar retornando do fim de feira.
Um casal de pretos se aproxima.
- Moço, quanto está o chinelo?
- Hoje está de graça, pode levar.
O feirante, que atende outra pessoa, fuzila-me com o olhar.
Mentira. Meu raciocínio não foi tão rápido o suficiente para me propiciar esse momento de divertimento.
Sorrio levemente com meu sorriso preto debaixo de minha máscara preta e o leve meneio de minha cabeça completa a mensagem para ela, que aparentemente sorri de volta seu sorriso preto, quem sabe emoldurado por seus quem sabe belos e alvos dentes, por baixo de sua máscara florida.
O marido a tudo acompanha, silencioso, debaixo de sua máscara cujas características não são captadas por mim, afinal meus sentidos estão sugados pelo diálogo com sua mulher, como sói ocorrer em situações equivalentes.
O feirante, um improvável japonês para aquele tipo de barraca, com traços nordestinos termina de atender outro cliente, informa-lhe o preço, ela agradece e desaparece com o marido preto cuja cor da máscara não fui capaz de observar.
O feirante que, pensando bem – não será um nordestino de ascendência indígena? Isso realmente parece mais provável – continua seu labor com sua máscara preta com o brasão corintiano, agora que meus sentidos estão desbloqueados, sou capaz de observar esse detalhe.
É, parece que a Flávia não foi para o fim da feira. Melhor ir para o carro. Ela deve estar lá me esperando.

terça-feira, 26 de maio de 2020

DEJAVU

Trabalhando em casa no meu sistema enquanto assisto Fauda com Flávia.
Na rua o autofalante do carro anuncia os ovos e a mandioca baratos (nossa, somente agora o trocadilho me ocorreu!).
- Bada, avisa o cara que vou pegar dinheiro pros ovos!
Corro no portão, e pela fresta, assobio.
Ele ouve, para.
Volto pego a chave.
Abro o portão.
Saio para a calçada.
Olho toda aquela imensidão da rua deserta.
A sensação de que já estive naquele lugar antes é indescritível.

domingo, 10 de maio de 2020

Contágio infernal em tempos de pandemia

Baixei um livro e comecei a ler. O livro analisa o apoio dos evangélicos a Bolsonaro. Ele já começa dizendo literalmente algo que eu dizia a um amigo essa semana sobre o motivo que leva os evangélicos a apoiarem Bolsonaro. Para entender melhor o que eu digo, seria interessante assistir 4 séries, que falam sobre o fundamentalismo religioso, presente no judaísmo, islamismo e cristianismo. Embora em religiões diferentes, é rigorosamente o mesmo. Eu dizia que os fundamentalistas evangélicos apoiam Bolsonaro porque vivem em um mundo paralelo de crenças que somente eles enxergam. A dinâmica do apoio a Bolsonaro nada mais é que a crença em teorias conspiratórias, negação da realidade, anticientificismo, crenças surreais como o terraplanismo, todo esse monte de coisas com uma cobertura de glacê que é o messianismo populista bolsonarista. Esse tipo de solução é o ambiente mais natural, quentinho, confortável a que o fundamentalista religioso está acostumado. Por isso movimentos fundamentalistas religiosos parecem tão esquisitos para quem olha de fora, enquanto que movimentos religiosos não fundamentalistas não parecem insanos para observadores que não comunguem da mesma crença e até permitem o diálogo. Veja como o livro começa: "Para Adela Collins, especialista no gênero em questão, as apocalípticas podem se configurar ou como um tipo de movimento social ou como uma linguagem de estrutura mítico-narrativa na qual uma revelação extraordinária é mediada por um believer, que desvenda uma realidade transcendente - supostamente inacessível aos 'profanos e pecadores' - na medida que vislumbra uma salvação futura ou que prospecta outro(s) mundo(s). Ou seja, apocalípticas são modos de imaginação e linguagem que objetivam alterar a disposição subjetiva e as práticas históricas daqueles que imaginam e sonham com tais futuros. Este é o sentido retroativo da imaginação futurista, ela produz profundas alterações no tempo real da experiência, no intenso agora." O livro: Contágio infernal - o apocalipse bolsonarista evangélico (Felipe dos Anjos, João Luiz Moura) As séries: The Family - Democracia Ameaçada (Netflix), O conto da aia, Nada ortodoxa (Netflix) e Califado (Netflix) link para baixar o livro: https://marketingeditorare.wixsite.com/ebooks

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Aldir Blanc subverteu a Navalha de Occam


Uma das mais profundas experiências musicais que a MPB me proporcionou, foi o álbum “Simples e Absurdo” de Guinga e Aldir Blanc.
Já ouvi tantas vezes aquele álbum que devo ter superado as 100 audições. A genialidade, sofisticação, beleza, sensibilidade, exuberância daquelas canções sempre me deixam emocionado, mesmo na enésima audição.
Durante anos o álbum foi motivo para eu cultivar uma quase veneração a Guinga. Sempre que ouvia aquelas melodias sinuosas, inacreditáveis, passando por caminhos inesperados, brincando com aqueles poemas de puro lirismo, simplicidade e toque na alma sem o menos esforço, eu pensava com meus botões:
“Caramba, Guinga é muito gênio pra conseguir sacar melodias tão maravilhosas e inesperadas desses poemas profundamente líricos”.
Porque eu só conseguia conceber essa possibilidade: Aldir Blanc apresentara os poemas a Guinga e ele, com sua capacidade inigualável para parir melodias inesperadas, tinha chegado àquelas soluções geniais. E teria conseguido, com sua genialidade ímpar, parir melodias que traduziam à perfeição o clima sugerido pelos poemas. Quanta genialidade!
E, de fato, Guinga é um dos maiores gênios da nossa cultura.
Mas eu não estava preparado para o que veio a seguir.
Anos depois, assistindo a um documentário com Aldir Blanc, em um determinado momento ele dizia algo assim: “Ao contrário do que se pensa, Guinga não musicou meus poemas; fui eu quem criei poemas para suas melodias”.
Confesso que quase tive uma parada cardíaca. Como assim???
Uma coisa é alguém tão genial como Guinga criar aquelas melodias de poemas já prontos. Mas o contrário, sacar poemas tão maravilhosos e que se adaptassem à perfeição a melodias tão intrincadas quanto aquelas melodias de Guinga, me parecia algo muito, muito mais improvável!
E parece que não era o único que pensava assim, do contrário ele não teria dito o que disse no documentário.
Ou seja, Aldir Blanc era muito mais que gênio.
Com sua suprema genialidade, Aldir Blanc subverteu a Navalha de Occam.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Aprendendo com Algernon a ser mais crítico


Estou lendo o soberbo “Flores para Algernon”, de Daniel Keyes, que conta a história de um retardado mental que, depois de passar por uma cirurgia revolucionária, se torna um gênio. Os problemas que isso desencadeia à sua volta, nas suas relações, são muito interessantes.

De repente, as pessoas se sentem incomodadas por conviverem com alguém mais inteligente, capaz de enxergar coisas que elas não conseguem ver. É muito divertido e um convite à reflexão.

Estou em um trecho que me remeteu ao momento em que vivemos, aos “influencers” que arrastam atrás de si multidões de fãs, geralmente pessoas sem capacidade crítica para validar se o que esses “influencers” estão dizendo é verdade.

Ao ter sua inteligência desenvolvida de forma explosiva, ele foi capaz de ler muito rapidamente e, em um pequeno espaço de tempo, conseguiu absorver informação de especialistas numa quantidade que as pessoas jamais conseguiriam absorver em suas vidas. Daí, sempre que alguém dizia algo, ele tinha informações mais balizadas e rapidamente era capaz de identificar impostores, farsantes. E ele se tornou capaz disso não apenas porque era inteligente, mas principalmente porque sua inteligência o permitiu ler e compreender muito conteúdo que lhe deram ferramentas para rapidamente identificar uma farsa.

Isso me lembrou uma história que meu irmão contou quando estudava Letras na Fundação Santo André. Ele tinha uma professora por quem nutria profunda admiração, dado que ela falava com grande desenvoltura sobre qualquer assunto. Ele ficava embasbacado com tanto conhecimento em tantas áreas (que ele não conhecia). Até o dia em que ela resolveu falar sobre música de concerto, assunto que ele dominava com profundidade. Sua decepção foi terrível. Como ele conhecia bem sobre o assunto que ela se pôs a falar, facilmente identificou erros e equívocos na sua fala. De repente, aquela que era um poço de conhecimento ficava reduzida a uma quase impostora.

Como se defender de mestres da retórica que arrebatam multidões com suas lacrações? Primeiro, sendo inteligente (nem precisa ser gênio). Segundo, sendo o mais cético que puder. E por último e não menos importante, ler muito, pesquisar muito, movido pela sede do conhecimento, não da convicção.

sábado, 28 de março de 2020

Síntese gelatinosa

Como é bom estar na fazenda. Abandonar a grande cidade, o ruído, a agitação, ouvir os mugidos das vacas, o cacarejar das galinhas, sentir o cheiro do fogão à lenha misturado ao cheiro de capim da chuva recente... Esses pensamentos faziam a mente do ator divagar enquanto descia a pequena alameda barrenta com seus amigos também convidados por um amigo em comum, de posses, para um fim de semana de isolamento e descanso.

Desceram, instalaram-se na casa grande e depois saíram todos para a agradável varanda com suas cadeiras de madeira, o morro e o riacho que percorria por trás dele e passava ao lado da fazenda, numa espécie de praia, de águas cristalinas e convidativas para um nado até a outra margem.

Enquanto conversavam, bichano, o mais arredio dos felinos da fazenda, veio se enroscar nos pés dos convidados, num balé apressado e esquisito, que chamou atenção de todos. O dono da fazenda externou sua preocupação, pois aquele animal estava estranhamente agitado nos últimos dias e, algo impensável para ele, agora dera de se enroscar nas pessoas, pior ainda, que ele não conhecia. Nas últimas semanas a fazenda havia ficado vazia. Seria efeito do confinamento do gato, longe das pessoas? Não pode ser, protestaram os convidados. Houve até quem perguntasse seu nome, em tom de brincadeira: Banzé, Marley, Pluto?

O bichano olhou para seu dono, surpreso de ele ter sido capaz de identificar seu sofrimento. Não esperava isso. Mas ele mesmo, nada afeito a sentimentalismos, nas últimas semanas vinha sendo vítima de uma estranha tristeza, uma apatia, uma vontade de nem sei o quê, uma dor no peito, uma sensação de que a vida estava por um fio, incapaz de resistir a qualquer contingência da vida. E a vida é cheia de contingências. Como sobreviver? Como se manter lúcido? E, por mais estranho que parecesse, o que afastava sua profunda angústia ainda que por alguns momentos, era se enroscar nas pernas dos humanos. Mas ele o fazia apressadamente, numa luta feroz entre seu desejo momentâneo e seus princípios milenares.

Dos presentes, ninguém mais que o ator, alguém de profunda sensibilidade, capaz de se entregar na experiência alheia, de seus personagens, um ser dotado de profunda empatia, foi capaz de decodificar o dor que ia no peito daquele desafortunado felino, não se sabe exatamente de onde surgiu a dor, mas ela esta ali, incrustrada no peito felídeo. E capaz de mergulhar no lago do sofrimento alheio, ele estendeu a mão e chamou bichano para si. E para estupefação de seu dono, bichano aceitou o convite e se aninhou no colo artístico.

Foi como se estivesse ocorrendo uma terapia intensiva de recuperação emocional. Enquanto afagava bichano, mergulhando na sua dor o ator pode perceber que o problema estava na fonte da vida, o pequeno coração do animal, que parecia envolvido em uma crosta muito grossa de dor e sofrimento. Foi então que o ator dirigiu ao animal todos seus afetos: calma, tranquilo, tudo vai passar. E, como num processo mágico de transferência de energia, os afetos se incrustaram no âmago do ser, dos sentimentos felinos e o curaram do que o estivesse causando sofrimento.

O animal, de repente, sentiu-se calmo, tranquilo, sereno, e sem a menor cerimônia, protocolo cultivado desde seus mais remotos ancestrais, saltou para o chão da varanda e desapareceu para além dos limites da varanda, sem sequer olhar para trás, sem a menor intenção de agradecimento. O ator, pessoa tão sensível que era, não conseguiu passar incólume por aquele insignificante acontecimento, a já esperada total falta de consideração por parte do felino. E, subitamente, como se a enfermidade tivesse, feita um vírus, evoluído e saltado da cadeia animal para a humana, sentiu seu coração atacado por uma forte pressão de tristeza, desespero, frustração. Enfim, o pântano da dor.

Pálido, com uma forte dor no peito, com o centro das atenções transferidas do gato para ele, seus amigos aflitos tentaram ajudá-lo. É um ataque cardíaco! Ele sabia que não e tentou convencer seus amigos disso. Mostrou-lhes, inclusive, que os sintomas clássicos do acidente coronário não se aplicavam a ele, enquanto lutava com dificuldade para não sucumbir diante da dor lancinante que o feria. Enfim, solícitos que eram, seus amigos o ampararam até o veículo mais próximo e o levaram ao hospital igualmente mais próximo, ainda que a uma desesperadora distância.

Por fim chegaram. Ele estava até mais corado. Mas alguns se lembraram que, perto da morte, as pessoas costumam ter uma súbita melhora. Então era melhor não dar sopa para o azar. Depois da entrevista com o médico no pronto atendimento, ele concordou com o nobre ator não se tratar de um ataque do coração, mas de uma estranha síndrome de fundo emocional que estava se alastrando de forma quase epidêmica e que a ciência ainda não tinha até então encontrado cura nem tratamento. Mas já era claro que tal síndrome era somatização de questões emocionais e atacava o coração dos vitimados.

Mas, como nem tudo está perdido e a ciência sempre está a abrir novas possibilidades, o médico informou o paciente que estavam testando uma nova terapia, algo revolucionário, e que já tinha dado resultado em vários pacientes. Tinha um nome científico complicado, mas poderia ser simplificado para o cidadão comum: síntese gelatinosa.

Em termos práticos, ele seria colocado em um aparelho que ressonância magnética evoluído, que leria todo seu organismo e suas memórias afetivas e sentimentais das últimas semanas. Um processo sofisticado de Inteligência artificial sintetizaria uma gelatina que seria uma espécie de “eu” do paciente que, uma vez ingerida por ele, se deslocaria por suas entranhas, chegaria ao coração e, por algum processo ainda não totalmente compreendido (daí porque uma terapia experimental), a síndrome desapareceria.

O ator aceitou a proposta, não tinha nada a perder, a dor ainda o incomodava bastante. Enfiado dentro da máquina de ressonância durante os 40 minutos necessários para sintetizar a miraculosa gelatina, ele se viu envolvido em uma espécie de viagem onírica freudiana. Enquanto a máquina mapeava suas informações, seu cérebro percorria vertiginosamente por sensações, memórias, sentimentos das últimas semanas, sons, cheiros, música, ruído, ventania, cores, abraços, amigos, espaços, alucinações e aquele felino que lhe partira o coração.

Findo o prazo necessário para a síntese da gelatina, os médicos lhe apresentaram a gosma miraculosa que, adicionada de uma essência para lhe tornar mais palatável, proporcionaria a cura. Devidamente acomodado em uma maca, deglutiu a gelatina. No momento em que ela tocou seu esôfago, escorregando por seus órgãos internos, um portal se abriu em sua mente e era como se ele mesmo estivesse dentro de si, enxergando seus órgãos internos.

Lentamente ele escorria dentro de si mesmo, descendo pelo esôfago. Foi quando ele enxergou o coração sobressaltado, agitado, irrequieto. Nesse momento, o ele-gelatina se sentiu profundamente tocado por aquele sofrimento, aquela inquietação e seu impulso imediato foi se aproximar do coração e envolvê-lo suavemente.

O coração parecia um gatinho assustado, precisando de carinhos, afagos. E a única ideia que ocorreu ao eu-gelatina, a síntese do empático ator, foi carinhosamente afagar aquele coração agitado: calma, tranquilo, tudo vai passar. E em meio aquela confusão, que para o ele-gelatina eram dores de uma vida agitada, correria, gases lacrimogênios, o abraço carinho foi deixando o coração cada vez mais calmo, mais calmo, mais calmo...

Morreu.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Mr. Robot e o poder do mito na mente do "pobre de direita"


Terminei de assistir a série Mr. Robot e, refletindo sobre o final, lembrei-me de um amigo "pobre de direita" que me disse certa vez ser contra taxar ricos porque, quando for rico, não irá querer pagar imposto. Não vou entrar no mérito de qual raciocínio tortuoso me levou de Mr. Robot a meu amigo "pobre de direita", mas o fato é que sua justificativa me deixou estupefato.

Nem é preciso fazer qualquer digressão sobre os diversos aspectos surreais do pensamento do meu amigo, mas o que interessa no momento é o fato de que tanto meu amigo como o "pobre de direita" pensam como pensam porque vivem em um mundo de fantasia onde substituem a realidade por uma alucinação paralela. E, nessa alucinação, eles acreditam piamente que têm alguma chance de se tornarem ricos. A chance do meu amigo se tornar tão rico a ponto de justificar sua aversão a taxação de grandes fortunas talvez seja a mesma de ele ganhar na megasena.

Eu diria que nem o "pobre de esquerda" nem o de direita se tornarão ricos. A diferença é que o "pobre de esquerda" é capaz de reconhecer os motivos enquanto o de direita abraça uma alucinação que o faz negar a realidade. Então ele vive a vida toda acreditando que, se fizer as coisas de determinada forma, sem questionar o mundo à sua volta, por algum passe de mágica meritocrático se tornará rico.

Na realidade, penso que somente pessoas pequenas vivem em função de se tornarem ricas. Sejam ricas ou pobres, essas são as criaturas menos interessantes que passarão pela existência. Some-se a essa total falta de atrativos de uma vida assim a alucinação do "pobre de direita" de acreditar que se tornará de fato rico.

O que sustenta essa alucinação são os mitos, as distrações muito bem urdidas para deixar esse "pobre de direita" andando em círculos, enquanto acredita que está fazendo a coisa certa, quando na realidade está desperdiçando sua existência em uma busca que certamente não lhe trará uma fração do que ele espera. Mas os mitos estão ali, uma prisão na sua mente que lhe impedirá de se emancipar integralmente como ser humano.

Em um país como o Brasil, de uma população bastante mística, supersticiosa, de religiões fundamentalistas, viver em um mundo de fantasia sustentado por mitos é um exercício diário cuja repetição constante leva à perfeição. Portanto, a menos que o brasileiro se liberte dessa prisão onde está metido, dificilmente será capaz de perceber o quanto ele gasta de sua energia para sustentar os mais ricos e poderosos e quanto o mito da meritocracia o torna prisioneiro de um mundo imaginário onde, para tudo funcionar bem, basta ele seguir as regrinhas que os mais ricos e poderosos lhe dizem ser o elixir da felicidade, mesmo que seu sonho de uma vida melhor nunca se concretize e ele morra sem descobrir o motivo.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Horizontalidade, verticalidade e sacanagem na música

Estava conversando com o Felipe e lhe explicando a diferença entre a música medieval e períodos mais tardios. Uma das características fundamentais é que os músicos pensavam a música horizontalmente, por isso a polifonia é tão rica, atingindo o máximo da sua sofisticação no período barroco. Com o desenvolvimento da linguagem tonal (no período medieval ela é essencialmente modal), a música foi sendo percebida cada vez mais verticalmente, via acordes. Por isso mesmo a polifonia diminui. Citei a ele exemplos de alguns prelúdios de Chopin que ele gosta de tocar onde se percebe claramente que o compositor estava pensando a música verticalmente, a partir do discurso harmônico, o caminho percorrido pelos acordes.

Daí me lembrei de duas piadas memoráveis que ouvi nas pouquíssimas aulas de música que frequentei na Fundação das Artes em SCSul nos meus verdes anos.

Em uma determinada aula o professor dava exemplos de ideias expressas por composições musicais. Daí um aluno perguntou:
- Professor, e música de sacanagem?
- Tem: a Sagração da Primavera.
- Sagração da Primavera?
- Sim. As primeiras notas da obra são as primeiras notas do hino do Corínthians! Isso é muita sacanagem!

E por falar em sacanagem, em outra aula, quando ele falava sobre o pensamento horizontal e não vertical de Bach, soltou a seguinte pérola:
- Bach pensava tão horizontalmente que teve 8 filhos.