quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Jesus e a biodanza

Em 2002 resolvi fazer um curso de arranjo em música popular com o André Protásio, um maestro do Rio de Janeiro. Eu estava numa fase em que procurava afirmar minha brasilidade através das músicas que estava escrevendo para o Cifra (Coral Ingrid Fransson), um coral jovem com o qual eu trabalhava na Assembleia de Deus. O “QG” desse coro era na igreja-sede da AD em Santo André, igreja essa que, anos antes e durante vários anos, tivera como organista um competente músico, o Edivaldo. Lembro-me que suas performances ao órgão me deixavam encantado e, de alguma maneira, sua harmonia me lembrava muito Albert Ketèlby*. Uma das músicas que eu gostava muito de ouvir no coro daquela igreja era a tradicional “Fugi, Tristeza e Horror” em que, a cada estrofe (eram 3), o Edivaldo fazia uma rápida introdução e modulava meio tom acima.



* Albert Ketèlbey foi um compositor, regente e pianista inglês que viveu entre 1875 e 1959. Compôs temas como Em um mercado persa e No jardim de um mosteiro que, a propósito, utilizei como trilha sonora para os cumprimentos dos padrinhos no meu casamento



Enquanto fazia o curso do André Protásio, resolvi exercitar algumas técnicas em uma música e acabei escolhendo a “Em Jesus”, do hinário das AD, a Harpa Cristã. Resolvi alterar a estrutura rítmica da música e deixá-la com levada de baião. A exemplo da “Fugi, Tristeza e Horror”, resolvi fazer modulações de meio tom a cada estrofe. O tom original da música no hinário é Lá maior. Eu decidi começá-la em Dó maior e terminá-la em Mi bemol maior. Ficaria numa região confortável para as vozes extremas: o dó não seria muito grave para o baixo, nem o mi bemol muito agudo para o soprano. Quanto às vozes intermediárias, não era um grande problema, já que a extensão da música* é de uma nona.



* Extensão de uma música é a distância intervalar entre a nota mais grave e mais aguda da melodia. Por exemplo, a extensão da música “Parabéns pra você” é de uma oitava; se cantada em sol maior, a nota mais grave será o ré e a mais aguda, o ré uma oitava acima, lembrando que a escalda diatônica, base da música ocidental, possui 7 notas que se repetem com o dobro da freqüência, na repetição mais aguda (a oitava de cima), ou com o metade da freqüência, na repetição mais grave (a oitava de baixo). Bem, mas aí é outra história: Física



Como sou fissurando em harmonia, tratei de rearmonizar a música pelo menos para uma das estrofes. Eu queria que o início da rearmonização não sugerisse a tonalidade em que ela estava. Depois de um bom exercício de tiro ao alvo, cheguei à rearmonização da música. Achei o resultado harmônico interessante. Só que ficou um pouco complicado do ponto de vista harmônico. Então eu tomei a decisão de colocar essa rearmonização no final da música. Decidido esse aspecto, resolvi usar uma das técnicas sugeridas pelo Protásio para abrir as vozes: definir uma linha melódica interessante para o baixo e, depois, completar as demais vozes com as outras notas do acorde.



Essa decisão foi tomada, provavelmente, num sábado, porque me lembro de ter anotado a melodia e a harmonia num caderno de música e de ter ido ao salão cabeleireiro do meu amigo Samuel. Enquanto esperava minha vez para o corte do cabelo, escrevi a linha do baixo e, depois, completei as demais vozes. De volta para casa, transcrevi a solução no computador e ouvi. Gostei do resultado. Achei, inclusive, que tinha ficado com cara de Otis Skillings*. Resolvi testar o arranjo no Karpos, um coro de vozes mistas que eu regia na AD que frequentei até os meus 39 anos. Imprimi algumas cópias da partitura e levei para o ensaio, com a desculpa de que essa seria a primeira de uma série de músicas com uma proposta um pouco diferenciada que eu levaria para ensaiar. Achei que seria fácil. Como estava enganado! Por se tratar de uma sonoridade mais dissonante, o pessoal teve muita dificuldade em aprender a divisão de vozes, particularmente no tocante à afinação. Desisti da idéia. Se eu fosse escrever arranjos diferenciados para o coro, teria que começar com soluções harmônicas bem mais simples. Por isso, o arranjo ficou encostado, até ele surgir como alternativa para me salvar da minha indefinição quanto ao trabalho de conclusão no curso do Protásio.



* Otis Skillings foi um respeitadíssimo músico, arranjador, compositor, regente de orquestra, pianista concertista, palestrante e professor. Morreu em 2004. Meu contato com sua obra foi através de algumas partituras, algumas das quais coloquei no coral Karpos. Sempre gostei demais da sua linguagem harmônica.



Bem, se eu já havia decidido por modular a cada estrofe e que a harmonização final seria a mais complexa, restaria sair de uma harmonização mais simples na primeira estrofe e ir complicando até chegar à última. Pareceu-me um a boa ideia. Além disso, eu iria sair de uma proposta rítmica mais elaborada na primeira estrofe, em contraponto à harmonia mais simples e iria simplificando ritmicamente enquanto deixaria a harmonia mais complexa. Adicionalmente, também escreveria alguma estrofe no relativo menor (fiz isso na terceira) e, em uma delas, faria um solo acompanhando de uma cama harmônico-ritmica com um eventual contracanto feminino. No entanto, logo na segunda estrofe, desisti da estratégia do solo pois o resultado não estava me agradando. Resolvi então fazer algo que remetesse aos dobrados que eu tocara na vida, particularmente o contracanto do Bombardino, instrumento que toquei mais tempo. Embora um amigo tenha identificado o estilo como um maracatu, na realidade a inspiração foi outra, justamente o Bombardinho.



* O Bombardino tem um primo equivalente na orquestra que é o Eufônio.



Na terceira estrofe utilizei a relativa menor e fiz um solo feminino acompanhado de uma cama harmônica masculina com uma textura de harpejo nas vozes. Além desses aspectos, pensei em uma melodia curta para a introdução e que seria repetida três vezes, entre as estrofes, com pequenas variações. Esse aspecto também deu certo. No final, como me é característico, o arranjo ficou com bastante informação:



·         Introdução com uma melodia própria

·         1ª estrofe com solo feminino e cama harmônico-rítmica masculina com figura rítmica de baião – Tom: C

·         Modulação para a segunda estrofe utilizando uma variação da melodia da introdução

·         2ª estrofe em 4 vozes num esquema semi polifônico – Tom: Db

·         Modulação para a terceira estrofe, sem utilizar a melodia da introdução, mas utilizando uma célula rítmica bastante clichê em arranjos baião

·         3ª estrofe com solo feminino e harpejo nas vozes masculinas – Tom: Bm

·         Modulação para a 4ª estrofe utilizando uma variação da melodia da introdução

·         4ª estrofe com a rearmonização mais elaborada, utilizando uma linha melódica alternativa no baixo (não chega a ser um contracanto) e técnica de drop2* nas vozes intermediárias onde era necessário para equilibrar as vozes – Tom: C



* Drop2 é uma técnica que consiste em escrever a abertura de vozes em posição fechada a partir da melodia (posição fechada consiste em abrir o acorde juntando as notas vizinhas do acorde) e depois “deixar cair” (drop) a nota da 2ª voz uma oitava abaixo. Essa técnica ocorre “naturalmente” quando se montam shapes jazzísticos nas 4 cordas mais agudas do violão por causa da distribuição das notas da afinação básica do instrumento.



Uma vez que eu desisti de fazer o arranjo com o coro da minha igreja, resolvi fazê-lo com alguns amigos que vieram a ser a primeira formação do Kol e foi a segunda música que ensaiamos e gravamos no estúdio do João Alexandre, Voz e Violão. Os ensaios com o Kol foram complicados. Infelizmente, nas igrejas quase não se faz música de ritmos brasileiros de raiz. O pessoal está acostumado mesmo é com música norte-americana. Por isso, foi bastante trabalhoso extrair o gingado que se espera de uma música em ritmo baião. Eu cheguei a ensaiar auxiliado por uma percussão, feita pelo Rodrigo Castardo, vulgo Pedrero, um amigo que cantava no coro jovem, o Cifra. Essa foi a música que mais ensaiamos em grupo antes de uma gravação. Fiz vários ensaios gerais, ensaios só com vozes masculinas, enfim, tentei vários expedientes para conseguir extrair uma interpretação mais convincente.



A gravação da música foi um capítulo à parte. Ainda estávamos na fase inicial do grupo e a estratégia que eu tinha montado – e que não funcionou – era levar todo o grupo de uma vez só ao estúdio do Jalex e tentar gravar durante um dia inteiro. Não funcionou porque o estúdio é pequeno, o pessoal levava a coisa em ritmo de festa e isso é muito ruim para o trabalho em um estúdio. Nós mais bagunçávamos que gravávamos. O João Alexandre, inclusive, entrava na festa. Mas, fora da bagunça, chegou a me dizer algumas vezes que a estratégia não funcionaria. Por conta disso, nas músicas seguintes, passei a levar poucas pessoas que fossem suficientes para 4 horas de gravação em média, ou menos. A gravação se deu em outubro de 2003. Lembro-me que finalizamos a gravação de madrugada.



Foram 16 pessoas, quatro de cada vez. Quando ouvi o resultado final, fiquei desanimado. Parecia um coral da Cracóvia tentando fazer música brasileira. Eu não imagino como seria um coral da Cracóvia fazendo música brasileira, mas algo me disse que seria algo parecido. Ou talvez nosso resultado estivesse pior. Fiquei tão desapontado que pensei em desistir da música, regravá-la inteira novamente, regravar somente os pedaços piores, enfim. O Jalex fez uma versão de áudio com metade do pessoal, já que ele captara as vozes em separado, e a música ficou menos pesada. Mas, nem mesmo assim, ficou “menos ruim”. Por fim, resolvi manter a música e colocar no final do CD como uma faixa bônus. Passado o tempo, acostumado que fiquei com a música, decidi incluí-la no CD assim mesmo, sem essa de faixa bônus.



Quanto ao arranjo, hoje já não gosto tanto dele. Se eu fosse escrever esse arranjo novamente, minhas idéias seriam outras. Portanto, o arranjo serviu como registro de minha forma de pensar arranjos na época em que fiz o curso com o Protásio.



Biodança




Um episódio engraçado quanto ao arranjo para o curso do Protásio ocorreu quando eu ainda tinha como objetivo utilizar a música “O que será” do Chico Buarque: inicialmente eu pretendia escrever um arranjo para essa música. Eu me hospedava com frequência no Hotel Cosmos 100, em Bogotá. Não era dos melhores hotéis, mas me servia muito bem e eu acabei fazendo amizade com uma banda de jazz que tocava lá.



Num dos incontáveis fins de semana que passei naquele hotel, num domingo à tarde eu estava no lobby com meu caderno de música fazendo alguns trabalhos musicais, quando escutei a música “O que será” tocada pelo sistema de alto-falantes do hotel. Era uma versão em espanhol muito interessante. Perguntei ao pessoal da recepção se eles conseguiam uma cópia daquela interpretação para mim, com objetivo de escutá-la mais e, quem sabe, me inspirar para o arranjo. Eles me informaram que aquele CD era de um senhor que estava promovendo um evento de biodança* no hotel. Eu nunca ouvira falar dessa tal de biodança, de forma que me interessei em procurar o tal senhor para falar sobre a música e, de repente, conhecer melhor o que seria biodança. O senhor, um argentino, era bastante simpático, e foi mais ainda quando lhe disse minha nacionalidade, afinal, ele tinha muita música de brasileiros no repertório da biodança. Ele me prometeu um CD com uma cópia da música e me convidou para participar de uma sessão de biodança. Como eu estava no hotel, não tinha nada a perder, fui. A sessão seria no mesmo dia, algumas horas mais tarde.



* A biodança (do espanhol biodanza, neologismo do grego bio (vida) + dança, literalmente a dança da vida) é um sistema de integração afetiva e desenvolvimento humano baseado em “vivências” (experiências intensas no “aqui e agora”) criadas através de movimentos de dança com músicas selecionadas, e através de situações de encontro não-verbal dentro de um grupo, centradas no olhar e no toque físico. Fonte: Wikipédia.



No horário combinado, desci do apartamento onde estava alojado para o local da sessão. Há, no hotel, uma série de salas que eles utilizam para eventos. Eles eliminaram as divisórias das salas e o espaço se tornou um comprido salão, com um carpete bem aconchegante. Cheguei em meio à sessão e, timidamente, abri a porta. Havia cerca de 30 pessoas. O senhor, muito simpaticamente, me anunciou ao pessoal como um músico brasileiro. Todos foram muito simpáticos, sorridentes.  Convidaram-me para participar, mas eu, educadamente, não aceitei. Limitei-me a me sentar no chão e observar a sessão.



A maioria das músicas era, de fato, brasileira. Lembro-me de ter ouvido Djavan e Ivan Lins. Sempre que podia, ele insistia na minha participação, mas eu recusava. Apenas observava o pessoal e achava aquilo tudo muito engraçado. As pessoas pulavam, faziam brincadeira de roda, dançavam, faziam trenzinhos, todo mundo encoxando todo mundo (hum... eita!) , uma festa. Era realmente muito engraçado. Num determinado momento, quando todos se sentaram numa grande roda para descansar, uma mulher começou a chorar bastante. Era um choro convulsivo. Obviamente, o senhor que conduzia a sessão quase chegou ao êxtase, afinal, ali estava um exemplo inequívoco da utilidade daquilo tudo. Todos, sorridentes e felizes, esperaram a senhora se acalmar. Se não me engano, uma assistente do professor de biodança foi até a mulher e lhe deu um longo e afetivo abraço. Todos acompanharam aquela cena singela com um sorriso calmo nos lábios.



Depois daquele momento de catarse, a reunião estava chegando ao final. Talvez mais excitados com o choro convulsivo da mulher e com o frenesi que o final da sessão estava sugerindo, o professor me convidou novamente para participar. Dessa vez foi mais insistente e todos fizeram um corredor e insistiram para que eu participasse. O professor colocou uma música alegre, agitada, o pessoal começou a dançar sem qualquer coreografia e continuaram no convite insistente para que eu participasse. Bem, já estava ficando chato e não custava nada eu atender ao pedido do pessoal. Levantei-me e, já que iria “dançar”, resolvi fazer no melhor estilo: sem o menor pudor (não caberia ali), comecei a pular, os braços meio soltos para cima, rodopiando, “feliz da vida” em meio ao pessoal. Eu acho que eles não esperavam aquela atitude tão “espontânea” e todos se animaram muito com minha performance. Se algum conhecido meu entrasse naquela sala, não entenderia nada: eu pulando, rodopiando, rindo, com as mãos para cima, como um bezerro tresloucado em meio à relva, e aquela turba em volta fazendo o mesmo. Isso durou alguns instantes até que a música se acabou, quando enfim finalizamos exaustos e sorridentes. No final, quase todos vieram me abraçar efusivamente, talvez com a sensação de que abraçavam mais um novo integrante da irmandade. Eu retribuí o abraço, rachando de rir (por dentro, é claro), pelo inusitado da situação. Foi algo cômico, tosco até, mas que me divertiu à beça.



Por fim, o professor de biodança finalizou nossa interação convidando-me para conhecer sua escola que ficava perto do hotel com uma frase de efeito, algo como “todo encuentro casual es una cita” que vim a saber (agora que pesquisei no Google) ser provavelmente uma frase do grande escritor argentino Jorge Luis Borges. Letrado o professor, não?  Como pedia encontro de tamanha felicidade e magnitude, eu lhe prometi que, assim que possível, visitaria sua escola. Ele até comentou do movimento de biodança no Brasil, não me lembro dos detalhes, talvez pensando na minha continuidade na irmandade já em terras tupiniquins. No dia seguinte, o pessoal da recepção me entregou um CD recomendado pelo professor de biodança. Lá estava a bela interpretação em espanhol (não encontro agora nos meus CDs para tentar descobrir quem estava cantando) mas, decepção, não havia mais nada. E eu que esperava que sua gentileza fosse além do convite para eu participar da biodança e também implicasse em algumas musiquinhas a mais no CD... Pelo menos essa decepção fez com que não me tornasse refém de uma dívida de gratidão às músicas gravadas no CD o que poderiam me constranger a visitar sua escola de biodança, o que, com efeito, nunca fiz.

4 comentários:

  1. Cena infernal vc dançando "sem o menor pudor"!
    Hahahahahahhahahaha...

    Adoreii os textos! Não entendo absolutamente nada de harmonia, mas adoreii mesmo assim!

    PRÓXIMOOOOO!

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  2. kkkk... vc é ótimo Obadias.. gostei muitíssimo dos textos, achei interessante os detalhes da construção harmônica e quanto à gravação... o modo como vc o faz é bem elucidativo e pode ser de grande valia para aqueles que estão adentrando nessas questões....valeu mesmo...

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  3. Legal, Dion. Você captou a ideia. O objetivo é esse também. Abraços.

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