Amiga, ainda me lembro da dona Guiomar, que foi minha
diretora de escola e do Amigo também, dando um sermão em mim e mais 3 colegas
da 7ª série pelas críticas ácidas que fazíamos ao regime em nossos trabalhos
escolares, por sermos politizados. Ela dizia que, embora estivéssemos na
abertura, aquele tipo de manifestação política poderia trazer problemas para a
escola e, quiçá, para nossas famílias. Lembro-me da dona Maria da Graça, minha
professora de Geografia (não sei se foi professora do Amigo) contando pessoalmente
a mim, um de seus alunos preferidos, casos de professores perseguidos pelo
regime somente pelo fato de não concordarem; lembro-me claramente (embora não
me lembre dos detalhes) de ela contar sobre um amigo pessoal que havia
desaparecido por causa de suas opiniões políticas. A ideia dela era, de alguma
forma, provocar medo para que eu não fizesse críticas severas, usando o humor
(sempre usei a ironia para esculachar os poderosos de qualquer sistema de
poder), porque isso poderia ser perigoso demais.
Não sei se o Amigo tinha consciência dessas coisas ou era
alienado. A maioria das crianças eram alienadas. Eu tinha esse perfil mais
politizado, mais consciente, porque era um devorador de livros, interessava-me
por política. Não vivi os horrores da ditadura, mas pude, com meu nível de
consciência adolescente da época, perceber o quanto um sistema ditatorial que
se mantém no poder por meio da violência, de esquerda ou de direita, não
importa, pode ser mau. Jovens de hoje não sabem o que foi a ditadura. Nem eu
sabia direito porque não era adulto na época. Mas os livros, o conhecimento, a
História, a não alienação estão aí como ferramentas. Basta querer usá-los.
Bolsonaro só consegue apoio de pessoas como o Amigo
justamente por conta dessa absoluta alienação ou porque tais pessoas estão tão mergulhadas
em suas gaiolas ideológicas que não conseguem ver a questão de forma objetiva.
Isso é muito triste. O brasileiro evangélico médio não se notabiliza pelo
conhecimento, pela conscientização política. Nada disso. Essa semana conversava
com outro amigo evangélico sobre política – ele queria saber em quem vou votar –
e era nítido que, na cabeça dele, ser de direita é do bem, ser de esquerda é do
mal. Por que essa visão binária e maniqueísta do mundo? É certo que o
cristianismo fundamentalista propõe uma visão extremamente maniqueísta do mundo.
Será que esse exercício de ver um mundo de forma tão maniqueísta limita nossa
capacidade de enxergar a realidade com toda sua complexidade? E perguntei para
meu amigo algo como “já lhe ocorreu que pensamentos de direita e esquerda não são
nem do bem, nem do mal, mas apenas interpretações diferentes do mundo?”
Então, como esse cristão médio com dificuldade para enxergar
que o mundo não é maniqueísta como ele pensa ser se depara com o discurso do
Bolsonaro que malandramente diz que não existiu ditadura, que tinha que torturar
mesmo, que tinha que matar mesmo aquelas eram “pessoas do mal”, esse cristão
faz o absurdo de pegar um versículo bíblico para justificar sua ignorância política.
Dessa forma ele legitima “biblicamente” sua ignorância, afinal, quem vai discutir
com a Bíblia? Não importa se a aplicação do versículo bíblico é desastrosa. Por
que você acha que tem tanto movimento dito cristão falando os maiores absurdos
por aí, explorando tanta gente simples? Porque faz exatamente o que o Amigo
fez: pega um versículo bíblico e, com a hermenêutica mais tosca possível,
aplica a uma situação qualquer. Quem vai discutir com um “sábio” recitando
versículos bíblicos? Tecnicamente é a falácia da autoridade.
Tem mais: eu me lembrei também Hannah Arendt e seu livro “A
banalidade do mal”. Sugiro que você leia. Mas não precisa ler, basta assistir
algum documentário sobre: a leitura do livro é um pouco pesada. Ela demonstra
como alemães “do bem”, normais, cumpridores dos seus deveres, “patriotas”, CRISTÃOS
DEVOTOS, fizeram o mesmo exercício do Amigo: partindo da ideia de que eram do
mal judeus e quaisquer pessoas contra do regime de terror nazista, qualquer
violência perpetrada contra eles era válida e justificável. VEJA BEM, ISSO É IMPORTANTE:
o regime nazista subverteu a ordem das coisas. O certo e o errado não eram mais
matar ou não matar, torturar ou não torturar. O certo era “ser a favor do
regime”, o errado era “ser contra o regime”. Quando a mente do alemão médio foi
manipulada dessa forma, ele não viu nenhum problema em exterminar judeus OU
QUAISQUER OUTROS CONTRA O REGIME. O que o Amigo fez ontem foi exatamente isso.
E, como provavelmente fizeram muitos cristãos alemães, encontrou um versículo
bíblico para justificar sua, desculpe o termo pesado, “perversão moral”, porque
não há sistema moral que concorde que é correto matar ou torturar quem pensa de
forma diferente.
Eu até entendo o Amigo, porque a História está repleta de
exemplos como o dele. Nós, seres humanos, somos assim. Pelo nosso exagerado apreço
a uma ideologia qualquer abrimos mão da moralidade mais básica como a ideia
universal e indiscutível que é inaceitável, sob qualquer pretexto, torturar ou
matar outras pessoas. Para o Amigo, não: se eles fizessem tudo “certinho”, ou
seja, se não fossem contra o regime, não seriam torturados, não temeriam as
autoridades. Como não fizeram as coisas “certas”, estão reclamando do quê????
Foi nesse sentido que eu lamentei e me entristeço
profundamente por ver amigos meus com sua mente tão corrompida. Não espero que
vocês entendam meu blábláblá. Dificilmente vocês o entenderão. Vocês estão tão afundados
nessa forma de pensar que provavelmente serão incapazes de entender o que estou
dizendo.
Se eu estivesse nesse sistema religioso, sentiria vergonha
de vocês. Da mesma forma, quando jovem, apesar de acreditar nos fundamentos do
cristianismo, tinha vergonha da Assembléia de Deus e jamais convidei algum
amigo não evangélico meu para ir à minha igreja, simplesmente porque não teria
o que dizer quando eles me perguntassem coisas que eu mesmo não concordava. E,
quando fui sair desse sistema e um pastor assembleiano veio tentar me demover
da ideia, eu lhe disse: “caro pastor, faz muito tempo que não sou mais assembleiano;
eu apenas congrego no Scarpelli porque tenho uma relação emocional muito
profunda com aquelas pessoas, minhas raízes estão lá, elas são praticamente
minha família; mas eu não me reconheço nesse sistema, eu não entendo isso como o
cristianismo que eu acredito”, e fui embora. Passei um período sabático sem
criticar abertamente o sistema em respeito aos meus amigos. Mas agora, mais de
10 anos depois, já me sinto à vontade. Não para sentir vergonha, porque isso já
não sinto mais por não fazer parte desse sistema. Mas para dizer o quanto isso
me entristece. O quanto o sistema religioso fundamentalista e obscurantista
pode levar pessoas tão boas quanto vocês a defenderem ideias tão condenáveis e,
pior, utilizando argumentos bíblicos.
Desculpa se te choquei. Mas alguns de vocês, em especial meu
grande amigo Amigo, um dos meus mais importantes amigos, um dos poucos que eu
considero como se fossem irmãos, e ainda sinto isso, me chocaram. Não sentisse
isso, eu não estaria aqui comentando, enchendo o saco dele. Porque não me importaria.
Um grande beijo.
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