terça-feira, 16 de setembro de 2014

Hino à Bandeira – De Ivan Lins a Benjamin Britten

https://www.youtube.com/watch?v=-at6vGtD8Q0

Na década de 90, quando ouvi pela primeira vez o arranjo do Ivan Lins para o Hino à Bandeira, fiquei bastante impressionado porque sua leitura era bem diferente das minhas reminiscências da infância. Na minha infância, quando passava horas solfejando as partituras encontradas nos cadernos e livros de música do meu pai, uma das melodias que eu mais gostava era do Hino à Bandeira. A melodia me parecia maravilhosa e a música me parecia um pouco mais especial que as outras por ter quatro bemóis na armadura de clave (lá bemol maior) e por ter aquela rápida modulação no final da estrofe, antes do refrão, que fazia minha imaginação musical voar. Entretanto, cresci com a concepção militar da música, o ritmo de marcha que a partitura do meu pai me sugeria. Portanto, foi surpreendente e arrebatadora a experiência de ouvir a melodia despojada do seu caráter militar e com o lirismo da interpretação do Ivan Lins. Imediatamente eu imaginei como seria um arranjo escrito por mim para algum dos coros que eu trabalhava na época. E aquilo ficou: um dia ainda vou escrever um arranjo coral dessa música.

Quando formei o Kol Brasilis com meus amigos, uma das primeiras músicas que me ocorreu para arranjar foi justamente o hino. No entanto, eu não queria fazer um arranjo qualquer: eu queria escrever um arranjo à altura do meu apreço pelo hino. Eu queria fazer um arranjo com aquele lirismo que eu sentia na interpretação do Ivan Lins. Mas daí surgiram as dificuldades: como manter um arranjo interessante por 4 estrofes? Como escrever algo lírico, que não se repita, que não se torne desinteressante aos poucos? Eu comecei a pensar em formas de resolver a questão e nunca encontrei. Agravavam isso dois fatores: o final de cada estrofe deveria ter uma ponte para o arranjo não ficar muito burocrático e o Himn to St. Cecilia, de Benjamin Britten, um fantasma que me perseguia sempre que eu pensava em um arranjo para o Hino à Bandeira. A composição de Britten é uma obra de arte e uma das peças que mais me impressiona do repertório coral. Essa peça está na minha preferência entre as peças corais inglesas assim como o Gloria de Francis Poulenc entre as francesas. O Hino a Santa Cecília tem todo esse caráter lírico, etéreo, que quase me hipnotiza e tem algo muito interessante, o seu refrão curtíssimo em relação às 3 estrofes, que soa para mim quase como uma ponte que interliga as estrofes (“Blessed Cecilia, appear in visions. To all musicians, appear and inspire: Translated Daughter, come down and startle. Composing mortals with immortal fire.”). Também há outro aspecto muito interessante na composição de Britten e que me servia de paradigma: cada estrofe é totalmente diferente da outra; se eu conseguisse fazer algo parecido no meu arranjo, seria perfeito. Por esse motivo, o Hino a Santa Cecília era meu referencial maior de ideias para meu arranjo. Obviamente, uma grande bobagem porque, além de uma régua altíssima, existe o fato de que o hino de Britten é uma composição e ele tinha liberdade para trabalhar a melodia como quisesse, sem falar que o texto permitia essa liberdade. Mas o fato é que, se eu fosse fazer algo lírico, um tributo à composição de Britten seria um bom ponto de partida, ainda que qualquer tipo de comparação fosse no mínimo uma insanidade.

Como eu geralmente elaboro mentalmente o arranjo antes de escrevê-lo, passei alguns anos pensando de vez em quando no desafio e não me ocorreu nenhuma ideia interessante para fazer algo lírico, que não perdesse o interesse nas 4 estrofes e que fosse diferente entre as estrofes (para não ficar algo muito burocrático). A questão da ponte estava praticamente resolvida porque, no arranjo do Ivan Lins, ele faz uma ponte instrumental ligando cada estrofe o que permite que o resultado não fique burocrático. Eu poderia me aproveitar dessa ideia.

Depois de alguns anos sem me ocorrer qualquer ideia minimamente razoável nas poucas vezes que me dediquei a pensar na questão, resolvi desistir do que seria o mais difícil resolver: um arranjo lírico, etéreo, sem uma marcação de compasso muito evidente: qualquer outra solução que excluísse isso me serviria. Foi então que me ocorreu: simples, é só fazer sincopado, evocando o samba. A ideia me pareceu perfeita porque, afinal, o samba tem mais a ver com nossa terra que aquelas melodias etéreas de compositores europeus que me impressionam tanto. Como a harmonia é um dos elementos da música que mais me atrai, pensei que trabalhar de forma diferente a harmonia nas 4 estrofes era uma maneira eficiente de não deixar o arranjo burocrático e incrementar a sofisticação da harmonia aos poucos faria com que ele não se tornasse desinteressante e cansativo ao longo das estrofes. Daí, numa das minhas caminhadas de 1 hora pelo bairro, defini sua estrutura, que seria:

·         Estrofe 1 – uníssono
·         Estrofe 2 – harmonização mais básica, favorecendo mais os aspectos rítmicos
·         Estrofe 3 – fazer várias modulações ao longo das frases
·         Estrofe 4 – arregaçar na harmonização para fechar o arranjo

A ponte, aproveitando a ideia do Ivan Lins, em vez de concluir o “da amada terra, do Brasil” com um V-I seguido de um V7 para a estrofe seguinte, eu faria um V-IV-I/3-II-V7 e repetiria “meu Brasil” nesse trecho, até para deixar o hino mais sentimental.

Alguns meses depois parei para escrever o arranjo e, de cara, alguns problemas apareceram: se eu fizesse a primeira estrofe em uníssono, teria que ser em um tom que desse para todos cantarem na mesma oitava (escrever em duas oitavas me parecia uma solução ruim, pouco eficiente para o lirismo que eu ainda queria manter). Daí a coisa complicou de vez porque eu teria que ficar modulando de estrofe para estrofe, até terminar o arranjo em um tom que permitisse fazer um fechamento grandioso, se fosse o caso. Fazendo as contas, se eu começasse em dó maior e subisse um tom por estrofe, estaria resolvido o problema. Mas aí ficaria algo muito chato e previsível: cada estrofe finalizar com uma modulação que, a propósito, teria que ocorrer na ponte. Horrível! E mais: como ficaria a linha melódica, uma vez começaria muito grave? Em que vozes eu distribuiria a melodia? Ficaria trocando de naipe? Comentando um dia com a Ira, contralto, que já havia me dito querer fazer o contralto desse arranjo, ela me perguntou: “por que você não põe um solo de contralto?” Daí ela poderia fazer o solo, obviamente. Era isso! Solução encontrada! A música seria solada pelo contralto a partir da 2ª estrofe com inserções ocasionais das 4 vozes fazendo o “tutti”.  Mas ainda tinha a questão das modulações. Foi aí que me ocorreu outra ideia para acabar com a mesmice da modulação previsível em cada estrofe: eu começaria em dó maior, da primeira para a segunda estrofe eu modularia para dó menor; o ouvinte praticamente não sentiria a modulação, mas eu teria que deslocar a melodia uma terça menor acima para dar certo com o relativo menor, o que me permitiria elevar de cara a melodia. No meio da estrofe eu modularia para mi bemol e essa modulação nem seria sentida. De quebra ainda terminaria o arranjo em sol maior, onde poderia conseguir um resultado mais brilhante das vozes. Perfeito. Nas duas modulações seguintes, tentei chegar à tonalidade subsequente sem o previsível V-I para o tom seguinte.

E foi assim que surgiu o arranjo, com a diferença que abdiquei de forçar demais a harmonização na 4ª estrofe pois ficaria muito pesado. Em vez de manter o ritmo de samba com uma harmonização mais intrincada ainda, como tinha planejado, decidi voltar à estrutura rítmica original da música e dar à 4ª estrofe um ar mais solene. Com isso, eu manteria cada estrofe diferente, como se fossem variações da proposta original da música e, na 4ª estrofe, finalmente chegaria na ideia original da música. No refrão utilizei o material na 2ª estrofe e uma minúscula coda com o material das pontes para fechar.


Por fim, uma consideração sobre a melodia. Eu mudei algumas notas da melodia. Inicialmente, mudei o intervalo das duas últimas sílabas da primeira frase, em “esperança”. Originalmente, o intervalo é de uma 3ª maior. No entanto, eu sempre ouvi as pessoas cantarem com um intervalo de 5ª justa e que me parece mais bonito, inclusive. Também apliquei a mesma alteração na 2ª estrofe. Na 3ª estrofe, onde eu faço as modulações, tive que fazer algumas mudanças na melodia para permitir as modulações. Acabou ficando uma espécie de variação da melodia original. “Contemplando seu vulto sagrado” o intervalo das duas últimas sílabas mudou de uma 3ª maior para uma terça menor e a melodia perpassa pelo mezzo e soprano. No solo do mezzo, “Poderoso e feliz há de ser” também fiz uma ligeira alteração em “e feliz há” para viabilizar a modulação em curso. 

2 comentários:

  1. Carácoles! O registro da concepção do arranjo também ficou bastante didático. Faz com que a gente aprecie com mais consciência de que trata-se mais do que uma obra artística, mas a realização de um sonho de criança que tinha muito respeito por uma música.

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    1. É bem por aí, Wesley: fruto de uma relação que remonta à minha infância.

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