segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Múltiplas personalidades



 A personagem Ondine Duquette da série Netflx Ratched me levou a uma viagem no tempo. 1986. Acabara de completar 17 anos. Conferi a data na minha CTPS. Eu trabalhava na Mercantil São Caetano, uma concessionária da João Apolinário e Cia.

Abre Parênteses

Nunca tive curiosidade em saber quem é essa figura João Apolinário que aparece na minha CTPS. Acabei de pesquisar e... incrível, João Appolinário é nascido em São Caetano do Sul e é presidente, proprietário e fundador da Polishop. É conhecido como o "homem da tevê" ou o "rei da TV do Brasil" por ser o maior anunciante da televisão brasileira. (Wikipédia). Não fazia a menor ideia.

Fecha Parênteses

Então

Eu era office-boy e comigo trabalhava outro garoto também office-boy. Vivia em um bairro mais pobre de São Caetano, que tinha uns cortiços, se não me falha a memória, Vila São José.

Mas o que me chamava atenção nele é que se tratava de um garoto extremamente inteligente. Falava francês. Aprendera sozinho, lendo livros. Sempre tive admiração por pessoas intelectualmente mais arrojadas. Era o caso desse garoto. Conversávamos bastante.

Ele também frequentava uma casa de umbanda. Opa! Isso é coisa do diabo. Era meu papel, como cristão, salvá-lo do inferno. Mas antes de salvá-lo, fiz todas as perguntas possíveis a respeito do que ocorria na umbanda, como ele fora parar naquela antessala do inferno.

Ele me contou tudo. Confesso que era fascinante. O mais fascinante eram os guias que ele recebia. Ele me dissera que fora parar na umbanda porque recebia esses espíritos e lhe disseram que ele deveria desenvolver sua mediunidade. Claro que não, dizia eu, esses espíritos na realidade são demônios. E comecei a levar a Bíblia para ele ler comigo, mostrando-lhe pelas escrituras sagradas, como era certo e verdadeiro o que eu dizia.

Ele não gostava de ler a Bíblia. Passava mal. Dizia que eram os espíritos que ficavam incomodados. Tá vendo? Por que incomodados? São demônios. Não suportam a palavra de Deus!

Passávamos todo o tempo do almoço conversando. E confesso que eu gostava. Porque, depois de um certo tempo falando com ele, do nada ele era possuído por um espírito qualquer e conversava comigo. Lembro-me que um dos espíritos era de um garotinho que havia morrido quando garotinho. Por isso espírito garotinho. Elementar, meu caro Watson. Ele falava como uma criancinha, enchia as bochechas emburrado, fazia biquinho. Era engraçado. Sempre que ele voltava do transe, sem noção do que tinha acontecido, me perguntava o que ele tinha feito e, quando eu lhe explicava, identificava o espírito.

Então eu gostava de provocá-lo apenas para desencadear o transe e a possessão de algum desses espíritos. Muito antes dos shows deprimentes e trapaceiros da IURD na TV, veja que coisa!

Com o tempo ele me disse que seus guias, esse era o termo, haviam lhe dito em uma sessão na casa de umbanda que ele deveria se afastar de mim porque eu era alguém perigoso, uma péssima influência para ele. Pensa na sensação de poder. O diabo está com medo de mim! Eu estava com a bola toda.

Ele me disse que havia um espírito muito forte, Exu, que era do mal. Que ele não gostava de receber. Um dia, estávamos escovando os dentes no banheiro masculino coletivo da concessionária e, do nada, ele começou a soltar grunhidos e caiu no chão convulsionando. Mas eu já tinha me preparado para isso pois estava em constante oração. Tentei contê-lo com a mão esquerda enquanto com minha mão direita, firme, sobre sua cabeça, fiquei alguns instantes expulsando o demônio que lhe havia possuído, em nome de Jesus, com muita autoridade na voz, a meia voz, claro, torcendo para ninguém entrar no banheiro e se deparar com aquela cena dantesca. Depois de alguns instantes ele recobrou a consciência e confirmou minha suspeita: havia sido Exu. Ele estava muito irritado comigo.

Eu lhe disse que ele deveria frequentar uma igreja evangélica para se livrar daqueles demônios que o atormentavam, que ele poderia ter uma vida feliz. Com o tempo ele pareceu realmente querer a libertação da qual eu falava. Marquei um dia para levá-lo à igreja. Fui de carro com um irmão, um sábado à tardezinha, para levá-lo ao culto. Fomos até o endereço que ele passou na Vila São José. Ele não estava. Esperamos. Ele nunca apareceu. Desistimos, decepcionados. O diabo é xujo.

Depois disso nossa amizade esfriou. Alguns meses mais tarde eu seria demitido.

Vendo o surto de Ondine Duquette na série, transformando-se em uma criança, mais uma vez retomo esse episódio do passado e refaço a leitura que já fiz diversas vezes:

Um garoto muito inteligente, aprendera a falar francês sozinho, em um bairro pobre, uma vida familiar bastante tumultuada, provavelmente deveria ter sofrido alguns tipos de violência que ele nunca me contou. Poderia ter desenvolvido múltiplas personalidades, um processo de autodefesa da psique para evitar o sofrimento que fragmenta a personalidade da vítima em várias sub personalidades? Não é difícil.

Seu sofrimento e incompreensão de sua parte em função das ausências e comportamentos que ele não conseguiria compreender, quando em contato com alguém da umbanda, naturalmente encaminharam para o diálogo você é alguém especial, tem medinunidade e precisa desenvolvê-la? Não é difícil.

E eu, diante dessa situação toda, tinha certeza que era coisa do diabo? Não tenha dúvida.


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