sábado, 11 de maio de 2019

Herança positiva, negativa e cotas

Tenho conversado muito com amigos que são contra programas sociais. A ideia é que programas sociais estimulam a pobreza, a preguiça. Diante dos cortes de bolsas de pesquisa, gostaria de saber se tais amigos também seriam a favor. Suspeito que não.

A ideia básica é sempre a seguinte: conheço o caso de alguém muito pobre que lutou, ralou muito e veja onde chegou. Ora, se essa pessoa que representa 0,01% da população de miseráveis do país conseguiu, não tem por que o governo investir em programas sociais porque as pessoas ficarão acomodadas. Para essas pessoas, a regra geral deve ser definida a partir de um caso muito excepcional, não a partir do que acontece normalmente. Raciocínio bem obtuso esse.

Vejo diversos críticos a programas sociais como Bolsa Família alegando que eles favorecem a vagabundagem. Claro que tais pessoas são ignorantes no assunto e constroem suas opiniões a partir do senso comum que se baseia quase sempre em mitos. Pode dar a sorte de acertar, mas pode errar fragorosamente. Por exemplo, o motivo de o governo apoiar pesquisas, e ninguém discorda disso, é que tais pesquisas podem ajudar a pessoa a estudar sem ter que trabalhar no mercado de trabalho tradicional e o resultado das pesquisas pode ser útil para o país. Entretanto, nunca podemos perder de vida que o estudo também é um tipo de trabalho. Ou seja, de alguma forma, a pessoa também está trabalhando. Já em um programa social como Bolsa Família, um dos pilares é o mesmo raciocínio: em vez de colocar a criança para trabalhar e ajudar no orçamento familiar, o governo paga uma bolsa para que ela estude, o que pode ajudar a criança e o país também porque é um cidadão a mais melhor preparado, tudo o que países pobres como o Brasil precisam: pessoas bem preparadas. Por que mesmo assim meus amigos são contra? Provavelmente porque não conhecem bem para que existem esses programas e, boa parte deles – desconfio – por puro preconceito mesmo.

Outro amigo me disse que cotas são esmolas e que ele discorda totalmente. O governo tem que parar com isso porque as cotas roubam vagas de pessoas mais capacitadas. Ou seja, a vaga de uma pessoa mais capacitada estaria sendo utilizada por um cotista. Eu argumentei que cotas são uma espécie de indenização que o governo paga por ter prejudicado essas pessoas historicamente. Ele discorda. Perguntei se ele aceitaria indenização caso o governo instituísse uma para donos de veículos que tivessem seus carros avariados em buracos pelo fato de o governo não cuidar adequadamente da conservação das vias públicas. Ele disse que sim. Veja que, aplicando seu argumento anti cotas, esse dinheiro estaria deixando de financiar saúde e educação para lhe dar esmola. Mas mesmo assim ele acha justo e aceitaria de bom grado. Ou seja, qualquer indenização que o governo pague PARA ELE é justa. Se for uma indenização que ele não se veja contemplado (ele é branco, cristão blablabla), é injusta.

Mas, segundo essas pessoas, meu argumento de cotas é ainda mais indefensável porque não faz sentido indenizar descendentes por sofrimentos passados por seus pais causados pelo sistema e que limitaram suas possibilidades no presente. Isso leva à ideia que eu quero expor, a da herança positiva e negativa.

Normalmente esse tipo de pessoa é contra taxar grandes fortunas e heranças. Segundo o raciocínio dessas pessoas, a ideia de que os filhos têm todo o direito de usufruir integralmente da herança deixada por seus pais é algo inquestionável e que não representa um privilégio. Afinal, eles estão usufruindo dos efeitos dos bens conseguidos pelos seus pais. Taxar isso pensando em uma maior justiça social é uma violência com esses pobres milionários. Obviamente que seus pais conseguiram tais bens em função de seu esforço (caso não tenha sido obtido por meio de herança), mas mesmo esse esforço foi à custa de um sistema bastante complexo que favorece uns e limita outros, mesmo considerando as capacidades individuais.

O fato é que, independente de como alguém tenha conseguido amealhar a fortuna, é justo que seus herdeiros sejam beneficiados sem restrição disso, sem a necessidade do esforço para amealhar sua própria fortuna. Se considerarmos os vivos, a ideia é o seguinte:
1. Se eu trabalhei, é justo que usufrua da riqueza que isso me proporcionou (parece-me bastante coerente tal raciocínio)
2. Se eu fui lesado pelo estado de alguma maneira (como o exemplo da via pública mal conservada acima), é justo que eu seja indenizado por isso (parece-me bastante coerente tal raciocínio)

Agora façamos o mesmo exercício para os herdeiros, usando a mesma lógica
1. Se eu amealhei uma fortuna em vida, o resultado disso é meus herdeiros usufruírem totalmente dela
2. Se em vida eu fui prejudicado pelo sistema (como escravo), o resultado disso é meus herdeiros não escravos terão uma vida miserável, então é justo que eles sejam indenizados por isso

Obviamente que meus amigos anti cotas não concordarão com a segunda colocação ainda que a primeira lhes deixe felizes e entusiasmados. Afinal, na cabeça deles só vale a “herança positiva”, a “negativa” não. Para mim é uma forma de pensar bastante capenga, desequilibrada. Talvez meus amigos dirão: mas a escravidão acabou há muito tempo... Aí que está: nem é tanto tempo assim e a situação da exclusão social dos afrodescendentes foi agravada ao longo do tempo justamente porque os descendentes diretos nunca foram indenizados, sem dizer que brancos europeus receberam do governo cotas para os auxiliarem na condição de migrantes (esforço sistêmico de embranquecer a população) enquanto os pretos libertos e seus descendentes eram colocados à margem da sociedade pela questão do racismo.

Enfim, é todo um sistema de pensamento muito arraigado nas pessoas e que custará muito tempo de esclarecimento ainda para evoluirmos na questão.

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