quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Fobias

Eu nunca tive qualquer tipo de medo além daqueles bastante comuns às pessoas. Na realidade, até mesmo os medos comuns nunca fizeram muito sucesso comigo. Sou meio desligado e, por isso mesmo, muitas vezes não tenho noção do perigo que estou correndo. Um medo comum às pessoas é o de falar em público. Nunca tive esse tipo de problema. Isso se deve, acredito, ao fato de eu sempre trabalhar com grupos de pessoas em corais como regente. Faço isso desde os 15 anos de idade.

Entretanto, eu desenvolvi uma fobia bastante curiosa: exame de sangue. Lembro-me que, quando era garoto, os médicos tinham dificuldade para encontrar minhas veias porque elas sempre foram muito tênues. Tenho na minha memória imagens da minha infância em que o médico furava a ponta dos meus dedos para conseguir extrair sangue. Mas, nem por isso, eu desenvolvi fobia a exame de sangue. Quando era adolescente, cheguei a fazer uma coleta de sangue em pé, se minha memória não está falhando.

Numa determinada ocasião, quando eu trabalhava num frigorífico, a administração promoveu um programa sobre saúde e uma das medidas era fazer uma série de exames com os funcionários. Não chegava a ser um check-up, mas era necessário coletar sangue para a bateria de exames. Quando chegou minha vez para a coleta, dirigi-me à enfermaria da empresa para ser atendido por uma enfermeira e um enfermeiro. Foi um desastre: eles tiveram muita dificuldade para encontrar uma veia disponível nos meus braços. Fura daqui, fura dali, a enfermeira nervosa, eu ficando impaciente, até que, num determinado momento, o nervosismo da enfermeira me contagiou, minha pressão caiu e eu desmaiei.

Aliás, desmaio nunca foi novidade para mim. Quando garoto, sofri alguns desmaios. Por motivos vários. Certa vez eu havia sofrido uma queda enquanto corria com meu irmão Tatá e meu primo Elias num terreno baldio ao lado da sua casa. Era um declive. Eu caí e escorreguei alguns metros. Ralei feio principalmente os joelhos e os cotovelos. Eu tinha um problema, de origem desconhecida, que impedia a rápida cicatrização de meus ferimentos. Sempre que eu me machucava, a cicatrização era um tormento. Por esse motivo, minha mãe tinha um cuidado especial comigo. No dia seguinte ao acidente, ela me ajudou a escovar os dentes, já que eu estava com dificuldade para mover as juntas dos braços e pernas por causa dos ferimentos. Lembro-me que mal comecei a escovar os dentes e desmaiei.

Outra vez, lembro-me que passei mal e, percebendo que ia desmaiar, corri e me deitei na cama dos meus pais. Fiquei alguns instantes num pré-desmaio. Era meio angustiante. Mas era muito interessante e eu acabei gostando. Meu corpo parecia flutuar, eu escutava as pessoas falando distante, parecia que eu apagaria, mas não apagava. Foi muito bom. Enfim, eu desmaiei outras vezes, mas não me recordo dos detalhes.

No caso da coleta do sangue, foi mais um dos meus desmaios. Só que, dessa vez, a experiência me traumatizou. Eu só me dei conta do trauma alguns meses depois quando precisei fazer nova coleta de sangue para outro exame que eu faria. A assistência médica do frigorífico era a Health (acredito que nem exista mais). Fui a um laboratório deles em São Bernardo do Campo. Era de manhã e o laboratório estava lotado. Sentei-me para esperar minha vez de ser chamado e me lembrei da minha última experiência com coleta de sangue. Comecei a rememorar a tentativa dos enfermeiros, minhas veias sumidas... Olhei para meus braços e não vi veia alguma. Comecei a ficar preocupadíssimo. Senti um frio na barriga. Levantei-me, fui ao banheiro. Dei vários pulos, fiz várias flexões de braço, dei tapas nos meus braços. Nada. As veias não ficavam saltadas. Bem, seja o que Deus quiser, pensei.

Voltei ao local de espera, sentei-me, como se nada estivesse acontecendo (e, de fato, nada acontecia, para meu desespero) e aguardei minha vez de ser chamado. Quando fui chamado, entrei na sala reservada para a coleta, a enfermeira colocou um apoio para os meus braços e começou com os procedimentos de praxe. O óbvio aconteceu: ela não encontrava minhas veias. Fui ficando nervoso, mas fiz o possível para não demonstrar. Mas a enfermeira era boa e acabou achando a veia. Alívio. Ela, então encheu uma ampola. Até aí tudo bem. Quando ela começou a encher a segunda, comecei a ter uma sensação de esvaziamento, como se todo meu sangue estivesse sendo sugado pela agulha. Foi inevitável: a sensação do desmaio foi surgindo devagarzinho, tentei me controlar para não demonstrar nada à enfermeira, mas num determinado momento não deu. Então eu falei:
– Acho que vou desmaiar...
– Você acha que vai desmaiar? – a enfermeira estava histérica – faz quinze minutos que estou lhe segurando e você não para com as convulsões!
– O quê? Convulsões?
– Eu estou que não agüento mais a dor nas minhas costas tentando lhe segurar!
– Por que você não chamou pedindo ajuda?
– Você não viu como está lotado o consultório? Eu não posso simplesmente gritar: vou assustar as pessoas! Você deveria ter me avisado antes!
– Mas eu achei que não fosse desmaiar...

Bem, os quinze minutos que ela falou deveriam ser exagero. O fato é que eu devo ter desmaiado subitamente e, quando voltava do desmaio, pensei que estava começando a passar mal. Minha cunhada enfermeira me disse recentemente achar meio estranho eu ter tido convulsões. Ela acredita que foi exagero da enfermeira. Enfim, seja lá o que tenha acontecido, o quadro da fobia já estava configurado. Dali em diante eu nunca mais conseguiria fazer uma coleta de sangue sem passar pela “pagação de mico” de uma desmaiada “básica” ou algum tipo de vexame. E cada coleta é um caso engraçado.

***

Lembro-me de uma coleta que fiz numa clínica no bairro Paraíso, em São Paulo. Evidentemente, depois do episódio da Health, eu sempre aviso o pessoal da coleta sobre minha fobia e meus eventuais desmaios. Os enfermeiros mais prudentes recomendam que eu me deite ou me sente numa poltrona reclinada. Entretanto, como o problema da fobia é psicológico, sempre que vou fazer a coleta, as minhas veias fatalmente resolvem dar um passeio e desaparecem de vista. Nessa clínica não foi diferente. A enfermeira não conseguiu, nem com reza brava, fazer com que minhas veias voltassem de seu sumiço repentino. Qual foi a solução engenhosa que ela encontrou? Pediu-me para deitar numa maca e colocou uns três cobertores sobre mim. E pediu para eu aguardar. Fiquei uma meia hora esperando meu corpo aquecer o suficiente para que minhas veias dilatassem. Era engraçada a reação das pessoas que entravam na enfermaria. Elas me olhavam assustadíssimas, imaginando o que poderia estar acontecendo comigo (e, de repente, poderia acontecer com elas também). Sorridente, eu lhes tranqüilizava – quando a enfermeira não o fazia antes – dizendo-lhes que estava deitado apenas para minhas veias dilatarem. Elas, então, ficavam mais tranqüilas.

Em outra ocasião, nessa mesma clínica, sabendo do mico que eu havia pagado antes, fiz um grande esforço mental para controlar o lado psicológico da coisa. Bem, deitar eu já iria mesmo. Eu tinha que fazer algo mais para garantir o sucesso da empreitada. Levei um Discman com um CD com peças do George Gershwin (Rapshody in Blue, Um americano em Paris, Concerto para Piano e Orquestra em Fá maior e Abertura Cubana). Antes de chegar à clínica já escutava o CD para ficar no clima musical. Durante a espera, continuei ouvindo. Quando chegou minha vez de ser atendido, fiz os esclarecimentos de praxe e eles me colocaram deitado numa cama. Aumentei um pouco mais o volume da música, me virei para o lado da parede e, como essas peças são maravilhosas, viajei na música. Desliguei-me totalmente. Foi uma beleza: a coleta foi um sucesso.

Lembro-me de outra vez, no Hospital São Pedro, em Santo André. Eu expliquei para a enfermeira que eu costumava desmaiar. Ela insistiu que não haveria problemas. Eu perguntei se ela tinha certeza e ela disse que sim. Beleza, então. Não me lembro se ela chegou a começar a coleta. Eu estava sentado com o braço apoiado no equipamento usado para isso. De repente comecei a desabar. Ela interrompeu imediatamente a operação, um enfermeiro veio em seu auxílio, me abaixaram, deram as instruções para que eu não desmaiasse e, quando a situação estava sob controle, me colocaram numa cama. Depois de bem acomodado na cama, ela conseguiu fazer a coleta. Depois, ironicamente, eu lhe disse: “Eu avisei”.

Certa vez eu me inscrevi no curso de Música da Faculdade Mackenzie. O Rogério Schuindt, meu amigo, estudava lá e eu estava procurando uma faculdade de música para estudar. Conversei com o coordenador do curso, o Parcival Módolo, e na burocracia de praxe, fui informado que, curiosamente, deveria apresentar um atestado de saúde. Fui até o Hospital São Pedro em Santo André e, quando o médico constatou que minha pulsação cardíaca é mais lenta que o normal, embora eu lhe insistisse que sempre fora assim, ele me disse que só entregaria o atestado de saúde depois que eu me submetesse a uma bateria de exames. E me entregou a guia de encaminhamento. Lá constava a expressão pavorosa: hemograma completo. Desisti da faculdade.

Houve outras coletas de sangue, mas todas dentro da normalidade: eu avisava sobre minha fobia e o enfermeiro providenciava as condições para uma coleta sem inconvenientes. A última foi no laboratório Foccus, em Santo André. Avisei a enfermeira do meu problema. Ela, simpaticíssima, me disse que não haveria problema, que ela era muito boa para coletar sangue e que era eu só relaxar que tudo bem. Eu, escolado no assunto, disse-lhe que, mesmo assim, achava interessante que a coleta fosse feita em condições menos desfavoráveis que aquela em que eu teria que ficar sentado numa cadeira. Ela insistiu que não, que eu poderia relaxar que tudo funcionaria perfeitamente. Então tentou me explicar, muito didaticamente, que tudo era psicológico, como se eu não soubesse. Pediu para eu olhar para o lado e cometeu um erro crasso: começou a conversar comigo para eu me distrair:
– Você trabalha em quê?
– Trabalho com sistemas.
– Ah, com sistemas? Então você já passou por coisas piores...
E dá-lhe papo furado. Era louvável a iniciativa dela, mas parecia que ela estava lidando com um bebê. E meu comportamento, reconheço, era de um bebê. Mas era evidente que a estratégia dela não funcionaria, pelo ridículo da situação: eu, um cara de 38 anos, sentado numa cadeira, com uma enfermeira tentando me distrair com papo furado para ver se eu ficava calminho para ela dar uma agulhada no meu braço. Minha percepção do ridículo da situação tornou a sua estratégia contraproducente. Quando ela chegou com a agulha perto do meu braço, eu gelei completamente. Mais alguns segundos e eu seria capaz de desmaiar. É impressionante como uma fobia é irracional. Não havia qualquer motivo para isso, mas eu estava lá, a ponto de ter uma síncope. Eu retesei o braço e soltei:
– Peraí! E se eu desistir?
– Não. Fica calmo que você consegue. Relaxa o braço novamente.
Relaxei, ela esperou mais alguns momentos, e ameaçou novamente infligir-me aquele ato de suprema violência. Gelei de novo. Eu parecia o Vítor, meu filho, quando era mais novo e não havia cristão (nem mulçumano) que o fizesse comer:
– Espera um pouquinho. Deixa-me respirar. Preciso relaxar.
Ela já estava perdendo a paciência:
– Façamos o seguinte: vou providenciar uma cama para você se deitar.
Foi no consultório ao lado, falou com a outra enfermeira e, assim que o consultório foi liberado, me encaminhou para lá, pois aquele consultório estava equipado com maca.
Deitei-me, ela fez a picada e eu me concentrei para não ficar nervoso e correr o risco de ter uma queda de pressão. Para me tranqüilizar ela disse que estava utilizando a agulha mais fina que tinha, utilizada para coletar sangue de bebê (de fato, ela estava me tratando como um bebê). Mas a picada doeu tanto que eu acredito mesmo é que ela estava usando a agulha mais grossa que tinha, só para me sacanear.
– Doeu?
Claro que eu respondi que não, com o rosto virado para o outro lado. E dá-lhe concentração para não desmaiar. Afinal, pela quantidade de exames que constava na guia do médico, ela precisaria de umas três ampolas, no mínimo, supus. Quando estava conseguindo me concentrar, ela avisou:
– Pronto, acabou. Põe o dedo aqui e segura esse curativo.
– Já acabou? Foi muito rápido! – eu achava que sequer havia dado tempo para encher uma ampola – Eu pensei que você fosse tirar mais de uma ampola.
– Eu tirei duas.
– Duas?
Caramba, ela era realmente muito boa! E muito rápida. E duvido que estivesse utilizando uma agulha para coletar sangue de bebê. Para fechar com chave de ouro, ela ainda soltou a seguinte pérola:
– Da próxima vez, avisa que é melhor você deitar. Teria sido bem mais fácil.
Bem, nem perdi meu tempo respondendo.

Um comentário:

  1. Tô chocada! Não sabia de nada disso...
    Mas estou sem tempo para sentimentalismos!

    Qual o próximo texto???

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